Projeto de extensão @PED: algumas contribuições para a formação docente
28Resumo: O presente trabalho objetiva relatar as vivências no projeto de extensão da Universidade Federal de Goiás (UFG) em parceria com a ONG Sociedade Trabalho e Esperança (SETE) cujo nome é @PED - Ações Pedagógicas em Ambientes Digitais. Trata-se de um projeto que visa oferecer atividades pedagógicas para em torno de 100 crianças e adolescentes moradores da região sudoeste de Goiânia, atendidas no território de atuação da SETE, com o público participante busca aliar os jogos eletrônicos às aprendizagens em matemática. O projeto existe desde 2016, porém, neste trabalho, falaremos mais especificamente sobre como aconteceu o projeto no primeiro semestre de 2022 na perspectiva de formação da bolsista. Na introdução, apresentamos um pouco do contexto, histórico e objetivos do projeto. Em seguida, apresentamos sua metodologia. Nos resultados e discussões, a primeira autora traz algumas contribuições que acredita que o projeto tenha deixado em sua formação enquanto discente de licenciatura em Matemática.
Palavras-Chave:Ensino de Matemática. Jogos Eletrônicos. Extensão Universitária
Introdução
Vivemos em um mundo no qual vem crescendo o uso das tecnologias da informação e comunicação, de forma cada vez mais importante em todas as esferas da sociedade. Há, de acordo com alguns autores, a emergência de uma nova sociedade, conectada, em rede (CASTELLS, 2002), e é preciso estarmos atentos a isso. Com a educação não seria diferente: é preciso cada vez mais aliar as novas tecnologias aos métodos de ensino, fazendo isso de forma atraente para os educandos, mas sem perder os objetivos ao ensinar. Para isso, torna-se necessário redefinir as atuais compreensões didático-metodológicas e a forma como os professores estão sendo formados, urgentemente (LOPES, 2011).
A partir destas reflexões surge, em 2016, o Ações Pedagógicas em Ambientes Digitais (@PED), um projeto de extensão da Universidade Federal de Goiás (UFG), em parceria com a Sociedade Trabalho e Esperança (SETE), uma organização não-governamental situada na região sudoeste de Goiânia, Goiás. Na SETE, ocorrem diversas atividades de apoio à comunidade da região e, dentre essas atividades, acontece o Projeto Vamos Juntos que oferece atividades de contraturno escolar para 100 crianças e adolescentes matriculados na rede pública de ensino, dentro de uma perspectiva de acesso à cidadania, esporte, lazer, alimentação e aprendizagens das áreas de conhecimento de matemática e da língua portuguesa brasileira, cujas atividades já foram descritas em trabalho completo, apresentado neste mesmo evento, em edição anterior, e publicado no e-book do evento (GODOY; ROCHA, 2021).
As atividades do Projeto @PED se somam ao trabalho realizado no contraturno, na busca pela inserção destas crianças e adolescentes em um contexto de aprendizagem de conceitos matemáticos a partir de jogos digitais de entretenimento. Assim, as competências matemáticas têm sido elevadas, tendo conquistado também ao longo do tempo, o interesse e gosto dos participantes, conforme apontam pesquisas realizadas (GODOY; LOPES; ROCHA, 2020). Para além disso, no entanto, o projeto também busca contribuir com a formação inicial de estudantes de licenciatura a partir de atividades de planejamento, produção e vivência de proposta de educação a partir de mídias digitais, podendo dar-se por meio de estágio curricular obrigatório, estágio não-obrigatório, bolsistas PROBEC (Programa de Bolsas de Extensão e Cultura) ou PROVEC (Programa de Voluntários de Extensão e Cultura) da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Goiás. Por fim, o projeto busca contribuir com a formação inicial e continuada de professores a partir de grupos de estudos para aprofundar reflexões sobre o jogo eletrônico na sala de aula e campos conceituais em matemática.
O presente relato tem o objetivo de contar um pouco sobre algumas vivências experienciadas no projeto no ano de 2022, com o foco nas atividades pedagógicas realizadas com as crianças e adolescentes e planejadas e vividas por licenciandos em Pedagogia e Matemática, evidenciando sua importância na formação docente.
29Metodologia
Para o presente relato, que apresenta de maneira não-exaustiva e qualitativa a vivência da experiência do Projeto @PED, utilizamos de observações participantes que, parafraseando Moreira e Caleffe (2008, p. 201), constituem uma técnica em que o pesquisador se insere no mundo social dos participantes com o objetivo de observar e compreender como é ser um membro deste mundo. Estas observações foram sendo registradas em nossos diários de campo que, de acordo com Fiorentini (2010, p.108), constitui-se num testemunho fundamental da experiência educativa. Segundo Fiorentini (2010, p. 108), “o diário tem dimensões informativas e formativas que servem para ajudar a observar, registrar, avaliar a prática escolar e permite interrogar e desvendar o sentido da realidade.” Com isso, as informações aqui apresentadas são frutos dessas anotações e da discussão dessas anotações em grupo com os demais educadores da ONG nos encontros com a coordenação do projeto.
O Projeto @PED perpassa por etapas de desenvolvimento nas quais os educandos participam ativamente delas, exercendo direitos de escolha e sendo autônomos em seu processo de aprendizagem. Para começar, há um momento de escolha de uma lista de jogos para serem testados, sendo composta por opções propostas pelos educadores e pelos educandos para avaliação dos critérios estabelecidos pelo projeto, sobre quais características presentes nos jogos favorecem oportunidades para o trabalho com as áreas de conhecimento a que se propõem. A lista de jogos deste ano (2022) foram os seguintes: Plants vs. Zombies Heroes, Minecraft, PES 2021, Labyrinth Legend, Bastion, Disney Heroes, Brawlhalla, Odyssey, Clash Royale e Stumble Guys. Dentre essas opções, os educandos votaram em assembleia e decidiram que os jogos do projeto em 2022 seriam Labyrinth Legend e Minecraft. Neste cenário, os educandos escolhem qual dos dois preferem, para passarmos à próxima etapa.
Passada a definição dos jogos, realizamos uma avaliação para investigar em que nível de aprendizado das operações presentes no campo conceitual da adição (MAGINA, CAMPOS, NUNES, GITIRANA, 2008) e sistema de numeração decimal (LERNER, SADOVSKY, 1996) cada educando está. São divididos por níveis de conhecimento, não importando a idade ou ano escolar. Os níveis são: Elementar (E), no qual trabalhamos com números de 0 a 20, explorando a ideia de número e a de contagem; Fácil (F), com operações mais “fáceis”, definidas como aquelas realizadas até 100, ou, no caso de operações maiores que 100, operações de menor nível de compreensão do Sistema de Numeração Decimal (por exemplo, centenas redondas ± centenas redondas); Médio (M), operações quaisquer de 100 até 1.000; Difícil (D), operações quaisquer com números de 1.000 a 10.000; Super (S), com números a partir de 10.000.
Para investigar o nível de aprendizagem, realiza-se uma avaliação diagnóstica de forma individual com todos os educandos da instituição. Nessa avaliação, há questões prototípicas e não prototípicas de aritmética básica. Os educandos então podem usar materiais concretos para responder e o objetivo da avaliação é saber se os educandos compreendem o que são os números e as operações que estão sendo realizadas. Há uma grande preocupação com o fato de saberem o algoritmo decorado mas não compreenderem o que está sendo realizado. Com isso, se faz importante que o educando consiga provar que compreende oq ue está em jogo nas situações-problema.
Formado os grupos de trabalho atendendo aos critérios de preferência pelo jogo e o nível de conhecimento, as atividades se iniciam com um primeiro momento de Jogo Orientado, no qual propomos um desafio dentro do jogo para fazer com que o educando vivencie situações dentro do jogo que tenham potencial matemático (compra e venda, troca, soma e subtração, comparação entre valores e etc.). Já no segundo momento do Grupo de Trabalho (GT), os educandos discutem a situação vivida a partir do desafio e realizam as reflexões matemáticas e a análise das estratégias utilizadas no jogo.
30Resultados e discussões
Primeiramente é importante dizer que o projeto no ano de 2022 ainda está em andamento e o que discutiremos aqui tem relação apenas sobre a minha vivência no projeto como bolsista. Com isso, passo a relatar sobre as reflexões que marcam a minha formação docente, sobretudo, da possibilidade da matemática ser vista de forma leve e trabalhada sempre através de vivências, como uma ferramenta para o cotidiano do educando.
Para isso, percebo o potencial do momento de jogo orientado planejado para evidenciar de forma intencional as situações matemáticas e fazer com que os educandos reflitam sobre elas de uma maneira autônoma, a qual não é feita apenas pela simples obrigação de ter que aprender ou ter que fazer, e sim pela necessidade de problematizar determinado momento no jogo para avançar ou realizar as conquistas propostas. Assim, realizam a atividade porque gostam dela e do jogo, isso torna o processo de reflexão favorável e muitas vezes ocorre no próprio jogo em conversas que os educandos fazem para se ajudarem a terminar o desafio proposto.
Mas, durante o trabalho, percebi uma dificuldade iminente na criação das atividades de modo que sejam significativas para os educandos neste contexto. Para o momento do Grupo de Trabalho, é de extrema importância que consigamos trazer propostas que façam sentido para o educando, isto é, a atividade não pode virar apenas um print de tela do jogo em que enunciamos uma situação hipotética e o participante a responde sem sequer ter chegado àquela situação no jogo. O que quero dizer é que as atividades têm que surgir da vivência de modo que uma não fique isolada da outra. Por vezes isso é uma tarefa complexa na prática pedagógica, já que durante o planejamento temos que prever o que aquele Jogo Orientado nos dá de situações e pensar em uma maneira de fazer com que o educando navegue de forma significativa por essas situações problematizadas, de modo que faça sentido para o próprio educando refletir matematicamente sobre elas e crie-se nele o desejo de aprender mais
Nesta expectativa, uma das atividades que conseguiram cumprir com esse requisito foi uma em que o desafio dos educandos era derrotar um boss no Labyrinth Legends e descobrir qual era a melhor arma para que isso fosse realizado. Para tanto, os educandos utilizaram as armas que preferiram e, aconteceu uma discussão de qual seria a melhor arma. Nessa discussão foram feitas comparações entre as armas, considerando o dano, a distância e a estratégia utilizada, com cada educando dando sua opinião e argumentando a respeito da arma escolhida.
Outra situação, também vivenciada neste jogo, nos mostrou a importância de sempre refletir sobre o público-alvo para o qual estamos elaborando as propostas. Um dos desafios propunha que os educandos chegassem ao marco de duas mil moedas no jogo. Porém, ao vivenciar o desafio, notou-se que muitos não conheciam o número e nem tinham noção de que quantidade isso representaria. Essas situações foram refletidas durante a conversa pedagógica e usadas para fazer com que pudéssemos melhorar as propostas, antecipando problemas deste tipo que pudessem ocorrer durante a realização da atividade. Assim, quando a atividade foi realizada no outro turno do mesmo dia, pudemos adaptar a atividade, mudando o número de moedas que cada educando deveria alcançar, para que fosse condizente com o nível de aprendizagem individual.
31Por conseguinte, todas as atividades são pensadas a fim de fazer com que os educandos vivenciem situações matemáticas e percebam que o conhecimento matemático nasce de circunstâncias reais e não tem um fim em si mesmo. Diante dessas situações, os educandos participam ativamente de todo o processo de construção da proposta do projeto, afinal a experiência com o jogo parte do princípio que seja prazerosa e individual para cada educando. Nesse sentido, a participação e o direito de escolha os torna protagonistas e interessados em seu processo de aprendizagem em cada atividade. Além disso, a defesa do projeto pela resolução das contas aritméticas fora do algoritmo convencional e construção dos caminhos alternativos por cada educando evidenciam novamente o protagonismo e a autoria. Até então em minha vida escolar e acadêmica eu não havia sequer parado para pensar na possibilidade de trabalhar com outros caminhos que não fosse através dos algoritmos convencionais.
Outro ponto que descobri de suma importância é o educador estar presente como mediador do processo, e não como professor que dá uma aula expositiva a qual os alunos sequer querem estar presentes e que para mim, até então, era o normal no ensino de matemática. O @PED quebrou essa concepção do ensino tradicional em que a única organização didática possível é o professor falando como se detivesse todo o saber e o educando escutando como se não fosse um ser humano com outras experiências e vivências. Aqui, faço relação com o ensino bancário citado por Freire (2016), no qual os educadores depositam os conteúdos nos educandos, considerado recipientes passivos do conhecimento.
Além dos aspectos apontados atrelados na minha relação como educadora e educandos dentro da proposta do projeto, acrescento também o aspecto da minha formação e reflexão sobre conhecimento e as metodologias empregadas ao ensino das operações básicas e ao trabalho com a matemática elementar, a qual sinto falta durante meu curso de graduação. Ao que posso observar, trabalhei muito com o conhecimento formal da matemática e algumas concepções de educação, mas ao chegar em uma turma do fundamental II, eu não conseguiria ensinar às crianças sem recorrer a matemática abstrata. Olhar para a matemática de uma forma menos abstrata e técnica foi uma das maiores contribuições que o projeto me proporcionou.
Além das contribuições citadas acima, o projeto também tem grande importância social para os educandos que dele participam. Por advirem de uma realidade em que, por vezes, são marginalizados e abandonados, encontram na ONG um amparo. Alguns dos jovens só têm acesso às tecnologias por frequentarem o projeto. Isso ajuda a inseri-los nessa sociedade tão tecnológica em que vivemos.
32Referências
CASTELLS, M.. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 1. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002.
FIORENTINI, D. Diários e narrativas reflexivos sobre a prática de ensinar e aprender. In: KLEINE, M.U.; MEGID NETO, J. (Org.). Fundamentos de Matemática, Ciências e Informática para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental I. Vol. 2, Campinas: FE/Unicamp, 2010.
FREIRE, P.. Pedagogia do Oprimido. 58ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.
GODOY, J. P.; ROCHA, W. C. M. . Vamos Juntos!: notas de um contraturno escolar para (re)significação da Educação Básica. In: Moema Gomes Moraes; Neisi Maria da Guia Silva. (Org.). Universidade, formação docente e educação básica: desafios e perspectivas para um diálogo necessário: artigos. Goiânia: CEGRAF, 2021, p. 69-74.
GODOY, J. P.; LOPES, J. P.; ROCHA, W. C. M.. Educação matemática e jogos digitais de entretenimento com estudantes da educação básica. Revista Polyphonía, v. 30, p. 177-200, 2020.
LERNER, D.; SADOVSKY, P.. O sistema de numeração: um problema didático. In: PARRA, C.; SAIZ, I.. (org.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Médicas, 1996.
LOPES, J. P. Educação a distância e constituição da docência: formação para ou com as tecnologias? Revista Inter Ação, Goiânia, v. 35, n. 2, p. 275–292, 2011. DOI: 10.5216/ia.v35i2.13133. Disponível em: https://revistas.ufg.br/interacao/article/view/13133 . Acesso em: 4 set. 2022.
MAGINA, S.; CAMPOS, T. M. M.; NUNES, T.; GITIRANA, V.. Repensando adição e subtração: contribuições da teoria dos campos conceituais. 3. ed. São Paulo: PROEM, 2008.
MOREIRA, Herivelto; CALEFFE, Luiz Gonzaga. Metodologia da pesquisa para o professor pesquisador. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2008.