Karinny Gonçalves da Silva
karinny.goncalves@discente.ufg.br

Pabliny Marques de Aquino

Gisele Toassa

EIXO
Educação e Formação de Professores

Estudo Estatístico-descritivo do Processo de Medicamentalização e Trabalho de Professores da Educação Municipal Em Goiânia

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Resumo: O presente trabalho relata uma pesquisa realizada a partir de coleta e análise de dados extraídos da Junta Médica Municipal de Goiânia, para uma investigação sobre a medicamentalização do trabalho docente e como a escola comparece nesses casos. A construção teórico-metodológica da pesquisa dar-se-á no contexto da psicologia histórico-cultural. O objetivo geral deste trabalho consiste em investigar relações entre as licenças dos professores da rede de Goiânia (2015-2017), medicamentalização e trabalho. Para tanto, foram realizadas análises estatísticas, construção de fichas-sínteses dos prontuários e uma análise de conteúdo das fichas. Como resultados da análise, observamos que 27% de todas as licenças são da categoria de transtornos mentais e comportamentais.. Além disso, 95% das licenças são solicitadas por professoras concursadas, brancas, casadas e com mais de 20 anos de docência. Outros resultados importantes são: a renda bruta, que se aproxima do salário mínimo necessário, o maior uso dos medicamentos clonazepam, sertralina e quetiapina, as causas de adoecimento estarem relacionadas a conflitos interpessoais na escola e violência, além do tratamento mental ser majotariamente medicamentoso e, em casos recorrentes, encaminharem-se para a readaptação.

Palavras-Chave: Professores. Medicamentalização do social. Medicalização.

Introdução

Em 1972, o conceito de medicalização foi proposto pela primeira vez por Irving Zola para se referir a uma expansão do fazer médico para novos domínios que diziam respeito aos problemas que antes eram considerados da ordem do espiritual, moral e legal.

No âmbito da escola, temos o lugar do professor que, atualmente, sofre com grandes cargas de trabalho, exerce funções que ultrapassam as funções de aprendizado e passam por uma desvalorização da profissão. Neste panorama, os maiores problemas apresentados por eles são os problemas de voz e os transtornos psicológicos. (FERREIRA, 2010).

A construção teórico-metodológica da pesquisa dar-se-á no contexto da psicologia histórico-cultural, que tem base na perspectiva marxista. O objetivo geral desta pesquisa consiste em investigar relações entre as licenças dos professores da rede de educação municipal de Goiânia (2015 a 2017), medicamentalização e trabalho.

Metodologia

A coleta de dados foi realizada por meio de fotos dos prontuários dos professores na ativa, lotados na Secretaria Municipal de Educação, os quais precisam conter algum registro de licença psiquiátrica (Escala F do CID-10) entre 2015 e 2017, e que apontem algum motivo oriundo do meio social escolar para tal solicitação.

Além disso, para a sua análise, utilizou-se do recurso de tabela dinâmica do software Excel para averiguar possíveis correlações entre variáveis e construir o perfil do professor que possui licenças da categoria F no CID-10.

Assim, selecionamos 109 prontuários para análise quali-quantitativa nos quais os professores em licença fizessem alusão à relação entre o trabalho e seu próprio adoecimento psíquico, a partir do cálculo de tamanho de amostra presente em BUSSAB & MORETTIN (2013), com 95% de confiança.

Resultados e Discussão

A partir dos dados obtidos na planilha da Junta Médica Municipal, foi possível a extração de tabelas sobre o número de licenças totais e da categoria F do CID (Classificação Internacional de Doenças) e o número de licenças por capítulo do CID. A partir dos dados, vemos que os transtornos mentais somam 27% de todas as licenças tiradas pelos professores.

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Outro ponto importante é o de que nota-se um aumento da proporção das licenças da categoria F. Tais achados se aproximam do encontrado na literatura sobre esta população (LEÃO et al, 2015). A tabela 2 apresenta a quantidade de licenças categorizadas nos capítulos do CID-10.

Tabela 1. Quantidade de licenças por capítulo do CID
Quantidade de licenças por capítulo do CID

Considerando os capítulos do CID, observa-se que a categoria de transtornos mentais e comportamentais (F) apresenta a maior quantidade de licenças, seguida da categoria (Z), e (M), de modo semelhante à população dos servidores municipais (LEAO et al, 2015). Analisando detalhadamente a categoria F, em específico, podemos perceber um grande número de diagnósticos de transtornos de humor/depressivos (59%), seguido de transtornos neuróticos, “stress” e transtornos somatoformes (36%).

É importante ressaltar acerca do regime de trabalho que, uma característica que pode ser específica dessa população é que a maioria dos professores com licença se encontram em um regime estável e concursado (69,5%). Tal situação é diferente de outros lugares no Brasil em que os professores contratados temporariamente são os mais adoecidos (FERREIRA, 2010).

Por meio dos dados da Junta Médica Municipal, observamos a predominância do gênero feminino nas licenças psiquiátricas (93%). Comparando tal proporção com a população total de professores do município, por meio da base de dados do INEP, percebemos que a proporção de professoras com licenças psiquiátricas é maior do que a proporção de professoras atuantes no município em cada faixa de idade. Além da questão de gênero, dois outros elementos interessantes para o perfil de adoecimento são o estado civil e a cor, que possuem uma predominância de casada (52%) e a predominância de “branca”, assemelhando-se aos dados de LEAO et al (2015).

A partir da construção de um boxplot, verificamos que, 99,3% dos valores recebidos pelos professores estão no intervalo de 1060,07 a 13568,23 reais, sendo que 50% deles estão concentrados em torno da mediana de 5340,41 reais, entre os intervalos de 4000 a 7727,27. Assim, podemos concluir que a maioria dos professores recebe por mês, de renda bruta, um valor dentro deste intervalo.

Comparado aos valores encontrados para todos os servidores (mais de seis salários mínimos), o grupo de profissionais da educação apresenta certa diferença, com uma predominância de 4,2 salários mínimos a 8,2 salários mínimos. Em comparação aos dados do DIEESE (departamento intersindical de estatística e estudos socioeconômicos), que no intervalo de tempo analisado na pesquisa, apresenta o valor de 3856,23 reais como salário mínimo necessário para suprir as despesas de um trabalhador e sua família (DIEESE, 2020), observa-se que, considerando os dados obtidos na pesquisa, após todos os descontos do salário, os val ores devem se aproximar deste valor mínimo calculado pelo DIEESE, sendo assim, isso poderia explicar a falta de atividades de lazer e da busca de terapias não-medicamentosas.

À luz dos dados obtidos dos professores, percebemos semelhanças e diferenças com o cenário brasileiro: em uma análise preliminar, constatamos que o clonazepam permanece em primeiro lugar com o mais receitado, entretanto, medicamentos antidepressivos como sertralina e antipsicóticos como quetiapina vêm ganhando força, com quantidades próximas do clonazepam. Considerando a localização das escolas em que os professores com licenças psiquiátricas trabalham, observa-se que os bairros com mais licenças são: Jardim Novo Mundo, Conjunto Vera Cruz e Bairro Liberdade.

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A partir dos dados levantados pela Secretaria de Segurança Pública (SOUZA, 2020) podemos averiguar que o Jardim Novo Mundo lidera desde 2013 como o bairro mais violento de Goiânia (em taxa de homicídios), seguido do Jardim Guanabara e do Setor Central. Outro levantamento, por regiões sanitárias, feito pelo “Estudo de Diagnóstico Socioterritorial de Segurança” (GONÇALVES, 2018), também apresenta dados que apontam a Região Noroeste e a Região Oeste como as mais violentas de Goiânia.

Tal dado reforça a evidência de um alto nível de violência nos bairros com mais licenças, já que o Conjunto Vera Cruz e o Jardim Liberdade fazem parte destas regiões. A violência aparece como causadora do adoecimento psiquiátrico no discurso de diversos professores de nossa amostra.

Além disso, a partir dos levantamentos de dados da pesquisa, sabemos que 39% das escolas da Região Oeste possuem algum professor com licença psiquiátrica, 38% na Região Noroeste, 35% na Região Sul, 34% na Região Sudoeste, 29% na Região Leste e apenas 10% na Região Centro-Campinas. Estes dados expressam um cenário de adoecimento generalizado nas regiões periféricas da cidade, em contraposição a um baixo número na região central.

Analisando os indicadores a partir não só dos dados empíricos, mas por meio dos contextos sociais, históricos e por meio da literatura, compreende-se que, no discurso das professoras, apresenta-se com frequência a ideia desta profissão como sagrada, como uma missão árdua e de sacrifício. Além disso, muitas vezes, sua identidade como professora é confundida com a materna, sentindo uma necessidade de atender a todas as necessidades dos alunos, como uma mãe.

Assim, tais papéis construídos socialmente foram naturalizados, fazendo com que as professoras busquem atender a todas as necessidades dos alunos e de sua família, mesmo antes das delas (VASCONCELOS & ANDRADE, 2003). Tal questão pode ser de suma importância para se compreender a maior quantidade de mulheres com licenças, além de seus conflitos com alunos e papéis de mãe em casa.

Atrelado à medicamentalização, vemos nesse processo também uma enorme burocracia, comparável ao que vive a personagem Josef K., no romance kafkiano “O processo”. Há uma impotência diante de um sistema completamente estruturado, com normas fixas, funcionários que seguem estritamente as normas, e sujeitos perdidos e alienados em um sistema com tantos procedimentos e normas (REGO; CUNHA; WOOD, 2008).

No processo de licenças, percebemos ainda que os professores só podem ter voz ao falarem os códigos do sistema: diagnóstico, sintomas e medicação.

Discussão

A pesquisa apontou que os professores, ao serem questionados sobre formação continuada, a relacionam quase que na totalidade à formação em serviço, haja vista que nenhum deles mencionou os cursos de pós-graduação como fonte de formação continuada.

Ao que tange a pertinência da necessidade da formação continuada para a melhoria da prática docente percebe-se que todos os respondentes demonstram que esse processo formativo exerce influências pontuais no exercício da pedagogia, posto que o processo de ensino aprendizagem é ativo e interativo, sendo algo que perpassa por mudanças a todo momento.

Referências

GASKELL, G. BAUER, W. Pesquisa qualitativa com texto: imagem e som - um manual prático - Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

IMBERNÓN, F. Formação continuada de professores. Porto Alegre: Artmed, 2010.

____________ Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

Notas

1.Categorização foi realizada pelo sistema da JMM. Os pesquisadores possuem críticas quanto às categorias “mulata” e “parda”, que carregam um sentido pejorativo e omissivo, respectivamente, em relação a identidade negra.

2.É uma ferramenta gráfica para representar a variação de dados observados de uma variável numérica por meio de quartis.