Bárbara Isabela Soares de Souza
barbaraiss@ufg.br

EIXO
Educação Física e Dança

Apontamentos Iniciais Sobre o Ensino da Educação Física mediado por Tecnologias

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Resumo: O objetivo deste artigo é promover uma análise inicial sobre os desafios postos na realidade concreta para o ensino das atividades da cultura corporal na Educação Física escolar, as quais são representadas pelo Esporte, a Dança, a Ginástica, as Lutas, os Jogos, Brinquedos e Brincadeiras. Estes desafios estão relacionados ao cenário atual, o qual é marcado pela pandemia da COVID-19, de forma que as atividades escolares foram reorganizadas, adotando as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs). Para tanto, desenvolvemos um estudo teórico-conceitual fundamentado nos princípios da filosofia materialista histórico-dialética, da Psicologia Histórico-Cultural, da Pedagogia Histórico-Crítica e da Abordagem Crítico-Superadora. Os apontamentos iniciais indicam uma intensificação da desigualdade de acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade, tendo em vista a fetichização das referidas tecnologias, a supressão da mediação do professor e uma obliteração da oportunidade de vivenciar e dominar as ações corporais que compõe as atividades da cultura corporal.

Palavras-Chave: Educação Física escolar. Cultura corporal. Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

Introdução

O objetivo deste artigo é promover uma análise inicial sobre os desafios postos na realidade concreta para o ensino das atividades da cultura corporal na Educação Física escolar, tendo em vista a adoção das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) como estratégia para retomada das atividades escolares no cenário pandêmico relacionado à COVID-19.

Partindo dos princípios da filosofia materialista histórico dialética, da Psicologia Histórico-Cultural, da Pedagogia Histórico-Crítica e da Abordagem Crítico-Superadora, concebemos a educação escolar como lócusprivilegiado de apropriação do conhecimento acumulado historicamente pela humanidade, o qual deve ser acessado por todos os seres humanos.

Contudo, os múltiplos determinantes que compõe a realidade culminam em uma desigualdade de acessos, limitando a formação humana dos sujeitos pertencentes à classe dominada. Sendo assim, realizamos três apontamentos sobre o atual cenário, indicando uma fetichização das TICs, uma supressão da mediação do professor e, ainda, uma obliteração da vivência e domínio das ações corporais que compõe as atividades da cultura corporal.

Diante disso, compreendemos que a adoção destas tecnologias na educação escolar contribui para uma intensificação das desigualdades de acesso, sobretudo, ao considerarmos o ensino da cultura corporal, representada pelo Esporte, a Ginástica, a Dança, as Lutas, os Jogos, Brinquedos e Brincadeiras.

Metodologia

Este artigo caracteriza-se como um estudo teórico-conceitual, cuja análise está fundamentada pelos princípios da filosofia materialista histórico-dialética, da Psicologia Histórico-Cultural, da Pedagogia Histórico-Crítica e da Abordagem Crítico-Superadora.

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Resultados e Discussão

Para a Psicologia Histórico-Cultural (LEONTIEV, 1978) e a Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 2011), a educação caracteriza-se pelo processo de transmitir às novas gerações, o legado histórico-cultural acumulado pelos seres humanos. Cabe considerarmos que a educação pode ocorrer em diversos espaços e instituições sociais, desde as brincadeiras que são vivenciadas na rua, as experiências que se dão no âmbito familiar, os cultos religiosos, os programas divulgados pelos veículos de comunicação, dentre outras possibilidades. Há que se considerar que esta diversidade de espaços promove uma diversidade de processos de aprendizagem, tendo em vista que a intervenção do adulto não ocorre de forma similar nas diversas instituições sociais. Sendo assim, torna-se relevante reconhecermos a especificidade dos processos educativos que ocorrem no interior da educação escolar, a começar pelo princípio de que a mesma é ofertada presencialmente por instituições próprias de ensino.

Neste sentido, Saviani (2012) afirma que a existência histórica da escola está fundamenta na necessidade de promover o trabalho educativo, correspondendo ao “[...] ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens [...]”, de forma que cabe à educação escolar organizar os recursos didático-pedagógicos necessários à apropriação do conhecimento clássico e científico. Estão contidas nestas palavras as particularidades que compõe os processos educativos que ocorrem no interior dos muros da escola: é direto e intencional pela necessidade de sistematização, dosagem e sequenciamento dos conhecimentos, tornando-os assimiláveis pelos estudantes; corresponde à produção em cada indivíduo singular pela primordialidade de garantir que todos os seres humanos se apropriem de tal dimensão da cultura humana; é clássico e científico pela indispensabilidade de ampliar os horizontes dos estudantes mediante o acesso das dimensões mais amplas e complexas do conhecimento humano, objetivando superar o senso comum.

Sendo assim, podemos afirmar que o trabalho educativo não ocorre a leissez faire, de maneira que a figura do professor é condição sine qua non para concretização de tal atividade humana. Segundo Martins (2017), a organização do ensino promovida pela referida figura constitui-se como mediação impreterível no processo de apropriação do legado histórico-cultural, tendo em vista que é por meio da sistematização intencional do trabalho pedagógico, envolvendo a seleção do conteúdo e das ações didáticas a serem realizadas, que a educação escolar diferencia-se qualitativamente dos demais processos educativos informais, assistemáticos, espontâneos e cotidianos. Isto posto, Saccomani (2016) enfatiza o papel da educação escolar na formação humana, tendo em vista que a sua contribuição para a está radicada na transmissão intencional e sistematizada de conhecimentos que não são abordados por outras instituições sociais.

Diante dos conceitos mencionamos, defendemos que a inserção da Educação Física na educação escolar “[...] tem por finalidade ensinar atividades humanas, mais precisamente, ensinar os conhecimentos humano-genéricos produzidos e objetivados nas atividades da cultura corporal [...]” (NASCIMENTO, 2014, p. 28), as quais são representadas pelo Esporte, a Dança, a Ginástica, as Lutas, os Jogos, Brinquedos e Brincadeiras. Nesta perspectiva, esta disciplina escolar deve contribuir para que o papel social das instituições de ensino seja materializado, garantindo que cada indivíduo singular tenha acesso às atividades da cultura corporal, apropriando-se dos seus conhecimentos teórico-práticos mediante um trabalho pedagógico intencional e sistematizado.

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Sendo assim, compreendemos que cabe à Educação Física escolar contemplar três dimensões dos conhecimentos sobre a Cultura Corporal, de forma que a primeira dimensão diz respeito ao movimento lógico-histórico de constituição das atividades da cultura corporal, possibilitando aos estudantes compreender que todos os movimentos corporais, bem como, as atividades corporais institucionalizadas se constituem como um produto da atividade humana, desnaturalizando-os e relacionando-os ao contexto histórico e social que culminou em sua origem e desenvolvimento. A segunda dimensão concerne às características internas de cada objeto da cultura corporal, oportunizando aos estudantes o domínio de seus conceitos, objetivos, regras, fundamentos, implementos, variações e, ainda, os elementos técnicos e táticos que os compõe. Por seu turno, a terceira dimensão diz respeito à explicitação dos determinantes sociais, regionais, culturais, políticos, econômicos, midiáticos, performáticos, lúdicos, artísticos, de gênero e de saúde que influenciam na manifestação das atividades da Cultura Corporal. Isto significa afirmar que cabe à Educação Física escolar desvelar as características mais ocultas da realidade, possibilitando aos estudantes identificar e analisar as diversas relações que permeiam as atividades da Cultura Corporal na realidade concreta.

A filosofia materialista histórico dialética explicita uma inexistência histórica da igualdade de condições para o acesso ao legado histórico-social, fruto da luta de classes, cujo cerne está na exploração da força de trabalho da classe dominada, de forma que a divisão social dos processos produtivos contribui para uma divisão no acesso às produções humanas. Esta desigualdade se complexificou no atual cenário pandêmico, uma vez que diversas atividades sociais foram reorganizadas em caráter emergencial para atender às orientações de distanciamento social emitidas pelas autoridades sanitárias e, neste ínterim, situa-se a educação escolar. Diante disso, diversas instituições de ensino públicas e privadas vinculadas à Educação Básica e ao Ensino Superior aderiram às TICs como estratégia central para dar continuidade às atividades escolares, concedendo às mesmas um caráter não-presencial.

Como consequência das condições estabelecidas para que as atividades escolares sejam retomadas, identificamos aspectos que culminam na intensificação da precarização do acesso ao legado histórico-cultural, os quais são apresentados abaixo.

  1. Fetichização das TICs, as quais são consideradas à parte das relações sociais características do sistema de produção capitalista, concedendo às mesmas uma aparente neutralidadefrente às desigualdades sociais. Segundo Silva (2017), a racionalidade burguesa fundamenta-se em uma retórica que superestima o papel das TICs, tomando-as como receita e remédio para as problemáticas que assolam o atual cenário, obliterando a exclusão digital posta na realidade concreta. Desta forma, estabelecer tais tecnologias como estratégia de promoção das atividades de ensino se constitui como uma medida excludente, tendo em vista que um grande quantitativo de sujeitos pertencentes à classe dominada não terão acesso às atividades propostas, garantindo a manutenção da desigualdade de acessos aos conhecimentos produzidos pela humanidade.
  2. Supressão da mediação presencial do professor, transferindo aos membros familiares a responsabilidade de acompanhamento das atividades de caráter não-presencial. Para além disso, é relevante considerarmos que devido aos múltiplos determinantes que compõe a realidade, diversos estudantes não terão o acompanhamento de outros adultos para a realização destas atividades. Ao transferirmos este acompanhamento aos familiares ou suprimi-lo totalmente, estamos limitando as possibilidades de acesso às formas mais avançadas do conhecimento humano, bem como, a oportunidade de identificar e analisar a realidade concreta em suas dimensões mais amplas e profundas. Como desejar que o estudante analise as atividades da cultura corporal a partir dos seus determinantes sociais, regionais, culturais, políticos, econômicos, midiáticos, performáticos, lúdicos, artísticos, de gênero e de saúde sem a mediação docente?
  3. Obliteração da possibilidade de vivenciar as ações corporais características das atividades da cultura corporal, sobretudo, no que diz respeito ao domínio dos seus elementos técnicos e táticos. A adoção das TICs como estratégia de retorno às atividades escolares, elimina a possibilidade de vivência e domínio das ações corporais que compõe as diversas atividades da cultura corporal. Vejam bem, damos destaque ao termo “domínio”, tendo em vista que não é suficiente apenas vivenciá-las, sendo impreterível dominá-las, isto é, compreender os seus sentidos e significados, como controlar estas ações corporais e inseri-las intencionalmente no contexto de cada uma das atividades da cultura corporal.
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Considerações Finais

Mediante os três apontamentos realizados anteriormente, explicitando a fetichização das TICs, a supressão da mediação docente e a obliteração da vivência e domínio das ações corporais, alcançamos a compreensão de que o cenário atual limita a apropriação das atividades da cultura corporal, sobretudo, ao considerarmos as possibilidades de acesso postas à classe dominada.

Considerando a complexidade desta discussão, explicitamos a necessidade de serem realizados outros estudos, os quais poderão realizar demais apontamentos sobre os desafios deste cenário para a Educação Física escolar.

Referências

LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

MARTINS, L. M. Psicologia histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e desenvolvimento humano. In: MARTINS, L. M.; ABRANTES, A. A.; FACCI, M. G. D. Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico: do nascimento à velhice. Campinas: Autores Associados, 2016.

NASCIMENTO, C. P. A atividade pedagógica da educação física: a proposição dos objetos de ensino e o desenvolvimento das atividades da cultura corporal. Tese (Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

SACCOMANI, M. C. A criatividade na arte e na educação escolar: uma contribuição à pedagogia histórico-crítica à luz de Georg Luckács e Lev Vigotski. Campinas: Autores Associados, 2016.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2011.

SOARES et al. Metodologia do Ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012.