Os desafios do ensino remoto emergencial: um relato de experiência
97Resumo: O presente texto tem como objetivo apresentar os desafios colocados, pelo contexto pandêmico, aos processos de ensino e aprendizagem. O Ensino Remoto Emergencial emerge em um momento de crise sanitária impondo aos professores e às famílias uma maneira diferente de refletir sobre como ensinar e como aprender. Considerando os limites do ensino remoto e a partir de uma análise histórico-crítica da formação humana e da educação escolar, discutimos algumas experiências pedagógicas implementadas durante o ano letivo de 2020 no CEPAE (Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação). Com o apoio da Universidade, ofertamos as condições objetivas de acesso e conexão aos estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental, de modo que os resultados dessa experiência apontam que mesmo com os desafios do Ensino Remoto foi possível realizarmos um trabalho de leitura e escrita de forma significativa. Sem perder de vista os pilares orientadores de uma educação pública e de qualidade a todos os estudantes, descortinamos possibilidades no horizonte obscuro de recuo da democracia e de consolidação de formatos inibidores e excludentes da educação básica.
Palavras-Chave: Educação básica. Ensino Remoto Emergencial. Experiências pedagógicas.
Introdução
O contexto de crise sanitária implementado pela pandemia da COVID-19 impôs aos estudiosos e estudiosas da educação escolar a reflexão sobre uma maneira diferente de ensinar e aprender. No entanto, é fato que, em um momento marcado pelo crescimento e acirramento das desigualdades econômicas, das vulnerabilidades sociais, da insegurança alimentar e das vidas ceifadas, a educação das crianças tornou-se um desafio ainda maior, consolidando-se os limites para uma educação de qualidade a todos os estudantes.
A educação básica e, em especial, as etapas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, precisaram repensar as possibilidades materiais para disponibilizar o acesso e a permanência das crianças em um ambiente virtual de ensino que pudesse de algum modo contribuir com o desenvolvimento de cada uma delas.
Partimos de uma concepção histórico-crítica de formação humana que entende que são nas relações sociais que os sujeitos se formam e se humanizam. Mas, essa possibilidade de humanização depende diretamente da qualidade das interações sociais, dos estímulos e das atividades solicitadas aos sujeitos. Por isso, entendemos a escola como um lugar que precisa enriquecer a subjetividade dos alunos, ampliar sua concepção de mundo, desenvolver a autoconsciência para que lhes seja possível desvelar a realidade humana em suas múltiplas determinações. Nessa perspectiva, a educação tem como papel fundamental produzir a humanidade em cada indivíduo singular, promovendo a apropriação dos “instrumentos lógico-metodológicos cuja força e coerência sejam superiores àqueles que garantem a força e coerência da concepção dominante” (SAVIANI, 2009, p. 4).
Com tais premissas, o Ensino Remoto Emergencial oferecida pelo CEPAE (Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação) buscou manter a qualidade, de modo a diminuir os danos ocasionados pela pandemia. Nessa direção, compartilhamos neste texto, experiências pedagógicas relevantes que foram realizadas no ano letivo de 2020 na disciplina de Língua Portuguesa nas turmas dos 5º anos do Ensino Fundamental.
98Vale lembrar que a concepção de linguagem aqui adotada também está alinha à concepção histórico-crítica, a qual a linguagem é uma produção resultante da ação humana sobre a realidade (MARX, 2011) e do surgimento da necessidade de comunicação entre as pessoas. A apropriação da linguagem oral pelas crianças, por exemplo, acontece de maneira espontânea, por meio das pessoas de nosso convívio mais imediato. Mas, durante o seu processo de formação, o indivíduo pode estabelecer uma relação mais consciente do uso da língua, entendendo suas características e sabendo empregá-la adequadamente, isto é, fazer uso da linguagem oral na atividade de um ator de teatro, ou na atividade de um líder político.
Defendemos que a escola deve proporcionar essa relação mais complexa do indivíduo com a língua em suas mais diferentes formas de expressão e de usos sociais. O ensino de língua portuguesa oferecido no CEPAE é intencionalmente dirigido na direção de tornar a língua um instrumento de expressão afetiva e cognitiva e compreensão da realidade e de humanização.
Metodologia
O Ensino Remoto Emergencial implementado pelo CEPAE foi resultado de longos debates sobre como atuaríamos para ofertar o melhor possível aos estudantes, justamente em um contexto excepcional como o de uma pandemia. Desse modo, a premissa fundamental foi a de oferecer acesso e condições objetivas de estudo a todos.
Assim, organizamos o ensino em atividades assíncronas e síncronas. As atividades assíncronas foram realizadas a partir da elaboração de roteiros de atividades de todas as disciplinas. Tais roteiros eram postados no site oficial do CEPAE e também entregues presencialmente (seguindo todos os protocolos) na escola para as famílias que não tinham condições de acessar à internet e/ou de imprimir o material. Estabelecemos um período que variou entre quinze dias e um mês para a realização e devolução de cada roteiro. A devolução também era feita na escola e por meio das plataformas digitais da UFG, como o Moodle Ipê, e e-mails dos professores. A realização das atividades previstas nos roteiros era obrigatória e cabiam os professores e à equipe gestora o contato com as famílias que, por ventura, não entregavam o material.
Já as atividades síncronas oferecidas se caracterizavam como atendimentos gerais e específicos de caráter não obrigatório, cujo objetivo era reestabelecer o vínculo e a interação com as crianças e tirar dúvidas sobre os materiais disponibilizados. Os professores de cada disciplina estabeleciam um horário de atendimento para dialogar com os alunos o conteúdo dos roteiros de estudo. Esses atendimentos não eram obrigatórios, uma vez que nem todas as crianças tinham acesso à internet, equipamentos eletrônicos ou suas famílias não poderiam acompanhá-las por razões de trabalho. Vale lembrar que o CEPAE é uma instituição pública em que o ingresso se dá por meio de sorteio, de modo que temos um público bem diversificado de estudantes com classes sociais diversas, sendo este um aspecto importante a ser considerado em qualquer projeto de ensino-aprendizagem.
No caso do 5º ano do Ensino Fundamental conseguimos o acesso à internet de todos os estudantes, o que oportunizou uma experiência de aulas síncronas e maiores possibilidades de interação professor-aluna-aluno e de aprendizado. No próximo item trataremos com mais detalhes sobre a experiência de leitura e escrita realizada.
99Resultados e discussões
Em Goiânia as aulas presenciais foram suspensas em meados do mês de março em 2020. De repente, nós que somos do mundo da escola, professores e professoras dos Anos Iniciais tivemos que criar novas formas de aprender e de ensinar com sentido e significado para os nossos alunos e alunas, meninos e meninas dos Anos Iniciais. Um desafio imenso, porque a escola por si só é territórios das relações humanas onde estão presentes conflitos, ideologias, sonhos, afetos, vertentes que são tão importantes para a leitura de mundo das pessoas.
No CEPAE nos deparávamos sempre com a seguinte questão: é possível ensinar e aprender com sentido e significado sem o contato físico, sem as trocas efetivas e afetivas que tão comumente acontecem na sala de aula? O tempo passava e a pandemia avançava e precisávamos achar um caminho, um percurso metodológico que garantisse aos nossos alunos e alunas o acesso ao conhecimento de forma significativa.
Como muitas escolas públicas nos deparamos com crianças sem condições financeiras de acesso a um pacote de dados de internet, sem equipamentos eletrônicos; além de situações em que tiveram que lidar com o luto de parentes próximos que se contaminaram com o vírus da COVID-19 e com o medo de perder suas pessoas queridas. Tínhamos que pensar numa proposta de ensino que abarcasse as dimensões sociais, econômicas e afetivas.
Foram inúmeras horas de reuniões de planejamento pedagógico até definirmos um caminho, o primeiro passo. O primeiro momento foi o roteiro de estudos entregues às famílias e depois devolvidos na escola. Esta foi a forma que encontramos de levar algum conhecimento para todos os estudantes dos anos iniciais, principalmente aqueles sem acesso à internet.
Mais tarde, dois meses depois de retomarmos com o Ensino Remoto Emergencial, em outubro de 2020 iniciamos com os atendimentos síncronos. Nesse momento tínhamos os roteiros de estudo e os atendimentos síncronos não obrigatórios no contraturno. Nos atendimentos síncronos havia espaço para contação de histórias, as crianças poderiam ler os textos que escreviam, expressar opiniões sobre o que estavam estudando, além de ver e ouvir, ainda que pela câmera de um aparelho, os professores e os seus colegas. Muitas crianças não abrem as suas câmeras, este também é um dos desafios do ensino remoto em tempos de pandemia, fazer com que abram as câmeras para que possamos nos ver, interagir uns com os outros por meio de olhares, sorrisos. Sabemos que os olhares para e da outra pessoa são fundamentais para constituir quem somos. Paulo Freire (2002) nos ensina sobre a beleza que há nos encontros, sobre como nos tornamos melhores quando dialogamos com os outros. É importante insistir para que as crianças dos Anos Iniciais abram as suas câmeras para que compreendam a importância do olhar. Por outro lado, não podemos normalizar esse tipo de ensino, esse tipo de interação por câmeras de equipamentos eletrônicos, porque não se pode comparar ao encontro verdadeiro que se dá no ensino presencial no espaço da sala de aula, com sorrisos e bons dias.
100Os roteiros de estudo tornaram-se uma ferramenta importante para os professores e professoras do CEPAE, pois tivermos que voltar os nossos olhares para a elaboração de um material com uma abordagem criativa de conteúdo e que dialogasse com a criança e o seu mundo vivido. No começo do Ensino Remoto, esta ferramenta, foi o nosso principal canal de comunicação com os alunos, além da sequência de atividades, textos e tarefas, escrevíamos cartas e bilhetes para as crianças contando a elas de nossas vidas, dos desafios que também nós enfrentávamos com o isolamento social e com a vida em pandemia.
A escrita de cartas e diários são gêneros textuais que permeiam o projeto de ensino de Língua Portuguesa dos Anos Iniciais do CEPAE; no ensino remoto, esse tipo de atividade sobre a escrita do vivido esteve muito presente nas atividades dos roteiros de estudo. Pois os diários pessoais permitem que se fale de si, em geral, para si mesmo, é um tipo de escrita sobre formas de ver e sentir o mundo. Em tempos pandêmicos esse tipo de atividade permitiu que as crianças expressassem as saudades da escola, dos amigos, dos professores, as dores e as ausências vividas com um momento histórico como este.
Evidentemente que na escola esse gênero textual deve ser trabalhado com outras referências, é preciso que ofereça aos alunos exemplos de Diários. As turmas do 5º ano estudaram fragmentos da história de “Anne Frank: a biografia ilustrada”, pois de algum modo a história dela tem algo comum ao que vivemos neste momento: que é o fato de não poder ir à escola. Evidentemente que Anne vivia num contexto de guerra, de perseguição política, em razão disso ela e sua família precisavam se esconder e se isolar do mundo. No nosso caso com a pandemia precisamos nos isolar e esconder de um perigo que é um vírus, por essa razão não podemos ir à escola. Entrar em contato com a história de Anne permitiu que os estudantes fizessem relações, estabelecessem parâmetros de comparação, além de conhecer outra realidade histórica. Quanto mais repertórios de qualidade se oferece aos alunos mais qualificada e consistente será as suas escritas.
Na toada de uma escrita de si, outra referência importante para os estudantes do 5º ano que os ajudou a compreender os gêneros textuais biografia e autobiografia foi mergulhar na história de vida da Malala Youfzai no livro “Malala a menina que queria ir para a escola” de Adriana Carranca, com ilustrações de Bruna Assis Brasil. Assim como Anne, a história da Malala tem algo comum ao que vivemos que é não poder ir à escola, pois as meninas de seu país foram proibidas de ir à escola em decorrência do regime do Talibã. Malala, corajosamente escreveu ao mundo denunciando o que acontecia em seu país.
101Por meio dos roteiros os estudantes puderam estudar dois capítulos do livro “Malala a menina que queria ir para a escola”. Uma das atividades do roteiro consistia em escrever uma carta pessoal para a Malala, na carta se apresentariam, diriam quem são, contariam dos seus sonhos, do que desejam para o mundo e dariam suas opiniões acerca da coragem que ela teve ao lutar pelas meninas de seu país.
Depois desse processo de imersão na biografia da Malala, as crianças foram desafiadas a escrever pequenas biografias de mulheres que são importantes em suas vidas. Foi de fato um trabalho bastante significativo porque, além de compreenderem o sentido do texto biografia, escreveram textos muito interessantes com histórias de vidas diversas, como: de uma avó parteira que trouxe ao mundo dezenas de crianças, escreveram sobre professoras, mães, tias, amigas...
Acreditamos que a língua materna, como uma das linguagens, deve ser ensinada por meio dos diferentes gêneros discursivos que circulam nas esferas sociais do vivido. Sendo, este, um dos caminhos possíveis para que os nossos meninos e meninas das séries iniciais se apropriem da modalidade escrita da língua nos seus usos sociais. De modo que a finalidade de aprender a ler e escrever encontra-se no uso social, na comunicação estabelecida entre as diferentes pessoas e em diferentes situações. Capacidade de argumentar e defender ideias e pensamentos, sejam elas por meio da fala e da escrita.
São muitos os desafios de um ensino remoto, mas ainda assim acreditamos que é possível construir caminhos e maneiras de ensinar que estabeleça relações e sentidos com o mundo vivido dos alunos. Por meio dos roteiros de estudos, com os diferentes gêneros textuais, e das aulas síncronas os estudantes conseguiram expressar, na oralidade e na escrita de textos, seus pensamentos e opiniões acerca do momento pandêmico.
Referências
CARRANCA, Adriana. Malala a menina que queria ir para a escola. Ilustrações de Bruna Assis Brasil. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
JACOBSON, Sid. Anne Frank: a biografia ilustrada. Ilustrações de Érnie Colón; tradução de Augusto Pacheco Calil. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2017.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro: O processo de produção do Capital. v. 1. 29. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 41. ed. Campinas: Autores Associados, 2009.
Notas