Kátia Augusta Curado Pinheiro Cordeiro da Silva
katiacurado@unb.br

MESA REDONDA

Formação de professores na base nacional comum curricular: conceitos em disputa

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Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar a Base Nacional Curricular Comum de Formação de Professores (BNCCFP) tomando como eixo central, na Resolução CNE/CP 02/2019, o conceito de competência e propondo como forma de enfretamento a categoria de práxis. A metodologia empregada no estudo de base qualitativa foi a pesquisa bibliográfica e a fundamentação teórica consolidou-se em autores como Freitas (1995), Gramsci (1995), Vasquez (1977), Helena Freitas (2019), Curado Silva (2017), dentre outros. A análise aponta que a formação de professores proposta pela BNCCFP apresenta mudanças em eixos centrais do currículo das licenciaturas, compondo um novo perfil de profissional, aproximando-o de uma função técnica na perspectiva da competência. Entretanto, as possibilidades de resistência ao quadro de impactos da BNCCFP à formação inicial e continuada docente também estão no cenário e na agenda de entidades, favorecendo o movimento contra hegemônico à prescrição; à generalização e ao empobrecimento teórico-metodológico do planejamento; à dependência dos materiais didáticos e avaliações em larga escala; e à responsabilização docente diante de um currículo homogeneizante.

Palavras-chave: Base Nacional Curricular Comum da Formação de Professores. Competência. Práxis.

A Proposta de uma Base Nacional Comum Curricular na Formação de Professores

O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou a Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro de 2019, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). A referida resolução, apresenta quatro elementos centrais para a proposta de uma nova diretriz de formação de professores, sendo: i) padronizar as políticas e ações educacionais, neste caso, a formação inicial e continuada dos professores à Base Nacional Comum Curricular; ii) as demandas sociais contemporâneas, aprendizagens essenciais e direito de aprendizagem; iii) as competências profissionais a partir da Agenda 2030 da ONU; iv) as experiências internacionais.

Na análise da constituição da proposta de diretrizes para a formação de professores, é surpreendente a discussão de uma nova resolução, pois não terminou o prazo (prorrogado várias vezes pelo CNE) para a implantação da atual. Várias instituições consolidaram, neste momento, a reforma de seus currículos e projetos pedagógicos, não havendo tempo e proposta de uma avaliação das Diretrizes CNE/CP nº 2, de 1 de dezembro de 2015, nem mesmo no interior do próprio Conselho. Conforme Helena de Freitas:

O CNE disponibilizou para consulta em seu site, a 3ª versão do Parecer sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica. Chama atenção a capacidade da equipe que compõe a Comissão Bicameral de formação de Professores, de ignorar, secundarizar, desprezar o esforço de construção das DCNs de 2015 no interior do próprio Conselho, após dois anos de debates, consultas e audiências públicas, nos quais foram recuperadas e sistematizadas, não sem dilemas e conflitos no próprio CNE, concepções importantes construídas pelo movimento dos educadores ao longo dos últimos 40 anos de luta por uma política nacional de formação e valorização dos profissionais da educação. (BLOG DA HELENA, 2019).

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Também, nessa primeira análise, destacam-se os elementos aqui descritos e que discorrem para a necessidade da revisão das diretrizes para a formação de professores, demonstrando um alinhamento com as políticas neoliberais. Embora a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases Nacional da Educação – LDB nº 9.394/96 preconizem e reafirmem a construção de uma Base Nacional Comum, bem como, a importância de que um currículo nacional seja historicamente discutido nos fóruns educativos, apontando uma política que garanta a igualdade de acesso à educação de qualidade em âmbito nacional, apresentamos as críticas ao processo de condução e elaboração da BNCC-Formação de Professores que não “[...] resulta, portanto, de uma demanda das escolas ou de um entendimento prévio das necessidades da educação escolar [...]” (SANTOS, 2016, p. 6). Em decorrência do pensamento de um grupo de especialistas contratados como consultores, houve um espaço on-line para sugestões, mas sem um debate da comunidade escolar e acadêmica, conforme o alerta da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) para essa questão: “Consideramos que os professores e professoras de nossas escolas que já praticam currículos de variadas maneiras e com conteúdos plurais não foram devidamente ouvidos/as” (ANPEd, 2016).

A proposta é de padronização das ações políticas e curriculares, ou seja, formar professores para ensinar a BNCC, explicitando uma política de governo e a direção ideológica da formação alinhada aos princípios curriculares da base. É a forma de consolidar um currículo padronizado que permita o controle por avaliação externa da escola e do trabalho docente – conforme indicações internacionais, por exemplo, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) – denunciada por Pereira (2019, p. 1730):

Ao considerar o Capital Humano como elemento chave para o crescimento econômico, a OCDE difunde a ideologia da Sociedade do Conhecimento como um contexto político, econômico e social que exige a ampliação de competências e habilidades dos sujeitos para que estes tenham condições de empregabilidade em um mercado onde não há espaço para todos. Nesse percurso, utilizando o Pisa e seus resultados como instrumento de sua concepção tecnicista de educação a fim de padronização dos sistemas educativos, propõe uma série de medidas para os estudantes, professores, diretores e escolas, entre elas a padronização curricular.

Podemos perceber que alguns organismos internacionais, como o Banco Mundial, a Unesco, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, parecem apontar para um só caminho: o sistema educacional precisa passar por uma reforma, visando qualificar melhor as pessoas para enfrentarem um mundo mais competitivo, mais afinado com o mercado. Nesse sentido, é central o conceito de competência, o que nos encaminha imediatamente para a discussão do significado que essa noção adquire na Resolução nº 2/2019, explicitado no Parecer nº 22/2019.

O conceito de competência na Base Nacional Comum para a Formação de professores da Educação Básica (BNC-Formação)

Entendemos que o elemento norteador da BNC-Formação de professores é o conceito de competência que orienta o currículo e a concepção de professor, sendo assumida como a mudança de paradigma do século XXI, afirmando que

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no caso brasileiro, a construção de referenciais para a formação docente precisa dialogar com as dez competências gerais da BNCC, bem como com as aprendizagens essenciais que a BNCC garante aos estudantes da Educação Básica, 2 em consonância com a Resolução CNE/CP nº 2/2017... Isso implica que as aprendizagens a serem garantidas aos estudantes, em conformidade com a BNCC, requerem um conjunto de competências profissionais dos professores para que possam estar efetivamente preparados para responder a essas demandas. (BRASIL, 2019).

E ainda, a Resolução CNE/CP 2/2019 traz que “Art. 3º Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes” (BRASIL, 2020, p. 2). Efetivamente, competência em seu sentido mais geral tem sido traduzida como a capacidade de produzir uma conduta em um certo domínio. No campo do trabalho, de modo mais abrangente, a competência se relaciona ao desenvolvimento de potencialidades exigidas dos trabalhadores, necessárias para a efetivação de um agir eficiente e eficaz no atendimento às exigências das empresas. Estes entendimentos iniciais sobre a definição de competência se tornam básicos para a compreensão dos novos significados que ela incorpora, adquirindo materialidade no universo do trabalho e da educação.

As modificações do trabalho decorrentes das estratégias do modo de produção capitalista face à sua crise estrutural e, particularmente, à crise enfrentada desde os anos 1970 até os dias atuais, demanda ajustes de superfície em vários planos – o econômico, o político, o social, o cultural – trazendo graves consequências, dentre as quais destacamos a crise do trabalho abstrato, tendo como manifestações o desemprego estrutural e a precarização do trabalho. O plano da formação humana recebe contornos de enquadramento do novo tipo de trabalhador demandado pelo capital; nesse ponto, é possível identificar um quadro hegemônico de propostas educativas, na intenção da conformação técnica e ideológica do novo trabalhador às perspectivas da pedagogia das competências, baseada nas noções de empregabilidade e empreendedorismo.

O velho padrão taylorista/fordista, no qual o trabalhador não precisava de muitos conhecimentos nem habilidades para executar sua tarefa, tornou-se obsoleto em decorrência das transformações do capitalismo. A revolução tecnológica e os novos padrões de produção impõem a necessidade de um novo trabalhador, com habilidades gerais de comunicação, abstração e integração comum, e alto nível de conhecimentos gerais. São habilidades próprias para serem aprendidas na escola; não há espaço para aprender tudo na fábrica e apenas na fase adulta. O padrão de exploração cria novas formas de organização do trabalho que incidem também sobre a educação: “educar mais para melhor explorar” (FREITAS, 1995, p. 93).

A ascensão da noção de competência como princípio de organização curricular está vinculada ao modelo neoliberal, a mudanças no processo de produção e acumulação capitalista; ao paradigma da produção flexível que supõe ideias de autonomia, flexibilidade, transferibilidade e adaptabilidade a novas situações; ao saber que passa a ter alto valor em termos de capitalização. Assim, as atuais formas de organização social, transformações científicas e tecnológicas, mudanças na forma de organizações dos sistemas produtivos, desenvolvimento das políticas de emprego, e busca de flexibilidade nas empresas fazem emergir o conceito de competência não como uma noção nova, mas reatualizada em seu sentido e em seu significado

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Para melhor compreender a noção de competência no universo da educação, tendo em vista a impossibilidade de dar conta da amplitude que abrange sua concepção, apresentaremos de forma sucinta a tradição pedagógica francesa, orientada pelo aporte teórico cognitivo-construtivista piagetiano; a tradição pedagógica americana, fundamentada na vertente comportamental; e a tradição inglesa funcionalista.

A abordagem americana (BOYATZIS, 1982) sobre competências permanece próxima das versões contemporâneas do modelo taylorista/fordista, pois percebe a competência relacionada ao cargo, define competência como um conjunto superior de qualificações que suportam a atuação do indivíduo acima do esperado, e essas qualificações podem ser comuns a todos os indivíduos, ou seja, podem ser previstas e estruturadas. Destaca-se, dessa forma, que a corrente americana define competências tomando como referência o mercado de trabalho, enfatizando fatores ou aspectos ligados a descritores de desempenho requeridos pelas organizações, ou seja, um conjunto de qualificações ou características subjacentes à pessoa, que permitem a ela realizar determinado trabalho ou lidar com uma dada situação.

A abordagem francesa de competências, por sua vez, se enquadra próximo a um modelo construtivista, em que a aprendizagem é a engrenagem para o desenvolvimento de competências, focando na formação do trabalhador através de programas de formação profissional e qualificação (STEFFENS, 1999). Essa corrente vincula educação e trabalho, indicando as competências como um resultado de processos organizados de aprendizagem. A corrente francesa associa a competência não a um conjunto de atributos da pessoa, mas sim às suas realizações em determinado contexto, ou seja, àquilo que o indivíduo produz ou realiza no trabalho.

A corrente de pensamento inglesa ((WINTERTON; WINTERTON, 1999) sustenta um sistema funcionalista de formação e avaliação de competência, considerando que sua análise busca identificar quais são os elementos de competências exigidos para os cargos, ou seja, aqueles que as pessoas precisam ter ou desenvolver para serem consideradas competentes. Dessa forma, a análise funcional desenvolvida na Inglaterra define a função composta de elementos de competência, com critérios de avaliação que indicam os níveis de desempenho objetivados pela organização, sendo de extrema necessidade para a definição dos perfis dos trabalhadores, apoio aos programas de formação e avaliação para a certificação de competências.

No Brasil, dentro da esfera educacional, o termo competência apareceu primeiro com a publicação da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional nº 9.394/96, que incumbia à União o estabelecimento de competências e diretrizes para o ensino. No ano seguinte, foram lançados os Parâmetros Curriculares Nacionais que se detiveram a citar a palavra competência ou competências como algo a ser desenvolvido pelos estudantes, porém sem definir o termo ou explicar suas características, tampouco orientar como elas deveriam ser desenvolvidas na sala de aula.

Outra proposta para o ensino por competências está no Parecer CNE/CEB nº 29/02 e na Resolução CNE/CP nº 3/02 que tratam das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional de Nível Tecnológico. Nesses documentos, a competência é vista como a capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação conhecimentos, habilidades, atitudes e valores necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho e pelo desenvolvimento tecnológico.

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Na formação de professores, a entrada é via Perrenoud (2000), sociólogo suíço, com seus trabalhos desenvolvidos em torno das competências que se tornou grande referência para os educadores brasileiros. No Parecer CNE/CP 22/2019, esse autor é citado para embasar o uso de competências na formação de professores. O sociólogo define competência como a “faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações etc.) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações” (PERRENOUD, 2000, p.19). O autor se aproxima da perspectiva francesa construtivista e considera que algumas competências se desenvolvem em grande parte na escola; outras não.

Tendo como referência a epistemologia da prática (corrente americana), Schön (2000) propõe a formação do praticum reflexivo, cujo desenvolvimento do conhecimento profissional se baseia- em noções como a de pesquisa e de experimentação na prática. A designação “professional artistry” é usada pelo autor quando se refere às competências que os profissionais revelam em situações caracterizadas como incertezas e de conflito, muitas vezes por serem únicas, incertas e de conflito. O conhecimento que emerge nessas situações de modo espontâneo e que não pode ser explicitado verbalmente pode ser descrito, em alguns casos, por observação e reflexão sobre as ações. As descrições são diversas e dependem das linguagens e das propostas e podem se referir a sequências de operações, procedimentos executados, pistas observadas, regras seguidas, valores, estratégias e princípios que constituem verdadeiras “teorias de ação” (SCHÖN, 2000).

Os estudos sobre os saberes docentes também enfatizam a noção da imprevisibilidade do trabalho docente que vai se constituindo como categoria definidora da prática pedagógica; assim os saberes não formais e a reflexão da prática ganham centralidade na formação do professor. Nessa linha, temos a produção de Perrenoud (1999; 2000), Tardif (2002) e outros que advogam a epistemologia da prática, dizendo que a formação de professores deve se orientar por essa epistemologia, pois a verdadeira teoria é aquela que está implícita na prática. Nesse sentido, a importância dos “saberes docentes” e das “competências” que colaboram com a vertente do professor reflexivo e vice-versa.

Entendemos que o termo ainda oscila dentre os conceitos, tem um construto teórico dependente das correntes explicitadas e ainda não está bem elaborado; o conceito já tem acompanhamentos e está ligado a adjetivos tais como comunicativa, estratégica, linguística, discursiva, profissional, e tantos outros. Assim, independente se funcionalista, construtivista ou comportamental, é fundamental que o tema seja estudado, fortalecendo dessa forma as discussões.

A temática competência, independentemente de sua vertente e no referido documento, é revelada nas noções do “fazer bem feito”, do “aprender”, do “aprender a fazer”, e adquire força e visibilidade pela sua inserção nas políticas de formação de professores. Nesse sentido, competência se traduz por alguns componentes básicos explícitos na lista de competências e habilidades, quais sejam: a) a capacidade de saber mobilizar; b) a utilização de múltiplos recursos; c) a resolução de situações-problema; e d) inovação/criatividade. No que se refere à BNC-Formação de Professores, não há no Parecer ou na Resolução uma definição do termo competência; entretanto, aponta três adjetivos de competência: i) para lidar com as características e desafios do século XXI; ii) digitais; iii) socioemocionais.

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O desenvolvimento de competências permite aos estudantes lidar com as características e com os desafios do século XXI. Os adultos, mas, sobretudo, as crianças e os jovens estão imersos em um contexto de um mundo VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity e Ambiguity, em português: volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, respectivamente); e esses fatores, alinhados com os avanços das tecnologias de comunicação e informação, demandam o reconhecimento e o desenvolvimento de competências que permitam aos estudantes, não apenas acessar conhecimentos, mas saber selecioná-los, correlacioná-los e criá-los, o que exige competências cognitivas de maior complexidade. Soma-se a esse cenário a necessidade de desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que possibilitem aos estudantes compreender e construir relações com os outros e consigo mesmo de modo confiante, criativo, resiliente e empático, para citar apenas alguns exemplos. As competências, conhecidas como socioemocionais, são compreendidas como as capacidades individuais que se manifestam de modo consistente em padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos. Por algum tempo, acreditou-se que essas competências eram inatas e fixas, sendo a primeira infância o estágio ideal de seu desenvolvimento. Atualmente, com o avanço da psicologia e da neurociência, sabe-se que o desenvolvimento humano é complexo e permanente, e que tais competências são passíveis de serem desenvolvidas ao longo da vida dos sujeitos, até mesmo em idades mais avançadas,12,13 tanto em experiências de aprendizagem que acontecem na escola como fora de seus muros. As competências digitais também são essenciais para a docência no século XXI e para as perspectivas de qualidade educacional em uma contemporaneidade fundada em fenômenos digitais. (BRASIL, 2019, p.12)

A nossa leitura aproxima a BNCC- Formação de Professores com os discursos construtivistas que atribuem expressiva relevância aos esquemas operatórios mentais e aos domínios cognitivos superiores, buscando a construção e mobilização de uma multiplicidade de recursos. Porém, há elementos da corrente americana comportamental, pois há uma série de comportamentos-padrão ou de desempenhos previamente codificados em que o desenvolvimento das competências é colocado de forma individual e neotecnicista, como exposto nos princípios da organização curricular: “fortalecimento do protagonismo e da autonomia dos licenciandos para serem responsáveis por seu próprio desenvolvimento profissional” (BRASIL, 2019, p. 14). Dessa forma, o professor é colocado como responsável direto para que a escola forme o homem do novo século, sendo avaliado pelo sucesso e principalmente pelo fracasso da empreitada, designado como competente ou incompetente.

O processo de institucionalização da lógica das competências nas DCN de Formação de Professores, ao prescrever uma organização curricular nucleada por competências, institui, consequentemente, novas práticas educativas, fabricando outros referenciais de escolarização e preparação docente traduzido, prioritariamente, pelo caráter técnico, prático e utilitarista, vinculando o conhecimento somente à sua aplicabilidade, legitimando uma lógica que limita o sentido do conhecimento ao pragmatismo, já que seu valor é determinado por seu uso. Assim, depreende-se que a inserção de competências na formação de professores e na literatura pedagógica não é apenas como estratégia de intervenção com a finalidade de alcançar o desenvolvimento social, político e econômico, mas como práticas culturais e políticas que acabam por produzir e conformar determinados tipos de sujeitos, fazendo-os tornarem-se o que são, na perspectiva gramsciana de construção e consolidação da hegemonia.

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O estudo da questão da competência na BNCC – Formação de Professores precisa considerar um outro elemento que é a questão denominada no documento como “profissional”, referindo-se às competências específicas nas dimensões: conhecimento, prática e engajamento profissionais; aspecto esse que discutiremos a seguir.

Dimensão específica da competência: a análise dos componentes profissionais

No Parecer CNE/CP nº 22/2019, as dez competências gerais que são as referentes à BNCC da Educação Básica e

bem como as específicas para a docência, e as habilidades a elas correspondentes, compõem a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). As competências específicas se integram e são interdependentes; portanto, entre elas não há hierarquia. Tais competências são compostas por três dimensões: conhecimento, prática e engajamento profissionais (BRASIL, 2019, p. 15).

Ao citar as competências específicas, o Parecer deixa claro que o termo específico se refere à formaçao profissional do docente que, no documento, restringe-se a saber o conteúdo da BNCC da Educação Básica – competências gerais – e a desenvolver a habilidade de ensino ao estudar, ao aprender, e pôr em prática tais conteúdos. Este movimento é tomado como competência específica nas dimensões de conhecimento, prática e engajamento profissional.

O primeiro elemento que destacamos é que essas são dimensões extremamente genéricas e são comuns a qualquer profissão, o que nos leva a um segundo ponto fundamental na discussão que é a questão profissional deslocada do trabalho docente e que, mesmo na percepção do senso comum, apresenta elementos evidentes de precarização (LUDKE; BOINGE, 2004). De que profissão o Parecer está tratando? O processo de reconhecimento de uma profissão perpassa, por exemplo, pela formação em nível superior, sendo que, no referido documento, a preparação pode ser feita em diferentes instituições formadoras, até mesmo de níveis de ensino diferentes. Além disso, como formar um profissional cujo referencial de conhecimento é eminentemente prático? Isso não seria a formação técnica ou de um métier?

Enguita (1991) discorre sobre “semiprofissão” para se referir à atividade docente, em que sua tese central é a de que a carreira do professor está atualmente dividida entre o movimento por sua profissionalização e as condições sociais que indicam sua “proletarização”. A lista das fragilidades da “profissão” docente é enorme: condições de trabalho; entrada na carreira; plano de carreira; desvalorização social; falta de identidade de categoria; falta de um código de ética próprio; falta de organizações profissionais fortes, inclusive sindicatos; dentre outros. Tais movimentos apontam muito mais diretamente para um processo de desprofissionalização, caracterizada pelos elementos descritos acima, levando a atividade docente a um movimento crescente de “flexibilização”, “precarização”, “desvalorização” e “desqualificação” (OLIVEIRA, 2004, p. 1.129). Não estamos advogando contra a ideia de profissão docente, mas estamos nos fundamentando na premissa de que a questão central é o trabalho docente.

O trabalho docente contém a contradição da intencionalidade dominante, a oposição entre o saber do dominante e o saber do dominado que, ao executar a tarefa de construir conhecimentos por meio do processo ensino-aprendizagem, acaba por explicitar as condições sociais que determinam o caráter da exploração. Compartilhamos a tese de que o homem é produzido na relação do trabalho, portanto, só as mudanças neste nível podem transformar a realidade e consequentemente a consciência. Contudo, o ato de desvelar a realidade é um desses movimentos que podem construir possibilidades de novas práticas que não sejam circunstanciadas apenas ao saber fazer, limite do conceito de competências utilizado na BNCC- Formação de Professores.

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Na busca por entender as competências específicas, trabalharemos com três entradas importantes estudadas na França que traduzem modalidades diferentes de formação profissional por e na análise das práticas. A pesquisa foi realizada sobre os dispositivos de análise das práticas propostos pelo Institut Universitaire de Formation des Maîtres – IUFM – (Bretanha, França) ao longo da formação inicial dos professores, e problematiza a respeito das práticas profissionais docentes que permitiria aos indivíduos serem mais eficientes quando do retorno à situação de trabalho (WITTORSKI, 2014). No referido estudo, o autor aponta três configurações de profissionalização pela análise das práticas, quais sejam, i) tipo 1 – a lógica do desenvolvimento identitário: o ponto central é o desenvolvimento de um trabalho sobre a identidade “vivida”, ou seja, sobre a relação entre o estagiário e as situações que ele vive; ii) tipo 2 – a lógica do desenvolvimento das competências: trata-se de desenvolver a identidade “agida”, ou seja, a vertente das práticas profissionais mais do que a da relação dos indivíduos com as situações vividas; e iii) tipo 3 – a lógica da transferência de saberes: trata-se de desenvolver o que poderíamos chamar de identidade “sabida”, no sentido da aprendizagem de saberes teóricos (pedagógicos e didáticos) novos que deverão ser transferidos para situações de sala de aula, a fim de desenvolver novas práticas “organizadas”. Tais configurações estão descritas no Quadro 1.

Quadro 1.Configurações de profissionalização pela análise das práticas. Fonte: WITTORSKI (2014, p. 9).
Configurações (ancoragem dominante) TIPO 1
Lógica do desenvolvimento identitário
TIPO 2
Lógica do desenvolvimento das competências
TIPO 3
Lógica da transferência dos saberes
Intenções dominantes dos dispositivos - Trabalhar a relação “afetiva” sujeito – situação vivida.
- Trabalhar a identidade “vivida”.
- Desenvolver aprendizagens coletivas, centrar-se no ato de ensino e na relação professor-aluno, construir práticas.
- Trabalhar a identidade “agida”.
- Construir práticas “organizadas” (com referência a saberes pedagógicos e/ou didáticos).
- Trabalhar a identidade “sabida”.
Lógicas dominantes de funcionamento - Atividade dominante de descrição e de análise retrospectiva das práticas (quadros de referências éticas ou experienciais frequentemente mobilizados).
- Essencialmente discurso oral.
- O grupo tem uma função de suporte e de apoio.
- Modo de animação flexível.
- O animador tem uma função de facilitador (da livre expressão).
- Conhecimentos individuais, experiências pessoais frequentemente convocadas.
- Atividade dominante de descrição e de análise retrospectiva, mas também antecipadora a respeito das práticas (quadros de referências teóricas frequentemente mobilizados “para apoio”).
- Discurso oral, mas também escrito, vídeo.
- O grupo é um operador coletivo (coconstrução interdisciplinar).
- Modo de animação coletivo.
- O animador tem uma função de coanalisador, de organizador de sessão e de conselheiro.
- Saberes teóricos frequentemente convocados.
- Atividade dominante de análise antecipadora a respeito das práticas (os quadros de referência pedagógica e didática desempenham um papel de organização das práticas).
- Discurso oral, mas também escrito, vídeo.
- A dupla é um operador coletivo (coconstrução).
- Modo de animação estruturado.
- O animador tem uma função de transmissor (de saberes) e de conselheiro.
- Saberes teóricos (didáticos e pedagógicos) utilizados como referências.
Resultados produzidos (dominantes) - De ordem operatória: aprender a se escutar, a falar de sua prática, aprender sobre sua prática e a dos outros.
Transformar as práticas em conhecimentos de ação.
- De ordem identitária: questionamento sobre seu posicionamento profissional.
- De ordem cultural: descobrir as outras disciplinas e os colegas.
- De ordem afetiva: sentir-se seguro, desdramatizar situações, investir afetivamente nas situações de uma outra forma, autorizar-se a falar.
- De ordem operatória: aprender a trabalhar em grupo, aprender juntos novas práticas.
Transformar as práticas em saberes de ação.
- De ordem identitária: desenvolvimento de uma identidade coletiva, tomada de consciência a respeito da complexidade das situações e da variedade dos estilos de ensino.
- De ordem cultural: compreender as outras disciplinas e os colegas.
- De ordem afetiva: desenvolvimento de um sentimento de “solidariedade” e do
sentimento de compartilhar as mesmas preocupações.
- De ordem operatória: aprender a trabalhar em grupo, aquisição de saberes teóricos e aprendizagem de sua transferência.
Transformar os saberes teóricos em práticos.
- De ordem identitária: flexibilizar convicções por vezes rígidas.
- De ordem afetiva: sentir-se seguro no que diz respeito à implantação das sequências construídas.
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Esse quadro é resultado dos estudos de Wittorski (2014) numa pesquisa que desenvolveu sobre o trabalho com a prática profissional em cursos de formação inicial para professores. Embora o quadro evoque diversos comentários, centraremo-nos na questão das competências específicas citadas na BNCC-Formação de professores.

A coluna 1 indica o trabalho com prática profissional orientanda no sentido de uma apropriação de saberes teóricos que venham regularmente apoiar as práticas:

a atividade programada é de descrição retrospectiva das práticas analisadas, com o auxílio de quadros de referências experienciais e/ou éticos (provenientes das vivências dos animadores ou dos demais estagiários), o que contribui para colocar os estagiários em uma postura de relato de suas práticas e, portanto, de transformação dessas práticas em conhecimentos. Os resultados produzidos por esta dinâmica referem-se, essencialmente, aos polos identitário e afetivo (tranquilizar-se, modificar seu posicionamento profissional) (WITTORSKI, 2014, p. 903).

Já na coluna 2 e 3, há uma mudança de paradigma no trabalho com a prática profissional, pois há uma maior centralidade da prática como fonte de constituição do saber profissional. Especificamente no caso 2, a vivência de olhar para a prática profissional corresponde a uma lógica de profissionalização que privilegia um trabalho sobre as competências descrito na BNCC- Formação de Professores. Trata-se do compromisso de um trabalho de transformação das práticas em saberes de ação que têm uma validade mais ampla do que os conhecimentos de ação, pois possuem uma dimensão individual e subjetiva (WITTORSKI, 2014). Neste caso, o trabalho de reflexão e de análise sobre as práticas demonstra que os saberes teóricos são minorados ou inexistentes se sua intervenção não for justificada e nem necessária para a aplicação da prática, pois “centra-se no ato de ensino e na relação professor-aluno, construir práticas” (p. 9).

Aqui nos parece que a centralidade da prática por competências tem sido utilizada pela pedagogia das competências no seu intento de estimular os indivíduos a contribuírem socialmente com a humanidade, adaptando-se a melhores qualificações profissionais e às exigências do modo de organização social vigente – nesse caso, uma sociedade capitalista desigual – e, ao mesmo tempo, distanciando o professor da função social da atividade docente.

O estudo sobre dispositivos para o trabalho com a prática tende a funcionar com base no desenvolvimento de uma lógica da “reflexão sobre e pela ação” (WITTORSKI, 1998) na medida em que, com frequência, descreve retrospectivamente suas práticas. Vejamos que são três as dimensões da competência específica descritas no documento que revelam um dispositivo do uso da prática como centralidade na relação teoria-prática e centrado no saber fazer: i) Conhecimento profissional – está associado com a prática e se relaciona com o que existe na realidade concreta e com as experiências diretas de alunos e professores. Os conhecimentos estão na essência da competência e são imprescindíveis para a constituição delas. Portanto, depreende-se que estes conhecimentos estão relacionados as aprendizagens descritas na BNNCC da educação Básica, limitando o conceito de conhecer; ii) Prática profissional – a prática traz a oportunidade de experimentar durante o curso de formação, os mesmos processos de aprendizagem que se quer ensinar ao professor em início de carreira e o profissional em formação continuada, dirigindo a formação para o aspecto pragmático do saber profissional; e iii) Engajamento profissional – denominado no documento como profissionalidade; entretanto, a leitura nos permite compreender que se trata da busca constante da melhoria da prática, do sentido do trabalho e do reconhecimento da sua importância em que o responsável pelo desenvolvimento profissional é exclusivamente o professor.

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A concepção de competência específica, tendo o conhecimento, a prática e o engajamento profissional, está na vertente da epistemologia da prática em que a prática pedagógica como trabalho é ponto de partida e de chegada, e portanto fonte de formação inicial, atuação e formação continuada, fragilizando a atividade docente pela aplicação da teoria na prática, uma visão pragmática e frágil da relação teoria e prática. Não se trata de desvalorizar a prática; é evidente que não podemos prescindir da reflexão sobre a prática como elemento constitutivo do trabalho docente, e, portanto, da sua formação inicial e trabalhado. Porém, neste momento histórico, é preciso focar a atenção no significado de cada concepção, procurando ter clareza do projeto político que é defendido e que intenções essa concepção revela.

A competência como práxis

Como podemos enfrentar a proposta da BNCC-Formação de professores? Penso que temos uma saída teórico-prática que se refere à resistência da adesão à proposta, sendo que esta deve ser no trabalho em prol da revogação da normativa e concomitante a revelação do projeto que a subjaz, bem como a proposição de um projeto emancipador. Nesse sentido, é fundamental compreender e assumir a prática não como atividade útil e imediata, mas como atividade que tem elementos de utilidade e é mediatizada, ou seja, não se configura como mero fazer resultante do desenvolvimento de habilidades cognitivas, manuais ou psicofísicas; ao contrário, deve se aproximar do conceito de práxis, posto que depende de conhecimentos teóricos e intencionalidades. Há, portanto, que diferenciar e articular, estes que se constituem nos dois momentos que, dialeticamente, se relacionam no conceito de práxis: a teoria e a ação.

Assim, ao compreender a categoria competência – aqui entendida como a capacidade de desenvolver e articular conhecimentos teóricos e práticas laborais – desmistifica a concepção hegemônica que o simples domínio do conhecimento seja tácito, seja científico, não é suficiente para que se estabeleça a competência (KUENZER, 2000). Nesse sentido, mesmo circunscrita ao saber fazer, o conceito de competência tem dimensões bem mais amplas tais como relacional, ética, estética, política e afetiva, em que se apresenta como uma totalidade que abriga em seu interior uma pluralidade de propriedades, um conjunto de qualidades de caráter positivo, fundadas no bem comum, na realização dos direitos do coletivo de uma sociedade. (RIOS, 2003).

Dessa forma, torna-se a competência mais perspicaz e relacionada a uma função emancipadora do trabalho docente em que, além de um domínio do conhecimento de uma determinada área e de estratégias para socializá-lo, o professor possui um conhecimento de si mesmo e dos alunos, da sociedade de que faz parte, das características dos processos de ensinar e aprender, da responsabilidade e do compromisso necessário com a construção de uma sociedade justa e emancipada.

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Assim, compreendida na sua dimensão de práxis “é atividade teórica e prática que transforma a natureza e a sociedade; prática, na medida em que a teoria, como guia da ação, orienta a atividade humana; teórica, na medida em que esta ação é consciente” (VAZQUEZ, 1968, p. 63) . Isto posto, entendemos que o trabalho docente é práxis, pois é uma atividade humana carregada de intencionalidade e que tem na unidade teoria e prática a sua ação, em que ambas orientam a atividade. É teórica, porque sua ação é consciente de finalidades, intenções, propostas e projetos e é prática na medida que é ação ao colocar tais elementos na concretude do real. A prática como fundamentação da teoria deve transformar o social. Por outro lado, a teoria não é apenas uma justificativa para uma prática. A teoria pode adiantar-se à própria prática, influenciando seu desenvolvimento para uma prática transformadora (VAZQUEZ, 1968).

A oposição entre teoria e prática só ocorre em bases falsas, pois a não-passagem da atividade teórica para a atividade prática implica a negação da teoria, do mesmo modo que uma prática esvaziada de teoria não ultrapassa a barreira do senso comum “praticista”. Por conseguinte, ambas caminham juntas, pois é a teoria que esclarece e enriquece a prática e esta dá novas significações à teoria. Nesta ótica, é descartado o pragmatismo da competência circunscrita ao saber fazer esvaziado que se vincula à utilidade e que aponta como critério da verdade o êxito da ação prática do homem feito indivíduo.

Para conceber as características da formação inicial na competência da práxis, partimos da rede de relações que envolvem a prática dos professores: o conhecimento sólido da realidade social, o conhecimento do conteúdo, o conhecimento pedagógico, a instituição, o coletivo, os alunos, a organização escolar, as relações de trabalho, a política educacional na sociedade e o momento histórico da realidade. Defendemos, então, a concepção que a formação inicial não se circunscreve a dez competências gerais e três específicas, conforme a BNCC- Formação de professores; mas é o processo de articulação entre o trabalho docente, o conhecimento e o desenvolvimento profissional do professor, enquanto possibilidade reflexiva da práxis. Esse conceito tem como pontos de partida e chegada o trabalho docente com base em dois princípios: o primeiro considera que o trabalho (do professor) é princípio educativo e o segundo está baseado na perspectiva de que a atividade docente é trabalho, portanto práxis.

Entendemos que o cotidiano da atividade docente, e mesmo da formação inicial, remete-nos a conviver ou resolver os problemas que vão surgindo, referenciados no praticismo, no ativismo e numa competência aparente. Entretanto, necessitamos construir coletivamente espaços para uma reflexão densa em que a teoria seja repensada pela prática e a prática reelaborada nas suas intencionalidades. Assim sendo, o sentido da transformação na educação acontecerá a partir do conhecimento que promove a crítica à sociedade para a emancipação humana. Para tanto, o professor como agente de uma práxis transformadora, necessita de sólida formação teórica e de uma reflexão crítica sobre sua ação pedagógica. A formação inicial é um dos espaços para a práxis ser assumida como uma atitude do trabalho docente e profissional; e ser um valor constantemente presente de maneira articulada entre o pedagógico e o político social.

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A competência como práxis remete à tese de que o professor precisa ser um sujeito que elabora conhecimentos e tem que ser habilitado na capacidade de fazer análise da sua prática, fundamentado em um referencial teórico que lhe permita como resultado, a incessante busca de uma educação de qualidade, que necessita de professor qualificado. Ao formador caberia a responsabilidade, tanto com a própria formação quanto com as questões especificas do conhecimento pedagógico histórico e crítico específico para a docência. Esta é uma resistência que podemos constituir para e além da legalidade: trabalhemos com a competência como práxis.

Considerações finais

Remeto as três propostas iniciais de resistência: i) organizar coletivamente para a revogação da BNCC- Formação de Professores; ii) revelar o projeto de formação de professor e suas nuances; e iii) referendar e elaborar propostas emancipadoras de formação de professores. Nesse sentido, o artigo buscou revelar a questão da competência no referido documento e propor a competência como práxis para o trabalho na formação inicial de professores.

Sabemos do limite técnico imposto pela distribuição das horas na Resolução e no Parecer e pelo controle da avaliação externa; entretanto, podemos criar estratégias da auto atividade das massas, de sua autonomia, da cisão com a classe dominante, em guerras de trincheiras, utilizando a competência requerida como práxis. Entretanto, não basta a negação radical da ordem. É preciso também, e ao mesmo tempo, que se materialize a proposta de resistência; negar a velha ordem que significa também elaboração teórico-prática de um projeto de nova vida. Não um projeto em abstrato, mas construído segundo a condução possível do movimento do real. Para isso tudo, a formação de intelectuais orgânicos seria imprescindível. Que o façamos na resistência.

² Segundo informação no site: “[...] os pareceres relatados encontram-se em fase de revisão técnica, antes da publicação da respectiva súmula no Diário Oficial da União. Tão logo essa súmula seja publicada, os pareceres estarão disponíveis para consulta no site do CNE”.

³ Sugiro a leitura da Revista da ANFOPE v. 1 n. 2 (2019): Dossiê temático: Formação do Magistério da Educação Básica nas Universidades Brasileiras: institucionalização e materialização da Resolução CNE/CP n° 02/2015.

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Notas

1. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília. Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/9567141312757077