Gustavo Fernandes Rodrigues
gustavofr@discente.ufg.br

Lidiane de L. S. Pereira
lidiane.pereira@ifg.edu.br

Anna M. C. Benite
anna@ufg.br

EIXO
Educação (Educação Ambiental/Educação Especial/Educação Intercultural/Educação no Campo/EJA/ EAD

História e filosofias de ensino dos surdos, mediante aporte de Vigotski

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Resumo: O canal de transmissão e percepção da linguagem para os surdos é viso-especial, o que implica em diferentes especificidades no ensino e educação de surdos. Posto isto, esse resumo tem como objetivo, através de um ensaio teórico e de estudo bibliográfico, compreender as relações entre a história do povo surdo com suas filosofias de ensino, e quais foram as contribuições dos fundamentos de Vigotski para o entendimento/desenvolvimento de uma educação inclusiva para os surdos, e evidenciar as mudanças no pensamento de Vigotski em sua trajetória para com a comunidade surda. O cenário exposto demonstra que o povo surdo ao longo do tempo foi visto de forma discriminatória, que as filosofias de ensino tiveram grande influências religiosas e geopolíticas, e que Vigotski contribuiu para a educação dos surdos, bem como das pessoas com necessidades específicas, por trazer um caráter social como essencial no desenvolvimento da linguagem e do sujeito.

Palavras-Chave:Surdos. Filosofias de Ensino. Linguagem.

Introdução

A teoria de Vigotski (2009) enfatiza a importância da relação entre pensamento e linguagem para o desenvolvimento afetivo-cognitivo do homem. O autor ressalta que pelo caráter social do ser humano é que a linguagem é criada. A partir dessa relação dialética os seres humanos são capazes de abstrair e de transmitir às gerações futuras a cultura e as aquisições sócio-históricas.

Os surdos ao longo do tempo foram impedidos de desenvolverem sua linguagem natural. Enxergando a mesma como ato humano, social e histórico, é desumano pensar em viver sem linguagem ou comunicação. Houve e ainda há uma enorme barreira linguística enfrentada pela comunidade surda, tanto para o reconhecimento da Libras como língua plena e oficial, quanto atualmente para ter acessos e ser inserida na sociedade majoritariamente ouvinte, que tem como língua, o português.

O presente trabalho representa um recorte teórico de uma dissertação, cujo objetivo maior se constitui em avaliar o processo de ensino e aprendizagem dos surdos no âmbito da Biologia. O recorte tem por objetivo discutir a respeito do sujeito da pesquisa, os surdos; ao trazer evidências da historicidade destes, suas diferentes filosofias de ensino, e trazer as contribuições de Vigotski para o entendimento da linguagem, signos, e outros fundamentos e como podem estar diretamente ligados com as filosofias de ensino para a educação de surdos.

Relatos históricos e as Filosofias de Ensino

Duarte et al (2013) ressalta que na Grécia antiga, os surdos não eram considerados pessoas que possuíam um potencial para serem escolarizados. Eram, portanto, considerados inválidos e um incômodo para sociedade. Já nas sociedades antigas, como no Egito e na Pérsia, Strobel (2008) relata que os surdos eram considerados sujeitos enviados dos deuses, por viverem em silêncio, além de crerem que eles conversavam em segredo com os deuses em uma meditação espiritual. Esses exemplos evidenciam que a noção histórica de como os surdos eram vistos, perpassa desde a discriminação ao ocultismo e misticismo.

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No Brasil, o Imperial Instituto de Surdos-Mudos, que foi criado por meio da Lei nº 839, de 26 de setembro de 1857, foi o marco inicial da trajetória do ensino de surdos no Brasil. Ele foi construído a partir de iniciativa do imperador Dom Pedro II e o professor francês Edward Hernest Huet (1822-1882), que também era surdo, lecionava e ocupava a direção da escola-instituto. Por essa razão a Libras, em sua origem, teve grande influência da Línguas de Sinais Francesa.

O Congresso de Milão, em 1880 teve grande influência nas decisões de ensino para surdos naquela época, já que por meio dele foi determinada a proibição na Europa do uso das línguas de sinais, além de obrigar que a educação de surdos deveria acontecer apenas por meio da oralização. Segundo Soares (1999) oralização se constitui como um processo educacional que intenciona que o surdo produza linguagem oral. Essas decisões refletiram no Brasil, e posteriormente o Instituto Nacional de Educação de Surdos (antigo Imperial Instituto de Surdos-Mudos) que se baseava no sistema de ensino de Huet, ou seja, com o uso da língua de sinais, passou a usar o método do oralismo.

Foi somente no final da década de 1970 que passou a ser utilizado um método chamado conhecimento total ou comunicação total, nas palavras de Stewart (1993, p. 118), a comunicação total pode ser concebida como: “[...] a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplificação e alfabeto digital para fornecer input linguístico para estudantes surdos, a fim de que possam se expressar nas modalidades preferidas”. Esta filosofia caracteriza-se pela utilização da língua de sinais, linguagem oral e outros meios utilizados na educação de surdos e entendidos como métodos que facilitavam a comunicação.

Os movimentos de integração, a inauguração de Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais – APAE e Institutos Pestalozzi em outras regiões do Brasil, as modificações provenientes da Constituição de 1988, a Declaração de Salamanca (1994) e outros contribuíram para que as propostas pedagógicas voltadas para o ensino de pessoas surdas buscassem meios para a consolidação de melhores abordagens educacionais, com isso temos a abordagem do bilinguismo para surdos, que visa a utilização da Libras e do português escrito no cotidiano escolar do aluno surdo. Na perspectiva do bilinguismo, a língua de sinais é considerada a primeira língua e o português, a segunda (DAMAZIO, 2007). Portanto, na história da educação de surdos três filosofias foram difundidas: o oralismo, a comunicação total e o bilinguismo.

Vigotski e sua importância para o desenvolvimento dos surdos

Vigotski foi uns dos primeiros pesquisadores a se dedicar aos estudos do desenvolvimento das pessoas com deficiência. Em seus registros do “Fundamentos de Defectologia”, inseridos no Tomo 5 das Obras Escogidas (2012), há a inclusão de uma narrativa educacional para pessoas surdas, cegas, deficientes físicos e intelectuais. Vigotski não estava preocupado em apenas mensurar a deficiência, ele queria se afastar da pedagogia medicamentosa-hospitalar, aliás ouso dizer que Vigotski sempre ressaltou o que é ou não é aparato biológico, ou função biológica, em toda sua obra, e isso devia-se ao fato de teorias até então considerar com bastante ênfase o biológico e esquecer o social, de modo que Vigotski queria uma ruptura com esse determinismo. (VERAS; DAXENBERGER, 2017)

Veras e Daxenberger afirmam que é notável as mudanças no entender de Vigotski em relação a educação de surdos, e realizou modificações em sua teoria como afirmam, em:

Em 1925, seu primeiro texto sobre a educação de surdos, chamado “Princípios da educação Social para Crianças Surdas” traz como principal estratégia e é favorável a oralização, assegurando que este tipo de estímulo será benéfico ao surdo, pois terá contato com a língua da maioria ouvinte, o mais cedo possível, nos primeiros anos da escola. Esta posição de Vigotski coincide com o auge da filosofia oralista, entrelaçando ideias entre os dois pensamentos. (2017, p.264)

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Trazendo à tona a visão tradicional e já vigente do oralismo, a intenção aqui não é criticar a visão de Vigotski da época, e sim mostrar as mudanças em seu pensamento, levando em conta todo o contexto cultural da sociedade da época em que ele está inserido, o qual ele considerava extremamente importante. Fato exposto, o oralismo parece presente em seus primeiros feitos e também, erroneamente, quando as pessoas entendiam, e até hoje, linguagem sendo exclusivo de fala, então ao ter repetidas vezes termos como “vocalização”, “fala” e “linguagem” poderia se presumir sempre uma via oral do mesmo, mas percebemos grandes mudanças em sua visão sobre a fala em:

Os cegos e os surdos-mudos são como um experimento natural que demonstra que o desenvolvimento cultural do comportamento não se relaciona, necessariamente, com essa ou aquela função orgânica. A fala não está obrigatoriamente ligada ao aparelho fonador; ela pode ser realizada em outro sistema de signos, assim como a escrita pode ser transferida do caminho visual para o tátil... Nós nos acostumamos com a ideia de que o homem lê com os olhos e fala com a boca, e somente o grande experimento cultural que mostrou ser possível ler com os dedos e falar com as mãos revela-nos toda a convencionalidade e a mobilidade das formas culturais de comportamento. Psicologicamente, essas formas de educação conseguem superar o mais importante, ou seja, a educação consegue incutir na criança surda-muda e na cega a fala e a escrita no sentido próprio dessas palavras. (VIGOTSKI, 2011, p.868)

No texto “A coletividade como fator de desenvolvimento da criança anormal” em 1931, cita a mímica junto com a diferentes formas de linguagem - a língua de sinais ainda não tinha adquirido um status linguístico - e ao considerar a mímica como um recurso linguístico para o surdo, se amplia a visão de educação dele, e assim contribui para o acesso à linguagem. Podemos fazer um paralelo então ao trazer o meio da mímica (uso de linguagem não verbal/oral) à tona, como os princípios da filosofia da comunicação total, pois um novo recurso é inserido, e mesmo a mímica não sendo uma linguagem e sim gesto, demonstra a preocupação de novas formas e meios de desenvolver a educação de surdos.

A problemática inserida na escrita, não é pela escrita em si, como mostrado acima, há desenvolvimento de língua de sinais escrita, embora não seja difundida ainda, mas sim da escrita da língua portuguesa como forma, avaliativa, pois impõe a superioridade do ouvinte, e as características dos ouvintes como domínio. A escola, os funcionários, professores, educadores, direitos, órgãos de avaliação e a sociedade são todas pautadas em premissas ouvintes e usam desse instrumento como avaliação, e, eliminam de forma direta e indireta a identidade surda dos seus sujeitos.

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Nesse viés, o bilinguismo surge como resposta para a comunidade surda, por considerar sua língua natural e trazer a torna traços da cultura e identidade surda. Podemos perceber ainda uma mudança de concepção de Vigotski que em “Princípios da Educação Social para Crianças surdas”, Vigotski (2012) traz a perspectiva de uma Pedagogia Social de surdos, que seria a melhor forma de educar crianças surdas, e criticava com bastante afinco, as escolas especiais que na época segregava e separava crianças surdas das demais. Não obstante, ainda cita:

O aluno não aprende a linguagem, mas somente a pronúncia das palavras; o desenvolvimento linguístico é inferior ao desenvolvimento geral; leva a criança a criar a própria linguagem – a mímica; a língua oral nada acrescenta aos surdos como instrumento de acumulação da experiência cultural e participação na vida social; inconsistente psicológica e pedagogicamente quando tenta formar palavras a partir dos sons e frases a partir das palavras. (2012, p.341)

Conclui-se que, nessa citação podemos ver uma nova ideia do que é mímica para Vigotski colocando a linguagem oral como instrumento em que nada auxilia a educação de surdos, reconhecendo a importância do que ele chama de mímica para linguagem. Com isso, pelo caráter extremamente social que a pesquisa de Vigotski tem; bem como a crítica dos instrumentos de ensinos desenvolvidos para surdos; a ressignificação do que seria linguagem, signos e a fala; a crítica na visão tradicional do que seria deficiência; e a crítica a escolas especiais; as contribuições de Vigotski dialoga e corrobora os fundamentos da filosofia de ensino do bilinguismo, pelo caráter social e identitário que ela implica.

Considerações Finais

A linguagem é fundamental no desenvolvimento pleno do sujeito, em sua cognição, em seus atributos psicológicos, no meio social e cultural. A comunidade surda foi proibida de uma interação social a partir de sua linguagem natural, ao longo de sua existência, enfrentando diferentes formas de discriminação e diferentes camuflagens de preconceitos. Entender a historicidade de um povo e entender suas origens, contribui para o entendimento do eu no mundo. O povo surdo não tem impedimentos cognitivos para o aprendizado, o que falta é empatia para superar a barreira linguística e conceber todos como um povo que precisa de um processo de escolarização de qualidade, além de garantir seus direitos como cidadãos.

Referências

DAMÁZIO, M. F.M. Deficiência Auditiva. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2007.

DUARTE, Soraya Bianca Reis et al. Aspectos históricos e socioculturais da população surda. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, out-dez. 2013, p.1713-1734.

SOARES, Maria Aparecida Leite. A educação do surdo no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados; Bragança Paulista, SP: EDUSF, 1999.

STEWART, D.A. Pesquisa sobre o uso de sinais na educação de crianças surdas. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2007.

STROBEL, Karin Lilian. Surdos: vestígios não registrados na história. 2008. 176 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.

VERAS, D. S.; DAXENBERGER, A. C. S. Um Olhar Sobre as Contribuições de Lev Vigotski à Educação de Surdos. Olhar de Professor, [S. l.], v. 20, n. 2, p. 252–269, 2019. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/olhardeprofessor/article/view/12041 . Acesso em: 15 ago. 2022.

______. A construção do pensamento e da linguagem. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2001 - (Psicologia e pedagogia).

______. Obras escogidas V: fundamentos de defectologia. Madrid, Machado Libros, 2012.

______. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, jan./dez. 2011.

______. A construção do pensamento e da linguagem. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

Notas

1. Se padronizará a escrita de Vigotski dessa maneira, para ir ao encontro com as referências utilizadas, nos títulos brasileiros e em língua portuguesa que se encontra em geral dessa maneira.