Debatendo sexualidade e gênero na escola: um relato de experiência na residência pedagógica
23Resumo: O presente trabalho tem como objetivo descrever a experiência vivenciada por residentes durante o período de regência do subprojeto de Residência Pedagógica em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás, a fim de refletir sobre as contribuições para a formação docente. O subprojeto tem como tema “Educação em Sexualidade e Gênero na Escola” e as atividades desenvolvidas foram fundamentadas pela abordagem freireana. As atividades descritas foram realizadas no Centro de Ensino em Período Integral Dom Abel SU, em uma turma de 9º ano através da disciplina Iniciação Científica, que possuía como tema “Gênero e Sexualidade na Escola”. Devido a pandemia da Covid-19 e as restrições quanto às aulas presenciais, a regência foi executada de forma remota. As regências foram feitas em duplas e, ao todo, cinco aulas foram ministradas. Neste trabalho descreveremos especificamente como foi executada a aula da semana 3 sobre “Orientação sexual”.
Palavras-Chave:Residência pedagógica. Sexualidade e gênero. Orientação sexual.
Introdução
A formação de professores se dá através de um processo contínuo, constituído por fases que abrangem toda a carreira docente. Elevar a qualidade da formação inicial e continuada de docentes é um desafio, visto que uma parcela relevante de professores ainda não possui formação adequada (PORTELINHA; NEZ; BORDIGNON, 2020). Visando aperfeiçoar a formação inicial e continuada de professores, o Ministério da Educação (MEC) lançou o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e, mais recentemente, o Programa Residência Pedagógica (PRP).
Este trabalho tem como objetivo descrever a experiência vivenciada por residentes durante o período de regência do subprojeto de Residência Pedagógica em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Goiás (UFG), a fim de refletir sobre as contribuições para a formação docente. O subprojeto tem como tema a “Educação em Sexualidade e Gênero na Escola” e as atividades desenvolvidas foram fundamentadas pela abordagem freireana, através da leitura do livro “Pedagogia da Autonomia”.
A temática “Educação em Sexualidade e Gênero na Escola” aparece em consonância com as ideias de Freire, considerando que as instituições educacionais possuem um papel essencial, desde a educação básica, de formar cidadãos (ãs) que, com senso crítico, informação e empatia, compreendam as inúmeras dificuldades que as minorias sociais enfrentam na sociedade. Assim, a partir de uma formação sólida, humanizadora e emancipadora, esperamos que os (as) estudantes possam agir de maneira ética e respeitosa em relação à diversidade e pluralidade que caracteriza o ser humano.
A residência pedagógica e a formação de professores de ciências e biologia
O PRP, lançado em 2018 visando aperfeiçoar a formação dos discentes dos cursos de licenciatura, é uma das ações que integram a Política Nacional de Formação de Professores, gerenciada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). O edital de 2020, segundo do programa, traz como principal objetivo “induzir o aperfeiçoamento da formação prática nos cursos de licenciatura, promovendo a imersão do licenciando na escola de educação básica, a partir da segunda metade de seu curso” (BRASIL, 2020, p. 1).
24O subprojeto do curso de Ciências Biológicas da UFG tem como tema “Educação em Sexualidade e Gênero na Escola”. Um dos principais objetivos do subprojeto é “promover discussões relativas à educação em sexualidade e gênero, reconhecendo e valorizando a diversidade humana e o pluralismo de ideias e posicionamentos” (SOARES; MENDES, 2020, p. 5). As atividades desenvolvidas pelo subprojeto estão em consonância com as ideias presentes na obra “Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire. Nesta obra, o autor nos apresenta os saberes que ele considera necessários à prática educativa.
Partindo do saber “ensinar exige respeito aos saberes dos educandos”, buscamos estabelecer, através de uma prática dialógica, uma conexão entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos (FREIRE, 2018). Outro saber presente na obra, especialmente importante para o desenvolvimento do subprojeto é o de que “ensinar exige rejeição à qualquer forma de discriminação”. Segundo o autor, “a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia” (FREIRE, 2018, p. 37).
Por fim, destacamos o saber “ensinar exige a convicção de que a mudança é possível”. Neste tópico, Freire defende que nada está determinado e que a história, na verdade, é uma possibilidade. O mundo, estando em permanente mudança, não é, está sendo (FREIRE, 2018). Nosso papel no mundo, portanto, é o de constatar o que ocorre e, ao mesmo tempo, intervir como sujeitos. A partir do momento em que constatamos as discriminações presentes em nossa sociedade, como o machismo e a LGBTfobia, nos tornamos capazes de intervir na realidade e lutar por mudanças.
Sexualidade e gênero na escola
Os indivíduos possuem particularidades que os inserem de formas diferentes no mundo e nas esferas sociais. São com essas individualidades que nos constituímos não apenas como cidadãos, participantes de um coletivo comum, mas como seres com expressividade própria. Em uma sociedade democrática que valoriza a pluralidade de sujeitos, a diversidade é respeitada, mas não é isso que se percebe na conjuntura social brasileira, atualmente.
25Estimuladas apenas por características particulares consideradas “desviantes” ao que é normativo em nosso país, centenas de pessoas LGBT+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero e outras) morrem todos os anos, o que inclui homicídios e suicídios (GGB, 2020). Por motivação relacionada ao gênero, a brutalidade se repete: ao menos 648 mulheres foram assassinadas no Brasil, somente no primeiro semestre de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020). Isso demonstra que o preconceito, a discriminação e as estruturas de dominação e opressão são claramente expressivas no Brasil e não é de se espantar que isso se reflita não só em atos de brutalidade, como em outros aspectos sociais, inclusive nas formas de tratamento e de violência moral até mesmo dentro da escola, que não pode ser omissa. É essencial para a saúde da nossa sociedade que as discussões sobre temas tão importantes e impactantes na vida das minorias sociais sejam pensadas e planejadas já no processo formativo da educação básica, sendo transpostas como tema transversal a toda a dinâmica escolar, que deve espelhar uma instituição ativa no combate aos males provindos do desrespeito e da intolerância. Entendemos que, resumidamente:
Não incentivar a discussão de gênero e sexualidade na escola contribui para a persistência das desigualdades e discriminações sociais, bem como para expressões de violência, no espaço escolar ou em outros ambientes sociais. O debate sobre gênero e sexualidade na escola pode diminuir o machismo e a misoginia, conduzir à promoção da igualdade de gênero e da diversidade sexual, por meio do aprendizado do convívio com diferenças socioculturais (BRANDÃO; LOPES, 2018, p. 102).
E assim se percebe a significância de programas como o PRP e o PIBID para trabalhar tais temas que, de outro modo, poderiam demorar para compor ações ou quem sabe não aparecer nos conteúdos curriculares das escolas parceiras. Dito isso, a estratégia escolhida para trabalhar o tema “Educação em Sexualidade e Gênero na Escola” foi mais direcionada ao questionamento, debate e desvelamento das estruturas sociais e das características de expressão dos indivíduos.
Relato de experiência
As atividades descritas neste trabalho foram desenvolvidas no Centro de Ensino em Período Integral (CEPI) Dom Abel – Setor Universitário durante os meses de fevereiro e março de 2021. Devido a pandemia da Covid-19 que impediu a realização das atividades presenciais, o conteúdo do PRP, a participação com a escola parceira e suas atividades internas foram desenvolvidas de forma remota.
As regências foram feitas em duplas e, ao todo, cinco aulas foram ministradas através da plataforma Google Meet. As atividades foram desenvolvidas em uma turma de 9º ano através da disciplina Iniciação Científica, que possuía como tema “Gênero e Sexualidade na Escola”. Os assuntos das regências foram pensados da seguinte forma: semana 1 - percepções dos alunos em relação a temática do projeto; semana 2 - identidade de gênero; semana 3 - orientação sexual; semana 4 - preconceitos: homofobia, transfobia, estereótipo e etnocentrismo; semana 5 - machismo, misoginia, feminismo. Neste trabalho descreveremos como foi executada a aula da semana 3 sobre “Orientação sexual”, com duração de 60 minutos.
26O primeiro momento da aula se deu de forma expositivo-dialogada e teve como objetivo a apresentação e o debate de conceitos. Esse momento se iniciou com um debate acerca das diferenças dos termos “sexo biológico”, “identidade de gênero” e “orientação sexual” e a inexistência de razões naturais para que esses diferentes termos estejam obrigatoriamente associados. Prosseguimos discutindo sobre como a homossexualidade era entendida na Grécia Antiga, a fim de refletir como as práticas sexuais e o entendimento social sobre elas variam com as culturas e com o tempo. Concluímos que, a normatividade da heterossexualidade e da cisgeneridade é uma criação da cultura ocidental moderna e não deve ser tratada como algo natural e inerente às sociedades.
Finalizamos o primeiro momento apresentando alguns tipos de orientações sexuais – heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade e assexualidade – e problematizando o termo “homossexualismo”. Dialogando com os (as) educandos (as), pudemos perceber que esses ainda não haviam tido contato com essa problematização. Uma estudante refletiu sobre como a heterossexualidade nunca foi tratada como uma patologia, e, portanto, nunca foi chamada de “heterossexualismo”; esse apontamento é interessante e indica que a turma estava refletindo sobre o tema da aula de forma crítica, questionando pontos relacionados ao tópico de discussão, não se prendendo a discutir apenas os conceitos apresentados. Essa conversa crítica se intensifica no próximo momento.
O segundo momento da aula teve como objetivo problematizar frases estruturadas na ignorância e/ou intolerância em relação à orientação sexual, buscando, principalmente, desvelar o caráter de ataque que tais sentenças têm com a natureza da orientação sexual em sua essência. Discutimos as seguintes frases: “Por que você virou gay?”; “Tudo bem ser homossexual, mas não precisa ficar se exibindo”; “É lésbica porque não encontrou o homem certo”; “Você nem parece ser gay”; e “Aquela ali virou homem”.
Esse momento contou com uma participação maior dos (as) educandos (as), que levantaram diversas problematizações acerca do tema, incluindo percepções anteriores à aula e as próprias vivências. Uma estudante, que se disse identificar com o grupo marginalizado pela orientação sexual, foi especialmente ativa no debate, o que além de enriquecer a aula trouxe mais validez a todo o assunto apresentado, uma vez que contou com a fala de uma representante que é de fato atingida pelas frases em seu contexto social.
No momento final da aula, passamos um trecho do vídeo “Homofobia no Quadro Vai fazer o quê? (Fantástico)” e propusemos uma atividade assíncrona, que consistia na formulação de um texto-resposta se colocando no lugar das pessoas no vídeo. Infelizmente houve pouca adesão dos (das) estudantes, visto que recebemos apenas uma atividade. Na atividade que recebemos, a estudante respondeu que chamaria a polícia caso presenciasse um casal gay sendo agredido fisicamente; caso presenciasse agressões verbais, a estudante defenderia o casal dizendo a seguinte frase: “independente da opção sexual devemos respeitar as pessoas”. Apesar da aparente preocupação da estudante, é importante ressaltar que o termo “opção sexual” é incorreto. Visto que as pessoas não optam conscientemente por qual gênero sentirão atração afetiva e/ou sexual, o termo mais correto seria “orientação sexual”.
27Finalizamos a aula satisfeitos com a participação dos (das) estudantes e com a maturidade de suas falas. Além disso, acreditamos que conseguimos alcançar os objetivos elencados anteriormente no planejamento. As dificuldades relacionadas ao Ensino Remoto Emergencial (ERE) e à necessidade do uso das ferramentas digitais não influenciaram, aparentemente, de forma a comprometer a qualidade da condução das aulas.
Trabalhar com pautas relacionadas à estruturas de opressão social é uma demanda que exige responsabilidade cidadã e pedagógica, e de forma ainda mais acentuada é a do (a) educador (a) que o faz na educação básica. Os cuidados com o tratamento dos temas de forma inclusiva e com valor às vivências dos (as) discentes foram, certamente, essenciais para que o prosseguimento da aula ocorresse de forma coletiva, dialogada e que não refletisse uma orientação vertical em referência ao conteúdo apresentado. A receptividade da turma com a temática da aula foi significativa, indicando interesse em aprender mais, superando a curiosidade ingênua que caracteriza, por vezes, os saberes do senso comum, e reconhecendo a incompletude humana (FREIRE, 2018).
As críticas feitas às frases selecionadas provêm de um raciocínio de convívio social e do senso de empatia, com uma dinâmica de debate que não exigiu estudos prévios. Entendemos que essa estratégia não somente iniciou reflexões que por muitos (as) nunca haviam sido feitas – assim incentivando o senso crítico cotidiano sobre o assunto –, mas também facilitou espaços de fala e discussão, dinâmicas coerentes com as ideias freireanas.
A existência de projetos como o da Residência Pedagógica voltados a todos os níveis do ensino valoriza e enriquece o processo educativo. Com isso, esperamos que experiências como a relatada se somem ao decurso formativo tanto discente como docente, sob uma ótica de aprendizado que não considera nenhuma metodologia como ideal ou perfeita. Com o acúmulo de relatos de experiências como este, provindos de programas de docência na graduação, aumenta-se o acervo de possibilidades a serem estudadas e refletidas, servindo de inspiração para que outras dinâmicas e metodologias condizentes a outros contextos sejam desenvolvidas.
Referências
BRANDÃO, Elaine Reis; LOPES, Rebecca Faray Ferreira. “Não é competência do professor ser sexólogo”: o debate público sobre gênero e sexualidade no Plano Nacional de Educação. Civitas - Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 100-123, 2018.
BRASIL. Programa de residência pedagógica. Edital Capes nº 1/2020.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. 57. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
GRUPO GAY DA BAHIA (GGB). Mortes violentas de LGBT+ no Brasil: relatório 2019. Salvador: GGB, 2020.
PORTELINHA, Ângela Maria Silveira; NEZ, Egeslaine de; BORDIGNON, Luciane Spanhol. Política de Formação de Professores: Reflexões sobre o Pibib e o Programa Residência Pedagógica. Interfaces Científicas - Educação, v. 9, n. 1, p. 29-42, 2020.
SOARES, Zilene Moreira Pereira; MENDES, Michel. Subprojeto Interdisciplinar de Residência Pedagógica - Educação em Sexualidade e Gênero na Escola. Goiânia, 2020.
Notas
1. Em virtude deste trabalho ser um relato de experiência, esta seção compreende a descrição dos momentos vividos durante a realização da regência e a reflexão crítica acerca de sua importância para a formação de professores. Desse modo, não será apresentada as seções metodologia e resultados e discussões, pois é parte do relato em si.