Estudo construcional de ter que e ter de
129Resumo
Esta pesquisa objetiva analisar e descrever as microconstruções ter que e ter de na perspectiva construcional em sincronia do Português Brasileiro, nas modalidades falada e escrita. Prototipicamente essas microconstruções atendem ao subesquema ter (x). Os corpora analisados são dados do Projeto Fala Goiana (FG), do Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro (NURC), registros de escrita retirados do Jornal O Popular (JP) na versão impressa, e dados de fala não sistematizados (NS). Realizamos a seleção e quantificação das microconstruções modais deônticas realizadas com ter que e ter de, hipoteticamente em apagamento de ter de e especialização de ter que. Tem como pressuposto as teorias da Linguística Centrada no Uso (ou Usage-based model), princípios do Funcionalismo Clássico, da Linguística Cognitiva e da Gramática de Construções. Os resultados mostraram que as microconstruções estão em processo de mudança, existindo uma especialização do ter que tanto na fala quanto na escrita.
Palavras-chave: Modalidade Deôntica. Construção. Microconstruções ter que e ter de.
Introdução
A pesquisa realizada se dedica a analisar e descrever em uma perspectiva construcional os usos de ter que e ter de no Português Brasileiro (PB), nas modalidades falada e escrita, com enfoque especial na variante falada em Goiás, reconhecida como Fala Goiana (FG). Abordando também sobre a Modalização em seus aspectos conceituais e a aplicação na fala, especificamente os deônticos. A partir de pressupostos de teorias de língua em uso, abrigadas na Linguística Centrada no Uso (LCU), especialmente da Gramática de Construções (GC), essas formas verbais são admitidas como construções.
As formas verbais ter que e ter de foram descritas a partir da funcionalidade de cada uma delas e tendo-se como referência a hipótese de ter que como uso mais frequente em função do apagamento de ter de, sugerindo uma provável especialização de ter que na função de modal deôntico no PB.
Tendo como referência a Gramática de Construções de Goldberg (1995; 2006), Croft (2001) e de Traugott e Trousdale (2013), bem como outros pressupostos que admitem que a língua se fundamenta em processos cognitivos como Bybee (2010; 2016), esta pesquisa concebe o fenômeno linguístico sob análise como construção, que é um pareamento simbólico e convencional de forma e função. (cf. Croft, 2001; Goldberg, 2006). As construções são interligadas umas às outras por vários elos ou links, formando uma rede.
A modalidade diz respeito ao modo pelo qual uma proposição manifesta, de alguma maneira, a opinião ou atitude do locutor sobre o conteúdo informado. É um nível linguístico no qual elementos sociais e interpessoais são mobilizados em torno da organização da informação. A modalidade é uma propriedade da frase enunciada e mantém relação necessária com o complexo de funções de que a sentença se reveste (NEVES, 2002). Segundo a autora, para a tarefa de investigação da modalidade cabe a indicação dos elementos em exame no seu uso.
O subesquema deôntico se organiza em níveis, do mais concreto para o mais abstrato, configurando, em um contínuo em nuances de: habilidade, capacidade, necessidade, obrigação e permissão. Temos observado o uso generalizado de ter que para representar qualquer um desses níveis, por isso, estamos trabalhando com a hipótese de uma especialização de ter que, conforme nas ocorrências em (1) e (5):
130(1) ele fazia uma compra e ía embora largava nóis aí::: pra nóis se virá… aí nóis… tinha que se virá né? (FG)
(5) Doc. Não, mas eu quero saber como é o processo... eu nunca vi... pode me contá...
Inf. Tem que plantá a semente... ( )... aí tem que:: bater o veneno pra::... na fava...controlá o mato...
Doc. Hurrum...
Inf. Na hora que tivé maduro tem que...rancá o feijão... batê o feijão pra podê... (FG)
Nos usos acima, podemos observar a alta produtividade do uso do verbo ter como modal deôntico assumindo a função modalizadora para expressar habilidade em (1) e (2), em (3) capacidade, em (4) necessidade, em (5) obrigação e em (6) permissão.
No Português Brasileiro convencionalmente conforme a gramática tradicional utiliza-se como padrão de modalizadores deônticos as construções com os verbos poder, dever e precisar com os sentidos de dever, obrigação e necessidade (BECHARA, 2006). Entretanto, de acordo com linguistas contemporâneos, há utilização das formas ter de e ter que comutadas dentro dos mesmos parâmetros de uso dos modais deônticos, como se observa em dados de fala e também em registros formais de escrita. Está havendo, então, mudança nas escolhas dos modais pelos usuários da língua, indicando uma predominância de ter que para construção deôntica.
Metodologia
Nesta pesquisa, realizamos a análise e a descrição de construções modais deônticas constituídas pelas microconstruções verbais ter de e ter que, as quais são muito utilizadas entre os falantes do Português Brasileiro.
Analisamos os dados de forma qualitativa e quantitativa. Assim, adotamos a seleção, a interpretação, a análise descrição dos dados do Projeto Fala Goiana (FG), do Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro (NURC), do jornal O Popular (JP), veiculado na Cidade de Goiânia e, ainda, trabalhamos como amostras não sistematizadas (NS) de dados de fala, obtidas no cotidiano goiano e registradas em diário de pesquisa.
A fala goiana foi eleita como corpus principal por estar mais próximo da pesquisa e por ter sido nela que verificamos a alta frequência de uso e de produtividade das microconstruções ter que e ter de como modais deônticos, bem como observamos também o predomínio de ter que em detrimento ao ter de.
Para a realização da análise consideramos os seguintes parâmetros: seleção, quantificação e comparação do quantitativo por corpus; análise da funcionalidade sintático-semântico e pragmático das microconstruções; análise da polissemia das microconstruções; análise construcional e proposição da rede construcional da modalidade deôntica no PB.
131Resultados e discussões
Ao analisar sobre o processo de construcionalização das microconstruções dos modalizadores deônticos no PB, falado e escrito, à luz da Linguística Centrada no Uso (LCU) e da Gramática de Construções percebemos que a microconstrução, ter que e ter que, tem sua origem séc. XVIII, em que o uso do verbo ter aparece como expressão modal, na forma ter de, e acoplado ao especialista que, oferecendo à microconstrução uma predominância de uso em 85%, das ocorrências detectadas. O uso dessa microconstrução impacta a representação deôntica no PB, alterando também a esquematicidade uma vez que de acordo com os dados apresentados estamos diante de um possível uso especializado. Vale ressaltar que mesmo na escrita ter que assume maior relevância de usos, contrariando os preceitos da GT, porém foi detectado que há uma resistência ao uso de ter que, observável pela opção de escrita pelo uso do verbo dever, deôntico prototípico para os linguistas contemporâneos. Vale ressaltar que devido a poucas ocorrências de ter + de, nas modalidades de fala como na escrita, não foi possível indicar muitas especificidades diferenciais entre as duas, porém constatamos que as duas microconstruções compartilham a maioria das propriedades descritas. Podemos afirmar que, como as duas construções codificam as mesmas funções no domínio modal deôntico, podem ser consideradas variantes de uma mesma variável, conclusão corroborada por outras pesquisas feitas sobre o tema.
A aplicação das teorias propostas da Gramática de Construções propiciou a constatação da modalidade como integrante de um domínio conceptual mais amplo e ter que e ter de como microconstrução configurando uma rede de operadores deônticos atendendo a diferentes nuances representada na figura 1 abaixo.
132Tendo como base os estudos funcionalistas e cognitivos entendemos que os modais se especializam tornando-se um domínio conceitual, constituindo sua própria rede, apresentada na Figura 2 a seguir. Constatamos também que as microconstruções são apontadas como semi-auxiliares, pois mantem traços de auxiliaridade com restrições em pontos fundamentais para uma categoria auxiliar. Consideramos para a percepção em rede compondo um nó advindo da auxiliaridade devido o percurso construcional
Com base na hierarquia das redes construcionais proposta por Traugott e Trousdale (2013), verificamos que as microconstruções no nível mais abstrato – pertencem ao esquema deôntico do tipo ter (x), o qual se especializou nos subesquemas ou microconstruções em ter que e ter de.
Quanto ao papel semântico desempenhado pelos verbos modais percebemos que na polissemia atribuída na configuração deôntica, as microconstruções, assumem as nuances de habilidade e capacidade, obrigação e simples necessidade, e as assumindo a intercambialidade, atendendo ao interseccionamento realizado. Como também há pactuação, ou amalgamento de ter + que nos usos da microconstrução, na medida em que, cada vez mais estão sendo utilizados como expressão não composicional, e os elementos de interposição não oferecerem barreiras semânticas.
A análise permitiu compreender que na modalidade falada independente do valor modal expresso, a microconstrução caracteriza-se por apresentar uma perífrase com verbos no infinitivo, cujo sujeitos com traços semânticos [+ humano], em contextos nos quais instanciam uma relação nos domínios da ordem, que pode ser explicada pela fonte da imposição advindo de uma circunstância externa, e nos domínios da habilidade e capacidade, da simples necessidade e da obrigação, que podem ser advindos tanto da fonte interna como externa, a justificativa corresponde à premissas do raciocínio inferência da modalidade deôntica.
133Referências
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