Ana Gabriela Colantoni

O espelho de Oxum

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Resumo:No livro “Mulheres e Deusas”, o filósofo brasileiro Renato Noguera defende a importância de se trabalhar em afroperspectiva (como prática anti-racista) e reúne no livro mitos importantes para a criação do conceito contemporâneo de mulher, a partir das mitologias presentes em diversas culturas: grega, judaico-cristã, iorubá e guarani. Ao final do livro, o autor mostra a possibilidade de reescrita de um dos mitos para a construção de uma sociedade mais justa e menos patriarcal. Transpomos isso para o desenvolvimento de um metodologia didática aplicada em sala de aula do ensino superior. Apresentamos aqui um exemplo de sua aplicação concreta, em relação ao mito iorubá “O espelho de Oxum”.

Palavras-chave:Didática; Feminismo; Antirracismo; Filosofia; Cidadania.

  1. Introdução

Esse texto não possui um desenvolvimento tradicional em relação aos trabalhos mais comuns da história da filosofia. É um trabalho temático, que busca trazer ideias de várias autoras e vários autores, na medida que eu as julgo pertinente para a discussão. Exatamente por isso, ao invés de ter uma comportada hipótese, esse texto contém certos imperativos (ainda que implícitos), como prescrições de atitudes que nós (enquanto coletividade) devemos adotar no intuito de transformação da realidade, com a finalidade de uma sociedade com mais equidade. Assim eu faço menção a mitos, música e metáforas, bem como utilizo-me de filósofas e filósofos de origens diversas. Dessa forma, o objetivo deste trabalho é apresentar uma nova perspectiva filosófica, que leva em consideração mitos afro-brasileiros e práticas de libertação. Em outras palavras, o objetivo é recorrer à cultura ancestral brasileira, pensar nas mudanças de práticas pedagógicas e provocar transformações sociais emancipatórias. Esses três aspectos estão intimamente interligados na perspectiva da desconstrução da herança colonial, que valoriza apenas o branco, o rico, o homem, o heterossexual e o europeu, ao passo que inferioriza quem é diferente disso como a/o desviante, a/o errado/a, a/o mal, a margem, a/o que tem menos conhecimento, o/a que é digno/a de desprezo.

Embora as culturas judaico-cristã e grega tenham influenciado muito o ocidente e logicamente o Brasil, não é correto considerar somente elas como as constituintes do pensamento ocidental e propriamente da filosofia. Além disso, é preciso também explicitar o que Adilbênia Freire Machado (2019, p. 59) chama de tentativa de “epistemicídio, ou seja, a destruição dos modos de conhecer, de ser, de agir dos povos africanos e seus descendentes”, como processo intencional de colonização no Brasil. Assim, a tentativa de desqualificar qualquer influência do pensamento dos povos africanos por se tratar de pensamentos religiosos é uma expressão do racismo.

Ainda que não tenham conseguido realizar o epistemicídio por completo, por causa da resistência dos povos, o conhecimento desses povos de descendência africana foi colocado à margem. Assim, é preciso reagir com a valorização daquilo que foi escondido e com a explicitação do quanto as religiões de matiz africana, bem como seus ritos e danças influenciaram e influenciam a filosofia no Brasil, a partir de uma perspectiva contemporânea. Mostrar essa influência, fazer uma discussão a partir dessas referências é uma forma de ir contra a corrente do preconceito e de transgredir na direção de uma educação para a liberdade, que não aceita a amnésia social (HOOKS, 2019, p. 47). É preciso enfrentar o problema sem fugir de seus antagonismos e do desvelamento do privilégio dos brancos. Esse enfrentamento só é possível com a mudança de perspectivas: não precisamos eliminar os referenciais de autores brancos, mas precisamos incluir em nossas bibliografias autoras negras e autores negros, além de “denunciar os privilégios simbólicos e materiais que estão postos nessa identidade [branca]” (SCHUCMAN, 2020, p. 27).

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Também faz-se necessário uma postura “desestruturante”, que valorize o sujeito que intenciona o passado e que é livre para interpretá-lo, para fazer uma escolha no presente desse passado como algo intransponível ou superável, em uma projeção para o futuro. Vejamos o que Pereira & Paim (2018) propõe para o ensino de história e que pode ser perfeitamente transposto para a filosofia:

Nesse sentido, o estudo dos passados sensíveis e desestruturantes não significa apenas colocar o aluno diante de um conteúdo disciplinado e frio, mas diante de algo que desperta um posicionamento ético e político, de indignação frente à injustiça e à violação dos direitos humanos mais fundamentais. Logo, o estudo desses passados, a escrita da História sobre esses passados e seu ensino não são atitudes desinteressadas, mas voltadas ao futuro, um futuro de tolerância, de reconciliação com a justiça e com os direitos.

Nessa direção, na disciplina Tópicos Especiais em Filosofia 1, ministrada em 2019, para os alunos do curso de Filosofia do Câmpus Goiás - UFG, tratamos de um assunto muito urgente para a nossa época através especialmente da estética afro- brasileira: a questão da mulher, tendo como base o livro “Mulheres e Deusas” de Renato Noguera (2019), que reúne vários mitos de culturas diferentes (grega, judaico- cristã, iorubá e guarani) importantes para a constituição do conceito de mulher na contemporaneidade em nossa sociedade.

Com isso, desenvolvemos uma metodologia para aplicação na disciplina, que detalho a seguir: subdividimos os mitos em assuntos específicos e pedimos que cada um escolhesse um tema que tivesse mais afinidade ou interesse. Posteriormente, propomos o estabelecimento de paralelos entre os mitos que tratavam do mesmo tema e de conexões com outros textos de filosofia, preferencialmente aqueles que já faziam parte do interesse e das pesquisas de cada estudante, que pudessem contribuir para a discussão dos assuntos específicos. Além disso, foi proposta a conexão da discussão com alguma obra de arte, que poderia ser música, pintura, filme, etc. Por fim, era necessário recriar e reescrever o mito, ou seja, era necessário pensar em uma situação ideal que fosse capaz de “superar” (imaginar novas possibilidades para) os problemas percebidos na interpretação de cada mito. Essa reescrita deveria ser feita em uma perspectiva da filosofia existencialista, que valorizasse o possível vivido, ou seja, que remetesse a situações concretas ou até singulares. Embora a proposta fosse a de uma escrita criativa e literária, a intenção era a de transformação da realidade, pois, conforme Sartre, não pode haver ação sem a idealização de algo novo: é preciso que haja um “possível desejável e não realizado” (SARTRE, 2011, p. 537). Nesse sentido, podemos dizer que, não basta a compreensão das atrocidades históricas, é preciso conceber-se como agente transformador, o que não é possível sem o processo criativo.

Além disso, a produção de cada aluno poderia ser uma espécie de material didático para ser utilizado por professores do ensino fundamental e médio.

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A seguir, apresento uma aplicação dessa metodologia, como modelo do trabalho solicitado aos alunos. A escolha do tema para essa aplicação foi a sororidade e eu escolhi dois mitos africanos com menção a esse assunto. Ao final, faço a reescrita de um deles. O objetivo foi o de apresentar o tema do feminismo em afroperspectiva.

Queremos discutir a sororidade ou a falta dela nos mitos, bem como compreender como os mitos são importantes para a constituição da subjetividade pessoal e, obviamente, para o desenvolvimento do conceito de mulher na sociedade. Também queremos mostrar a importância de repensar esses mitos para a transformação da realidade.

Quando falamos da falta de sororidade entre as mulheres, facilmente podemos nos remeter à mitologia grega, com a lembrança da relação de Atenas com Medusa, ou então com lembrança da famosa disputa entre as deusas sobre quem era a mais bela (Hera, Atenas e Afrodite). Mas também podemos encontrar elementos míticos importantes para a constituição da palavra mulher em geral, na cultura iorubá. Esses significados, não só descrevem, mas também constituíram um arcabouço de exigências relacionadas às vivências das mulheres em sociedade. Nesse trabalho, analisaremos dois mitos Iorubás que falam especialmente da disputa entre as mulheres, para depois analisarmos como isso se perpetua ainda nos dias atuais. Esse reconhecimento é importante, para, a partir dele, realizar o legado da ancestralidade negra: o reconhecimento do corpo como múltiplas possibilidades de escrita, de reinvenção e de transformação da realidade. Assim, beber no mito Iorubá, não significa sua assimilação para reprodução na vida, mas significa possibilidade de reinterpretação, de reescrita e de re-vivência. Essa proposta é inspirada na reescrita de Renato Noguera do mito de pandora, no livro “Mulheres e Deusas”.

Abro um parêntese para expressar que a questão que vou discutir aqui têm interferência do olhar ocidental sobre a cultura Iorubá. Como Oyèrónké Oyewùmí (2021) defende, em seu livro “A Invenção das Mulheres”, a questão de gênero não era uma questão vivenciada nessa cultura antes do século XIX. Segundo a autora, as diferenças anatômicas eram consideradas sempre em relação à reprodução, mas nunca em relação aos papéis sociais e de desempenho de funções esperadas na sociedade. Como as culturas africanas em geral possuem uma força na oralidade, não sabemos ao certo como ocorre essa transmissão, as interferências das traduções, quantos acréscimos e modificações são feitas e quais as datas específicas dos mitos.

Mesmo sabendo disso, decidi visitar o mito iorubá que fala da origem da rivalidade entre as orixás femininas, que também está no livro de Noguera, na sessão que ele intitulou de “Oxum, Iansã e Obá: rivalidade e amizade feminina” (NOGUERA, 2017, p. 87-91). Eu o reproduzo sinteticamente aqui, com minhas palavras.

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Orumnilá havia se casado com Oxum, após ter sido consagrado como o deus da sabedoria. Mas esse casamento somente ocorreu a partir das promessas que Orumnilá fez de cumprir as exigências da formosa Oxum: de manterem-se em casas separadas, de ganhar um cargo no culto do próprio Orumnilá, que é o orixá da sabedoria (um lugar anteriormente exclusivamente masculino) e de não haver segredo entre eles. Porém, quando Oxum cobrou os segredos do Odu Ifá (que continha todos os caminhos que os humanos poderiam seguir em suas vidas), a terceira promessa de Orumnilá não foi cumprida. Com isso, Oxum injuriada pede ajuda a Exu, o orixá que abre caminhos. Exu atravessou as portas e estudou o Odu Ifá, trazendo um rascunho do segredo dos caminhos humanos para a deusa. Oxum, começa a estudá-lo e convida outras orixás femininas para fazer o mesmo. Assim criaram um grupo de liderança composto por Iansã, Obá e Oxum. Orumnilá fica sabendo do ocorrido e fica desesperado. Chamou Exu para se explicar e arquitetou um plano para acabar com esses estudos feitos pelas orixás femininas. Ele arquitetou que, se todas as orixás femininas estivessem casadas, elas não teriam tempo para seus estudos. Assim, convocou todos os orixás masculinos a se casarem, para que as orixás femininas não ficassem solteiras e com foco em atividades intelectuais e públicas. Com isso, quase todas se casam, exceto Obá, que era guerreira e não se preocupava com a beleza. Assim, Orumnilá e Exu convocaram o formoso e sedutor Xangô, que também não havia se casado e que pretendia permanecer livre e galanteador. Disseram que Xangô deveria se casar com Obá, mas ele a princípio não aceitou. Então prometeram ao guerreiro três esposas. Oferecem a ele Iansã, juntamente com Obá, além de uma terceira a seu gosto. Dessa forma, Xangô aceita se casar e escolhe como terceira esposa Oxum, que era justamente a esposa de Orumnilá. Com isso, Orumnilá preferiu abrir mão de sua esposa, do que correr o risco da permanência daqueles estudos das orixás femininas, pois sabia que, se eles continuassem, elas poderiam dominar os orixás masculinos. Foi assim que Oxum, Iansã e Obá passaram a ter o mesmo esposo e a disputar a atenção do marido. Dessa maneira, ficou instituída de maneira “perfeita”, a rivalidade entre as três deusas, que apenas tinham tempo para suas brigas domésticas, na disputa por Xangô.

Independentemente de quando foram constituídos e do quanto foram transformados, os mitos são expressões dos valores de determinada sociedade que se perpetuam ao serem reproduzidos, desde a infância. A partir desse mito, por exemplo, podemos constatar, comportamentos moldados e exigidos. Através desse mito, conforme ele foi escrito em nossa época, podemos analisar que a amizade entre as mulheres em algum passado era espontânea, até que não foi conveniente para o poderio masculino.

Podemos ainda verificar que o casamento pode ser muito mais pesado para as mulheres do que para os homens, que tiram vantagens dele, na contemporaneidade. Nas palavras de Beauvoir (2019, p. 190):

Admite-se, como outrora, que o ato de amor é, da parte da mulher, um serviço que presta ao homem; ele toma seu prazer e deve em troca alguma compensação. O corpo da mulher é um objeto que se compra; para ela, representa um capital que ela é autorizada a explorar. Por vezes ela traz um dote ao esposo, muitas vezes compromete-se a fornecer algum trabalho doméstico: cuidará da casa, educará os filhos.
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Continuando o parêntese que eu havia aberto anteriormente, Oyèrónké Oyewùmí (2021) afirma que, na cultura iorubá, quem paga o dote é a família do marido. Diz ainda que isso foi interpretado por alguns pesquisadores ocidentais como fruto do patriarcado, por entender a mulher como mercadoria. Mas ela fala que não observaram o fato de que o marido também devia obrigações de serviços à família da mulher, enquanto ele vivesse. Segundo ela, as esposas (em geral, exceto as da realeza) passavam a viver com a família do marido, mas, por outro lado, a herança era passada somente de mãe para filhos. O esposo não tinha direito às finanças da esposa e, muitas vezes, o comércio era mais importante para essas mulheres do que o cuidado com a casa.

Retomando a análise, o mito iorubá (da forma como está escrito, possivelmente com as interferências do ocidente) sugere que os homens têm medo da união entre as mulheres e da dedicação delas ao conhecimento e à vida pública. Ele também sugere que a rivalidade entre as mulheres não é algo natural, nem constituído a partir das próprias mulheres, mas fabricado a partir da necessidade dos homens e principalmente, do medo que eles têm de perder seus privilégios em uma sociedade sexista.

De acordo com as religiões de matriz africana, os orixás foram humanos, que, com suas vivências na Terra foram reconhecidos e passaram a ser cultuados. Assim, esse mito sobre a origem da rivalidade entre as mulheres não é uma mera estória, mas revela uma verdade histórica (ainda que metafórica) perpetuada até os dias de hoje.

E, de fato, casos de disputa entre as mulheres sob influência masculina são facilmente reconhecíveis ao longo do tempo. Inclusive, historicamente, segundo Federici (2019, p. 76-77), mulheres foram condenadas e satirizadas na Inglaterra, durante a Idade Média, por preferirem estar mais com suas amigas, do que com seus maridos. Na verdade, podemos dizer que as mulheres permanentemente foram ridicularizadas por agirem de maneira diferente das exigências dos homens e do padrão imposto culturalmente.

Podemos suspeitar do motivo da união entre as mulheres incomodar tanto: a união entre as mulheres faz parte de um processo útil e necessário para a transformação da sociedade patriarcal, pois coloca em cheque a subjugação das mulheres que estão na base do sistema capitalista e o alimenta. Ainda hoje há mulheres escravizadas pelos trabalhos domésticos: sem remuneração, sem décimo terceiro, sem férias, sem direito à aposentadoria, sem limite de tempo diário de dedicação. Outras mulheres ainda estão na base desse sistema por estarem nos trabalhos precários, sem garantias, ou, pelo menos, com diferenças consideráveis de remuneração em relação aos homens a respeito do mesmo tipo de trabalho (VERGÈS, 2020).

Outro mito ioruba que selecionei, e que dá o título desse trabalho, trata também da rivalidade entre as mulheres a partir da influência masculina. Esse mito é trazido em outra sessão do livro, com o título “O espelho de Oxum: o que uma mulher enxerga no seu reflexo?”. Renato Noguera (2017, p. 93-96) conta o mito do espelho de Oxum e faz suas reflexões: Oxum estava a banhar-se no rio e portava apenas seu espelho. Iansã, raivosa, chegou pronta para matá-la com sua espada, quando Oxum usou apenas o reflexo do sol, através de seu espelho, para atrapalhar a visão de Iansã e fugir.

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Renato Noguera usa esse mito para destacar principalmente que, diferentemente das histórias do ocidente (como a frase da madrasta: “espelho, espelho meu”, na história da Branca de Neve), no mito iorubá, o espelho é utilizado para transformação da realidade e não para intensificação do ego. Vejamos as palavras do autor:

À primeira vista, o espelho de Oxum pode ser lido como o signo da vaidade, a doce e sensual mulher que se ocupa preferencialmente das artimanhas das maquilagens faciais. Porém, Oxum se ocupa do que aqui chamamos de “maquilagem de guerra”. Diante de um cenário hostil, um mundo de conflitos declarados e implícitos, seu espelho é uma arma de defesa (NOGUERA, 2017, p. 95).

Noguera mostra que o espelho de Oxum é muito mais do que um artefato de beleza fútil. Assim, ele sugere que as mulheres vivenciem o mito do espelho de Oxum, absorvendo-o metaforicamente contra o machismo, através da consciência atenta:

A deusa que veste amarelo-ouro ensina e sintetiza que as mulheres devem recusar aquela pergunta que permeou as sociedades ocidentais por todo o século XX. Diante de uma mulher de sucesso, renomada por sua trajetória profissional, uma entrevistadora era capaz de perguntar algo como: “Ensine a receita de como ser bonita, mãe, esposa e uma executiva de sucesso? Como conseguir ter tudo isso ao mesmo tempo”. Ora, Oxum recusa essa pergunta, esse é o seu caráter revolucionário. O seu tom “mulherista” invalida essa interrogação. Não se trata de saber por que uma mulher consegue estar bonita e realizar outras atividades escaldantes e extenuantes. A pergunta adequada seria: por que um homem não consegue ser pai, se manter bonito, ser um profissional de sucesso e um marido/namorado/companheiro notável? (NOGUERA, 2017, p. 95).

A sociedade patriarcal criou muitas necessidades para as mulheres, como forma de reafirmar e transmitir a dominação masculina. A necessidade de beleza para a mulher não é uma criação para si mesma, mas uma criação dos homens para elas.

Segundo Simone de Beauvoir (2019, p. 108), até quando a jovem mulher mente performaticamente para os homens, com seus apetrechos que transformam seus corpos, elas estão a cumprir uma exigência do Outro:

Maquiagens, fivelas, cintas, “soutiens reforçados” são mentiras; o próprio rosto vira máscara: nele, suscitam com habilidade expressões espontâneas, ou uma passividade maravilhada; nada mais espantoso do que descobrir subitamente, no exercício de sua função feminina, uma fisionomia de que se conhece o aspecto familiar; sua transcendência se renega e imita a imanência; o olhar não mais penetra, ele reflete; o corpo não vive mais, ele espera; todos os gestos e sorrisos são apelos; desarmada, disponível, a jovem nada mais é do que uma flor que se oferece, um fruto a ser colhido. É o homem que a incita a tais enganos desejando ser enganado.

Para Beauvoir, mesmo quando as jovens mentem com suas transformações no corpo diante do espelho, elas o fazem por uma exigência do próprio homem de querer ser enganado. O cultivo da beleza social – da beleza dentro dos padrões e daquilo que é esperado – é um ato de submissão.

O que as mulheres podem fazer para se libertarem da opressão do espelho intensificador do ego? Utilizando-se de metáforas, Noguera sugere que as mulheres devem virar o reflexo do espelho para que os homens possam perceber que eles não estão à altura do que eles querem das mulheres, ou seja, que essa balança de exigências está em desequilíbrio.

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Ou, podemos dizer, talvez, que há possibilidade de nos inspirar no o mito de Oxum para transmitir o recado de que os próprios homens devam se olhar. Sob o meu ponto de vista, podemos fazer um paralelo disso com a necessidade de instigar os homens a assumirem seus lugares de fala, que é um lugar de opressão e de privilégios, de acordo com Djamila Ribeiro (2017). Assumir isso é um primeiro passo necessário de ser dado pelos homens, especialmente os brancos e heterosexuais, na luta contra o sexismo.

Vejamos um exemplo de uma música que vira o espelho para o homem, ou seja, que expressa e denuncia essa opressão silenciosa e naturalizada.

Em resumo, na música “O que não há”, de Siba, o eu-lírico introduz-se com uma voz masculina pedindo um café para a esposa, já que ele tinha trabalhado o dia todo e que queria ver o jogo na televisão. Ele pede para ela se sentar ao seu lado apenas no final do jogo, e ainda pede logo para ela não falar nada que o desagrade. Afirma que as coisas estão melhores para quem merece. Insinua que ela é responsável pelo sucesso dela mesma: se ela está mal, então é porque ela não se esforça. Pede para a mulher avisar à empregada que ela pode dormir, mas que ela deve madrugar, pois no outro dia bem cedo, ele precisa sair.

Uma música de um cotidiano aparentemente “normal” para a classe média, em que a violência desenha-se de forma sutil e manipulativa. Mas o compositor faz isso de propósito, justamente para fazer a denúncia logo em seguida.

A maioria das pessoas não considera um simples pedido de café para esposa como violência, justamente porque a violência doméstica está naturalizada. O trabalho doméstico é um trabalho escravo, não remunerado, sem direito à aposentadoria, às férias, ao décimo terceiro e sem limite de tempo diário para ser executado. Há uma imposição cultural de que o cansaço do trabalho “produtivo” masculino deve ser sempre respeitado. Assim, a possibilidade de uma esposa negar-se a fazer o café, ainda que exista de direito, se observarmos a imposição dos costumes, é praticamente nula.

Silvia Federici (2019, p. 93) relata que sempre existiu violência no núcleo familiar e que, inclusive “a violência doméstica contra as mulheres tem sido tolerada pelos tribunais e pela polícia como reação legítima ao não cumprimento, por parte das mulheres, de suas obrigações domésticas”. Hoje, no Brasil, felizmente temos a lei Maria da Penha para proteger as mulheres da violência doméstica (pelo menos da violência que não é sutil). Sabemos que essa lei só existe como reflexo do histórico de lutas das mulheres contra a naturalização da opressão, da violência física, psicológica e material em relação às mulheres.

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Mas nem sempre foi assim. Segundo Silvia Federici (2019, p.81), no final do século XVI, o que mais se esperava das mulheres era a obediência a seus maridos. Assim, foram instituídas punições cruéis contra as “rabugentas”. Segundo ela, foi criado um instrumento chamado de “branks” que, caso a mulher tentasse falar, ela teria sua língua rasgada. Nessa música que citamos, é mostrada a violência do silenciamento das mulheres sendo perpetuada, como se a fala do marido estivesse impregnada de um “branks” simbólico.

Para nos atentarmos que esse não é um problema somente de um passado distante, Silvia Federici também fala que, na década de 90, especialmente na África e na Índia, pôde-se observar o retorno da “caça às bruxas”. A filósofa menciona que, dentre os fatores que propiciaram isso, foi o crescimento das religiões “evangélicas neocalvinistas, que pregam que a pobreza é provocada por falhas pessoais ou por ações maldosas das bruxas” (FEDERICI, 2019, p. 97).

As bruxas nada mais são do que mulheres comuns, que possuem conhecimentos das plantas medicinais, que possuem seus caldeirões para fazer comidas e vassouras para os trabalhos domésticos. Beauvoir (2019, p. 229) também fala sobre essa assimilação da mulher comum com a feitiçaria: “Aceso o fogo, eis a mulher transformada em feiticeira. Com um simples movimento da mão – quando bate os ovos ou manuseia a massa – ou pela magia do fogo, ela opera a transformação das substâncias; a matéria torna-se alimento”. A associação à feitiçaria é o pretexto para a dominação das mulheres pelos homens.

Podemos fazer um paralelo disso com a música de Siba. Na letra da música referida, a princípio, o marido não se dá conta de como sua fala – de que sua esposa é a única responsável por seu sucesso pessoal – reproduz o sentimento de perseguição às mulheres, pelo fato de não compreender o patriarcado como estrutural, opressor e limitador da vida das mulheres. Esse patriarcado estrutural interfere na vida singular das mulheres em geral. Muitas mulheres, que têm suas psiques formadas desde a infância, especialmente com as histórias de princesas, acreditam que só podem buscar suas realizações pessoais no casamento e se não conseguem, sentem-se fracassadas. Por isso elas costumeiramente não protestam como deveriam contra a violência que ocorre dentro do casamento.

No final dessa música, o músico faz então a denúncia. O eu-lírico passa então a contar para mulher que ele tem um tal espelho que ele sempre se vê estranho. “Aquele espelho, amor. É um horror” e o coral canta “Quanta violência dá pra fingir que não há. Pra daí achar que dá pra viver”.

Com essas considerações, permito-me fazer a relação dessa música com o espelho de Oxum, para afirmar que, o espelho, além de não ter que ser um mero intensificador de ego, pode também chamar os homens a se verem como aqueles responsáveis pela opressão feminina.

Aos homens, não basta não serem machistas, mas para obtermos transformações significativas, é preciso que eles sejam pró feminismo, que não visa uma supremacia das mulheres em relação aos homens, mas apenas direitos, oportunidades e possibilidades de vivências similares sem a opressão costumeira. O feminismo somente existe porque as mulheres são subjugadas, oprimidas e violentadas pelos homens. Logo, em uma situação ideal, o feminismo não existiria, porque a violência contra as mulheres por parte dos homens também não existiria.

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Se por um lado, para uma sociedade mais justa, os homens precisam assumir suas responsabilidades, por outro lado, é também necessário que as mulheres deixem a alienação para uma percepção mais consciente. E nessa função, de visão objetiva de realidade, as mulheres também podem usar seus espelhos para observarem o quanto são manipuladas pelos homens, pois apesar de seus opressores serem os homens, cotidianamente, elas colocam as culpas de todas as suas mazelas em outras mulheres. Federici (2019, p.54), por exemplo, conta que mulheres também participaram da perseguição de outras mulheres, de forma forçada pelos homens. E, segundo Beauvoir (2019, p. 110):

[...]o preço de uma mercadoria diminui quando esta se torna demasiadamente comum: do mesmo modo uma jovem só é rara, excepcional, notável, extraordinária se nenhuma outra o é. Suas companheiras são rivais, inimigas; ela procura desvalorizá-las, negá-las; é ciumenta e maldosa.

Esse também é um ensinamento que podemos absorver do mito do espelho de Oxum, de que as mulheres devem deixar de se verem como mercadorias de escolha dos homens. Quando o motivo da rivalidade fica explicitado, as mulheres podem se unir contra aquele que, de fato, as oprime. E, como a orixá nos ensina a transformar a realidade, sugiro a transformação do próprio mito, da seguinte maneira:

Oxum estava a olhar-se no espelho na beira do rio, quando ela viu o reflexo de Iansã. Ela viu Iansã de forma completa. Ela viu o ódio de Iansã. Mas não viu só isso. Viu seu coração endurecido, de tanto sofrimento, provocado por Xangô. Ao mesmo tempo, viu toda a beleza e a força de Iansã. Foi então que Oxum, com seus encantamentos, virou-se com olhar emotivo e sincero para Iansã e mostrou-lhe seu reflexo. Iansã pôde ver tudo isso também nela mesma e compreendeu Oxum. Oxum aproximou sua cabeça ao lado da de Iansã e assim, ambas podiam ser vistas no espelho. Iansã também viu as dores e os encantamentos de Oxum. E por ela sentiu ternura. Com o espelho, perceberam que a inimizade entre elas não fazia o menor sentido para elas mesmas.

Com essa reescrita, juntamo-nos à bell hooks (2020, p. 39) para afirmar que a “sororidade ainda é poderosa”. Mas não podemos deixar de colocar em destaque a importância de pensar a sororidade como aquela que conecta raça e classe.

A sororidade feminista está fundamentada no comprometimento compartilhado de lutar contra a injustiça patriarcal, não importa a forma que a injustiça toma. Solidariedade política entre mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara o caminho para derrubar o patriarcado. É importante destacar que a sororidade jamais teria sido possível para além dos limites de raça e classe se mulheres individuais não estivessem dispostas a abrir mão de seu poder de dominação e exploração de grupos subordinados de mulheres. Enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo (HOOKS, 2020, p. 36).
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Se há pessoas que foram reunidas sob o nome de “mulher” a partir de uma opressão masculina, então, nada mais justo que uma união das mesmas, principalmente em torno daquelas que são mais oprimidas. Assim, é preciso dar destaque também ao novo conceito que Vilma Piedade (2017) cria, o de “dororidade”, que leva em consideração a importância da sororidade, mas diz que a irmandade entre as mulheres deve ocorrer em torno daquelas que mais sentem dor:

O caminho que percorro nessa construção conceitual me leva a entender que um conceito parece precisar do outro. Um contém o outro. Assim como o barulho contém o silêncio. Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E essa Dor é Preta (PIEDADE, 2017, p. 16).

Nesse sentido, não basta a nós, mulheres brancas, não sermos racistas, mas é preciso reconhecermos nossos vergonhosos privilégios e estarmos juntas com as mulheres negras na luta anti-racista. É preciso reconhecermos nossos privilégios materiais e simbólicos (SCHUCMAN, 2020, p. 63-72), o fato de que nunca tivemos que colocar nossa cor como uma questão em nossas vidas. É necessário assumir a responsabilidade de falar sobre isso e também de pensar sobre a desconstrução. Precisamos não só de estarmos de acordo com as ações afirmativas, participarmos das discussões, das bancas de heteroidentificação, mas também precisamos estar dispostas a subverter estereótipos, como parece defender Chimamanda Ngozi Adichie (2009), em “O perigo de uma história única”. Precisamos sair do pacto narcísico branco, que acoberta crimes de racismo, que procura camuflar ao invés de denunciar as injustiças, mas também temos que prestar a atenção em relação à apropriação cultural (WILLIAM, 2019): precisamos nos voltar para a cultura afro- brasileira, que também é nossa, mas também precisamos deixar coisas em troca (dinheiro, valorização, respeito, abertura de espaços para pessoas negras).

Se, sob alguns aspectos, nós mulheres brancas somos oprimidas, sob outros aspectos, temos privilégio. Mas pensar a emancipação da humanidade rumo à liberdade significa pensar sobre a emancipação de todas as pessoas. Para isso, é necessário compreender a interseccionalidade e as camadas de opressão: de gênero, de classe, racial, de espaço. Somente quando percebermos os níveis de opressão e soubermos reconhecer nossa posição, poderemos pensar e realizar aquilo que está ao nosso alcance.

Nesse sentido, se às vezes surge a necessidade de virarmos o espelho contra o opressor, outras vezes faz-se necessário virarmos o espelho para nós mesmas, mas de um novo modo: não para contemplarmos nossas belezas, mas para nos vermos sem as maquiagens que obnubilam as marcas da opressão causadas por nós mesmas. Compreender que não há meritocracia em um Estado patriarcal, sexista e conservador é um passo importante para a explicitação da necessidade das transformações políticas estruturais.

Esse giro do espelho é importante para compreendermos nossa posição. A posição dos privilégios apenas podem ser vivenciadas quando há o oprimido. Por isso é importante a perspectiva da emancipação coletiva. Em geral, quando me percebo em uma situação de privilégio, minha possibilidade transformadora no âmbito prático costuma ser mais significativa, por ter um alcance que não teria, se eu estivesse no lugar do oprimido.

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Vamos então às considerações finais. Nesse trabalho elaboramos uma proposta de metodologia antirracista e mostramos um exemplo de aplicação contra o patriarcado. Porém, há interferências da aplicação sobre o método, bem como do método sobre a aplicação, isso de maneira circular e autorreferente. Apesar desse círculo, o espelho do mito não recupera as infinitas cisões de maneira estéril. Ao contrário, ele está muito bem posicionado contra o eurocentrismo, contra o sexismo e contra o racismo.

Interpretamos o mito do “Espelho de Oxum” principalmente sobre o seguinte aspecto: o poder do espelho é o poder de um instrumento transformador. Assim, utilizamos de sua “magia” para transformar a forma de fazer acontecer o aprendizado, propriamente com a metodologia: uma metodologia desobediente, que foge às regras e questiona o padrão. O fortalecimento da imaginação, coloca em questão aquilo que está pré-estabelecido enquanto sistema complexo, mas também enquanto práticas do cotidiano educativo.

Contemplar a cultura Yorubá e ativá-la em nossas práticas é uma forma de reconhecimento do saber ancestral: um saber que está impregnado, mas escondido. É preciso dar ênfase nos rastros, naquilo que está apagado, pois isso é reconhecimento e prestação de contas filosóficas.

O espelho é aquele que exige mudança de perspectiva da branquitude: não cometer o epistemicídio, reconhecer a tradição e a ancestralidade negra, absorver a capacidade de transformação do próprio aluno, posicionado-o no presente, com seus próprios propósitos a serem desenvolvidos de maneira fundamentada e crítica. Essa capacidade de mudança é tão grande que podemos modificar o próprio mito. Essa foi a principal proposta de aplicação prática que apresentamos aqui.

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