Renato Antônio Ribeiro
rhenato@gmail.com

EIXO
Políticas educacionais e currículo

Programa EJA-TEC: uma análise curricular à luz dos pressupostos freirianos

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ResumoA Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade da educação básica subestimada no campo das políticas educacionais, inclusive quanto a questões curriculares. Quanto à sua oferta, a legislação atual permite que a modalidade seja implementada inclusive via educação a distância (EaD). O presente estudo realiza uma análise preliminar do Programa EJA-TEC, oferecido pela Secretaria de Educação do estado de Goiás à luz do referencial teórico freiriano. Paulo Freire defende uma educação dialógica e transformadora que possibilite aos sujeitos sua humanização e superação da condição de oprimidos na sociedade. A análise preliminar do Programa EJA-TEC aponta para um currículo alinhado com as orientações da BNCC e submetido aos interesses do mercado de trabalho, desconsiderando as especificidades da EJA e também os pressupostos freirianos.

Palavras-Chave: EJA-TEC. Currículo. Paulo Freire.

Introdução

A Educação de Jovens e Adultos (EJA), como modalidade da educação básica, marginaliza-se no campo das políticas públicas educacionais no Brasil, assim como os sujeitos (educandos e profissionais da educação) integrantes de tal modalidade. Historicamente, a EJA carece de um olhar diferenciado que respeite as especificidades de seus educandos, de educadores com perfil também específico, metodologias e/ou materiais didáticos próprios e, acima de tudo, um currículo que de fato considere essas particularidades.

É de praxe no Brasil que a EJA seja conduzida sob uma concepção “aligeirada”, na qual o objetivo fim é a certificação rápida, no menor tempo possível, aos sujeitos educandos que nela se inserem. Além disso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) já previa o oferecimento de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, inclusive para a EJA (BRASIL, 2019). Essa perspectiva EaD pode corroborar com essa formação aligeirada e precarizada de conhecimentos científicos.

A previsão do ensino à distância descrita na LDBEN é regulamentada em decreto próprio (BRASIL, 2017) e inclui a EJA no Artigo 8º, inciso IV do referido documento. A resolução que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos (BRASIL, 2000a) e seu parecer (BRASIL, 2000b), bem como a resolução das Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2010) também mencionam a possibilidade de oferecimento da EJA no modelo de Educação a distância.

Neste contexto, a Secretaria Estadual da Educação de Goiás (SEDUC-GO) propôs, a partir de 2019, o Programa EJA-TEC, Educação de Jovens e Adultos na modalidade de ensino a distância, a fim de ampliar a oferta de vagas para a EJA, inicialmente atendendo à 3ª Etapa, o que corresponde ao Ensino Médio da Educação Básica.

O programa ainda justifica sua importância pela “pretensão de melhorar o nível educacional desses jovens/adultos, além de universalizar a utilização das mídias no campo educacional” (GOIÁS, 2019, p. 5). Percebe-se o forte alinhamento com as competências e habilidades sugeridas no documento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), recém-implantada no Brasil, que prevê como indispensável a cultura digital e o desenvolvimento e/ou domínio de conhecimentos na área de tecnologia.

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Na Pedagogia freiriana, as contradições das realidades concretas vivenciadas por educadores e educandos são o ponto de partida e/ou o centro da atividade de planejamento curricular. Dessa forma, a bagagem de conhecimentos trazidos é valorizada. Para Freire (1996) tais conhecimentos não são mais nem menos, mas diferentes e anseiam ser respeitados, não necessitando haver supervalorização ou dominância do saber escolarizado em detrimento do “saber de experiência feito”.

Paulo Freire sempre esteve à frente de seu tempo e não deixou de lado discussões em torno da questão da tecnologia nos processos educativos. Como defensor de uma concepção crítica na educação e considerando que esta tem forte caráter político e isenta de neutralidade, ele admite que o uso da tecnologia na educação perpasse uma ideologia, questionando as justificativas para seu uso. Logo, podemos dizer que em Freire há o cuidado de olhar criticamente para o emprego de tecnologias na educação, apontando e contextualizando os interesses inseridos em tal cenário.

Este trabalho constitui-se de um recorte inicial de uma tese de doutorado em andamento, intitulada provisoriamente de “O diálogo freiriano e a construção do currículo de biologia na EJA no estado de Goiás” desenvolvida no contexto do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás. Desta forma, o recorte do presente estudo apresenta-se como uma reflexão e análise iniciais acerca do Programa EJA-TEC oferecido pela SEDUC-GO, apontando elementos da estruturação curricular proposta e suas interfaces com os pressupostos freirianos.

Metodologia

A metodologia empregada neste estudo foi a análise documental, sendo o Projeto de Educação de Jovens e Adultos na modalidade de Educação a Distância (Projeto EJA-TEC) da Secretaria Estadual da Educação de Goiás – SEDUC-GO (GOIÁS, 2019) o principal documento analisado.

Os documentos regulatórios/legislações pertinentes ao oferecimento da EJA na modalidade EaD, tais como: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 2019a); Decreto Nº 9.057 (BRASIL, 2017), Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos (BRASIL, 2000a); Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2010a), os quais são citados no Projeto EJA-TEC, deram suporte para a análise documental.

O documento da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018) e o das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica (BRASIL, 2010b) também foram consultados, pois também são mencionados no Projeto da EJA-TEC como documentos orientadores de sua construção/organização curricular.

O documento analisado foi confrontado com alguns referenciais frerianos (FREIRE, 2011; 2013) a fim de refletir sobre o processo de construção curricular do Programa EJA-TEC e apontar aproximações e distanciamentos com a Pedagogia Freiriana e seus pressupostos: a educação libertadora, dialógica, transformadora, emancipadora, problematizadora, crítica e política..

Resultados e Discussão

O Projeto de Educação de Jovens e Adultos na modalidade de Educação a Distância (Projeto EJA-TEC) da Secretaria Estadual da Educação de Goiás – SEDUC-GO visa atender a uma demanda de baixa escolarização de jovens e adultos trabalhadores, especificamente atendendo ao público da 3ª Etapa, o correspondente ao Ensino Médio.

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Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (IBGE, 2019) apontam que 70,3 milhões de pessoas com 25 anos ou mais não finalizaram o Ensino Médio, correspondendo a 52,6% do total. O curso justifica-se, segundo o documento analisado, pelas “situações em que jovens e adultos, no exercício de suas atividades laborais, não encontram consonância entre a oferta de ensino conjugada ao tempo, interesses e necessidades pessoais” (GOIÁS, 2019, p. 4). No documento, é reiterada a submissão dos educandos da EJA ao mundo do trabalho: “na EJA, a dimensão do trabalho adquire uma importância fundamental” (GOIÁS, 2019, p. 4).

Há que se questionar os sentidos envolvidos na questão de trabalho apresentadas, não os reduzindo na concepção de emprego assalariado apenas. Paulo Freire, ao relacionar trabalho e educação, posiciona o ato educativo numa perspectiva transformadora da condição de opressão pela qual vivem os trabalhadores. Logo, considerando o homem como um ser inacabado, a educação possibilita a humanização desses homens, não os escravizando ou submetendo-os aos interesses exclusivos do mercado de trabalho:

A realização dos homens, enquanto homens, está, pois, na realização deste mundo. Desta maneira, se seu estar no mundo do trabalho é um estar em dependência total, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhe pertence, não podem realizar-se. O trabalho não livre deixa de ser um que fazer realizador de sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua “reificação” (FREIRE, 1987, p. 89).

Freire (2013), ao defender o processo da humanização via educação, posiciona o homem num movimento de busca por “ser mais” e não condiciona e/ou restringe o processo educativo a uma mera adaptação do sujeito para a vida em sociedade. O Programa EJA-TEC, admitindo o estudante como um protagonista, reafirma uma formação acadêmica que o possibilita “maior condição de se inserir na sociedade atual, que é tecnológica” (GOIÁS, 2019, p. 5).

E ao defender a formação mediada por tecnologias do modelo proposto, reforça a “expectativa de que os recursos tecnológicos possam ser elementos imprescindíveis no sentido de viabilizar o desenvolvimento da educação formal, adequada às exigências dessa sociedade contemporânea, em especial de jovens e adultos” (GOIÁS, 2019, p. 5).

Paulo Freire, quanto à questão do uso das tecnologias, tem uma postura crítica e defende que a olhemos ou mesmo a espreitemos de forma “criticamente curiosa”, uma “curiosidade crítica, insatisfeita, indócil” (FREIRE, 1996):

Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado [...]. Nunca fui ingênuo apreciador da tecnologia: não a divinizo, de um lado, nem a diabolizo, de outro. Por isso mesmo sempre estive em paz para lidar com ela. Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas (FREIRE, 2011, p. 16;34).

É fato que a BNCC propõe como competência fundamental da educação básica “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares)” (BRASIL, 2018, p. 9).

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Sabe-se que há forte influência de organismos internacionais (como UNESCO, Banco Mundial, FMI etc.) na implementação de políticas públicas para a Educação Básica no Brasil e a inserção do domínio da tecnologia como habilidade/competência básica no currículo escolar é fruto dessa influência.

Apesar da BNCC não apontar, mencionar e/ou ignorar a EJA quanto às suas diferentes especificidades, não dando orientações específicas para a modalidade, inclusive quanto ao currículo, o Projeto da EJA-TEC em Goiás descreve sua proposta como alinhada à BNCC. O documento aponta para uma organização em que se pretende “viabilizar um projeto inovador que se baseia em um trabalho pedagógico por área do conhecimento” (GOIÁS, 2019, p. 5).

Pode-se questionar e/ou problematizar até que ponto as orientações presentes na BNCC são/serão adaptadas para as especificidades da EJA. Freire (2013, p. 72), quanto à importância do diálogo, afirma:

O diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.

O documento analisado apresenta a EJA-TEC como uma proposta em que se estabelece uma “relação dialógica” (p. 5) entre docentes e discentes ao enfatizar a aprendizagem mediada por tecnologias, mas não traz elementos consistentes para se avaliar como se dá de fato essa relação dialógica dentro do processo de ensino-aprendizagem.

Quanto à autonomia, um dos principais pressupostos da pedagogia freiriana, Freire (2011, p. 63) aponta: “é com ela, a autonomia, penosamente construindo-se, que a liberdade vai preenchendo o ‘espaço’ antes ‘habitado’ por sua dependência. Sua autonomia que se funda na responsabilidade, que vai sendo assumida”.

A autonomia também é um elemento que o documento apresenta como habilidade sendo desenvolvida pela proposta da EJA-TEC: “com tempo e espaço flexibilizados, a distância não será um entrave para que estudantes acessem os conteúdos das aulas por diversas vezes, no local que lhe convier, permitindo-lhes a autonomia no processo de aquisição do conhecimento” (GOIÁS, 2019, p. 5).

Mas cabe questionar se apenas o fato da proposta da EJA-TEC estar alicerçada no modelo EaD garante o pleno desenvolvimento da autonomia do educando, segundo os pressupostos freirianos. O Programa EJA-TEC também aponta como principal vantagem proporcionar ao aluno a praticidade de poder estudar com a ajuda de um tablet, smartphone ou computador.

Porém, pesquisas revelam que a desigualdade social se instala também no campo do acesso e domínio das tecnologias digitais de informação e comunicação. Dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC, 2019) de 2019 apontam que 20 milhões de domicílios no Brasil não possuem Internet (28%), atingindo 50% nas classes D-E.

Vem ocorrendo redução da presença de computadores nos domicílios e uma grande diferença por classe social: apenas 39% do total de domicílios possuem computador (notebook, computador de mesa ou tablet), sendo que nas classes D-E é de apenas 14%. Logo, o principal público da EJA (classes D-E) corre o risco de continuar não sendo atendido pelo Programa EJA-TEC, conforme apresentado.

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Assim, se a expansão do programa se der em detrimento do fechamento e/ou diminuição do oferecimento da modalidade presencial, a classe trabalhadora continuará excluída dos processos de escolarização em nosso país.

Referências

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018.

BRASIL, MEC. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Censo Escolar, 2019b.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Resolução CNE/CEB nº 4, de 13 de julho de 2010. Brasília, Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824, 2010b.

BRASIL. Decreto Nº 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF, 2017.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Parecer n. 11 de 10 de maio de 2000. Brasília: MEC, 2000b. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Resolução n. 01 de 05 de julho de 2000b. Brasília: MEC, 2000a. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação e Jovens e Adultos.

BRASIL. Resolução CNE/CEB 3/2010. Define as Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília, DF, 15 de jun. 2010a.

BRASIL.Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de dezembro de 1996. 3. ed. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2019a.

CETIC. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação. TIC Domicílios: Pesquisa sobre o uso das tecnologias da informação e da comunicação no Brasil, 2019.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD). Rio de Janeiro, 2019.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra (Coleção Leitura), 2011.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra: 2013.

GOIÁS. Secretaria de Estado da Educação. Projeto de Educação de Jovens e Adultos na modalidade de Educação a Distância (Projeto EJA-TEC), 2019.