Inserção das tecnologias digitais no ensino durante a pandemia e o retorno presencial: investigações dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental
76Resumo:O presente estudo tem como objetivo relatar os desafios e as dificuldades encontradas por um grupo de professores, levando em consideração as perspectivas de diferentes autores sobre o uso das tecnologias digitais. Buscou-se identificar quais seriam os entendimentos e perspectivas acerca da inserção das tecnologias nas práticas docentes. No que diz respeito à metodologia, este estudo tem uma abordagem qualitativa, e teve como corpus de investigação dados extraídos de entrevistas semiestruturadas. Esses dados mostraram que a aprendizagem do aluno aparece como eixo estruturador dos relatos e está no centro das preocupações das professoras. A partir desses dados fica explícito a necessidade de se pensar que ser professor é estar em uma formação continuada, para que seja possível compreender as demandas educativas atuais, lutando para que haja investimentos em políticas públicas que proporcionem a capacitação dos professores e que as documentações vigentes contemplem o acesso à Educação como direito de todos.
Palavras-Chave:Educação. Desafios. Tecnologias Digitais.
Introdução
É perceptível que a tecnologia, na última década, tem estado presente no ambiente educacional, o que foi significativamente ampliado no contexto da pandemia de COVID-19, e tem impactado a prática de sala de aula, impondo novos desafios, sobretudo em relação aos saberes dos professores. Peixoto (2016) afirma que a relação das tecnologias com a educação é uma questão de ordem epistemológica e não técnica ou instrumental, pois a relação entre as tecnologias e a educação não pode se reduzir a um procedimento técnico.
Do ponto de vista pedagógico, não basta adotar um conjunto de estratégias didáticas que buscam facilitar o processo de ensino e aprendizagem. Logo, é preciso que essas estratégias estejam ancoradas na teoria, inclusive no que diz respeito à integração pedagógica das tecnologias digitais à educação. Um ponto importante a se atentar é que, ao integrar os dispositivos de comunicação no processo educativo, nem sempre essa integração se dá de forma inclusiva.
Desse modo, ao iniciar esse diálogo sobre o uso das tecnologias e mídias nos ambientes escolares, precisamos ter em nosso horizonte a conceituação de tecnologia e sua história, uma vez que esse não é um assunto novo, embora seja visto como inovação por algumas pessoas. Além disso, é necessário ter clareza que, por trás de qualquer artefato, existe uma história e que, desde o início da humanidade, o homem criou um conjunto de tecnologias para auxiliar sua vida em sociedade e as aperfeiçoa até os dias atuais.
Em meados de março de 2020, fomos surpreendidos por uma pandemia mundial, a qual praticamente paralisou as atividades nas escolas de educação básica. Em pouco tempo, as Secretarias de Educação e outros órgãos superiores, em sua maioria, depositaram suas esperanças nas tecnologias digitais, impostas como recurso para que as instituições escolares dessem continuidade aos seus processos de ensino e aprendizagem. Segundo o Censo Escolar da Educação Básica (2021), das 160.623 escolas que adotaram estratégicas não presenciais, 145.654 utilizaram alguma ferramenta On-line, sejam plataformas próprias ou terceirizadas.
77Esse processo de adesão ao que se denominou Ensino Remoto Emergencial, Ensino Remoto, Ensino Híbrido, entre outros, evidenciou que a maioria dos sujeitos ainda não estão preparados para o uso pedagógico das tecnologias digitais, uma vez que a grande parte dos professores ainda não se sente segura quanto ao uso dessas tecnologias, já que não têm formação acadêmica que dê suporte para o desenvolvimento de atividades de forma efetiva, as escolas não têm estruturas de conectividade e a maioria dos alunos não tem habilidades para aprendizagem autodirigidas (SAVIANI; GALVÃO, 2021). O Censo Escolar da Educação Básica (2021), evidencia que a rede municipal é a que menos dispõe de recursos tecnológicos: 39,2% das instituições têm computador de mesa e 27,8% têm internet disponível para uso dos professores e alunos.
Diante disso, pode-se dizer que mudar a história da educação através da tecnologia é uma utopia se não houver primeiramente a investigação das possibilidades e das limitações dessas tecnologias digitais; sem que o acesso a elas seja garantido a todos os sujeitos e sem que ocorra a análise dos contextos mais amplos nos quais ela está inserida, assim como afirma Araújo (2020, p.02), para quem “somos sujeitos que se buscam entender nos processos de ensino e aprendizagem em seus contextos históricos".
Assim, o objetivo do presente estudo é relatar os desafios encontrados por um grupo de professores de uma escola municipal do estado de Goiás, ao terem que lidar com as tecnologias digitais para dar prosseguimento aos processos de ensino e aprendizagem de crianças do 1º ao 5º ano, durante a pandemia de COVID-19 e no retorno às aulas presenciais. Buscou-se identificar a visão dos professores sobre o uso das tecnologias digitais, o modo como elas foram inseridas em suas práticas, bem como a maneira pela qual eles identificam potencialidades, desafios e limitações ao utilizá-las no processo de ensino aprendizagem.
A motivação para a realização do presente estudo deu-se no âmbito de uma disciplina intitulada “Organização de Contextos de Educação Escolar”, do Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica, do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação (CEPAE) da Universidade Federal de Goiás (UFG), ofertada no 2º semestre de 2021. Entre as discussões e as atividades desenvolvidas ao longo dessa disciplina, uma delas envolvia compreender e refletir sobre o ensino e a resistência, em tempos de pandemia, na educação básica. Essa reflexão configurou-se como um exercício de iniciação à pesquisa, envolvendo a utilização de instrumentos de coleta de dados, sua interpretação e análise, a partir do qual pudemos elaborar o trabalho final apresentado nessa disciplina. Isso posto, no presente texto, apresentaremos parte dessas reflexões e do referido trabalho final.
78Metodologia
A metodologia que sustenta o presente estudo tem uma abordagem qualitativa e teve como corpus de investigação dados extraídos a partir de entrevista semiestruturada a qual é realizada com base em uma entrevista previamente estruturada, mas que pode ser modificada ou ampliada no decorrer do diálogo com os entrevistados. Ressaltamos que a escolha pela entrevista semiestruturada deve-se ao fato de ela permitir, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão do entrevistado e a manutenção do foco pelo entrevistador (MINAYO, 2007).
A coleta de dados foi realizada em uma escola municipal da região urbana, escola essa que possui aproximadamente 643 (seiscentos e quarenta e três) alunos em seus turnos de funcionamento: matutino e vespertino.
Durante o período da pandemia de COVID-19 a instituição ficou fechada de março de 2020 até agosto de 2021, sendo reaberta em meados de agosto, período em que o ensino ainda se dava de forma remota, por meio de uma plataforma digital mantida pela Secretaria Municipal de Educação. Além do uso dessa plataforma, a escola utilizou o aplicativo de mensagens WhatsApp para o desenvolvimento do ensino.
No que diz respeito à etapa de ensino escolhida como critério para esta pesquisa - a saber, anos iniciais do ensino fundamental -, nesta instituição, os professores, em sua maioria, são pedagogos e servidores públicos efetivos. O grupo de professores do 1º ao 5º ano é composto por 8 professores e 4 desses aceitaram o convite para colaborar conosco, de forma voluntária, para fundamentação deste estudo. As professoras selecionadas lecionam no 1°, 2°, 3° anos do ensino fundamental.
Para esta pesquisa, as 4 (quatro) professoras entrevistadas foram identificadas com nomes fictícios pois, segundo Despret (2010), a exposição dos nomes pode ser vista como uma violência pelos sujeitos, quebrando uma relação de confiança estabelecida durante a nossa entrevista. As entrevistas aconteceram via vídeo conferência, resultando em 4 (quatro) gravações individuais de voz e de imagem, com aproximadamente 40 minutos de duração cada.
Resultados e discussões
As falas de todas as professoras nos permitem inferir que foram muitos os desafios encontrados durante todo o período do Ensino Remoto. As quatro entrevistadas deixaram transparecer que buscam uma adequação entre a necessidade concreta de se relacionar com os estudantes no cotidiano das aulas on-line e a necessidade, própria de seu ofício, de ensinar os objetos de conhecimento dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Percebemos, ainda, que essa dupla tarefa está condicionada a duas posturas, que são interdependentes e ao mesmo tempo separadas.
Apesar de a Secretaria Municipal de Educação ter ofertado formações para os professores no período pandêmico, o que se percebeu nas falas das entrevistadas é que essas formações não foram suficientes, tendo em vista a realidade que tiveram que enfrentar durante esse período. O fato é que, embora as tecnologias estivessem presentes no dia a dia em sociedade, a ela não fazia parte dos recursos utilizados pelos professores da instituição investigada, portanto, a apropriação das tecnologias adotadas nesse período foi um grande desafio para a comunidade escolar.
79Outro ponto evidenciado nas falas das entrevistadas é que a maioria delas não possuía os recursos tecnológicos necessários. Assim, além de terem que se apropriar do conhecimento acerca do uso pedagógico dessas tecnologias, tiveram que investir, por conta própria, em dispositivos e em planos de dados para internet, a fim de conseguirem realizar o tipo de trabalho imposto pelas instâncias superiores. Essa necessidade foi evidenciada na fala da professora, que relatou:
“Não tínhamos um equipamento bom para utilizar na elaboração das aulas e nem uma internet com bom acesso. Os professores precisaram se virar e adequar adquirindo um computador ou notebook. Já os alunos, muitos deles nem realizaram o que eram propostos porque não tinham nem dados móveis no celular da família.” [Ana,2021]
No entanto, as quatro professoras e toda a equipe de profissionais que atuam na instituição de ensino pesquisada tentaram, de toda maneira, assegurar a aprendizagem dos seus estudantes. Infelizmente, mencionaram que a grande maioria desses estudantes sequer tiveram acesso ao material das atividades impressas. Esse cenário nos faz refletir que o ensino consiste em um ato intencional, no qual acontece, de forma sistemática, a transmissão de conhecimentos, mas, se esses alunos, durante o Ensino Remoto, não tiveram acesso ao ensino, estes não se apropriaram do conhecimento. Como argumentam Saviani e Galvão:
funcionar como substituto, excepcional, transitório, emergencial, temporário etc., [...] determinadas condições primárias precisariam ser preenchidas para colocar em prática o ‘ensino’ remoto, tais como o acesso ao ambiente virtual propiciado por equipamentos adequados (e não apenas celulares); acesso internet de qualidade; que todos estejam devidamente familiarizados com as tecnologias e, no caso de docentes, também preparados para o uso pedagógico de ferramentas virtuais (SAVIANI, GALVÃO, 2021, p.38).
Dessa forma, a exclusão digital é evidenciada nesse momento e precisa também ser considerada como um fator dificultador do processo de ensino e aprendizagem vivenciado pelos alunos, principalmente nesse momento pandêmico. A partir desse estudo, evidenciou-se que a realidade das famílias dos alunos da escola pública fica aquém dos métodos adotados para o momento pandêmico, pois elas não têm recursos tecnológicos que garantam o acesso para efetivar o que era proposto pelas instituições de ensino.
Outro fator que prejudica bastante a efetivação do ensino aprendizagem, deixando de colaborar de forma efetiva, é a falta de diálogo existente entre as escolas e as instâncias maiores que regem a educação, no município. Uma problemática que se arrasta por anos, evidenciada nas falas das professoras, que sentem ausências em suas escutas. Entre suas principais queixas está a falta de autonomia na tomada de decisões sobre o próprio trabalho que realizam, seja para auxiliar, sanar ou impedir as problemáticas que as cercam. Como fica claro na fala da professora entrevistada:
“A Secretaria de Educação só enviava o que decidia e não dialogou em nenhum momento com os professores. Sempre aconteceu isso, mas em um momento de pandemia precisava mais do que nunca ter aberto uma escuta com quem estava direto no chão da escola. E quando chegou o retorno, o mesmo ocorreu, ofícios e mais ofícios chegaram para executarmos. Logo mais, foram avaliações e mais avaliações.” [Beatriz, 2021]
80Foi possível inferir nas falas das entrevistadas que, mesmo vivenciando um período histórico como uma pandemia, uma crise sanitária e vários outros impactos, principalmente no que rege a educação brasileira, a Secretaria Municipal de Educação mostra sua fragilidade ao focar as demandas da educação em apenas índices e avaliações externas.
A partir das narrativas das professoras, pudemos constatar que, mesmo com todas as dificuldades relatadas, a equipe escolar buscou organizar diversas estratégias no intuito de promover a aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo-emocional de seus estudantes. As professoras tiveram que incorporar novos saberes de modo abrupto e, ainda, criar situações de aprendizagem, atividades, avaliações e estratégias significativas, mesmo diante das condições que lhe foram impostas.
Podemos, ainda, concluir que as professoras entrevistadas compreendem a necessidade de adequação dos processos de ensino, incorporando novos recursos pedagógicos como as tecnologias digitais, especialmente nesse momento em que se vive uma pandemia mundial. Porém, compreendem também as necessidades de considerar as limitações dos seus usos, a falta de infraestrutura da própria escola e da comunidade e a importância de escutar a comunidade, buscando meios para sanar as dificuldades apontadas pelos sujeitos presentes nas realidades das instituições escolares, como os estudantes, as famílias e os professores.
Referências
ARAÚJO, Cláudia Helena. Dos sentidos da tecnologia à convergência com a educação. Disponível em: https://brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/11227/9399. Acesso em: 05 de janeiro de 2021.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Ineo). Resumo Técnico: Censo Escolar da Educação Básica 2021. Brasília, DF: Inep, 2021.
DESPRET, Vinciane. (2010). De la double autonomie des oeuvres de nature: Prolongation du dialogue avec Bob Verschueren [Mimeo], 2010.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. Trabalho De Campo: Contexto de Observação, Interação e Descoberta. In: DESLANDES, Suely Ferreira; GOMES, Romeu; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 26. ed. — Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
PEIXOTO, Joana. Tecnologias e relações pedagógicas: a questão da mediação. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 25, n. 59, p. 367-379, maio./ago. 2016. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/view/3681/2579. Acesso em: 01 de dezembro de 2021.
SAVIANI, D.; GALVÃO; A.C. Educação na pandemia: a falácia do “ensino” remoto. Universidade e Sociedade. Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior. n.67, ano XXI, jan., 2021. p.36-49. Disponível em: https://www.andes.org.br/sites/universidade_e_sociedade. Acesso em 02 jul.2021
Notas
1. Estudante de Licenciatura em Ciências Biológicas e Bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC) na UFG.
2. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás. Bolsista Capes.
3. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM UFG) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFG.