Liula Gonçalves Coimbra de Oliveira

MITOLOGIA E CRIAÇÃO NO ENSINO DE FILOSOFIA

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Resumo:Este trabalho visa, através de uma pesquisa bibliográfica, trazer à luz o quanto os discursos vêm reforçando o preconceito, a submissão e a violência contra a mulher e como o patriarcado reforçou e ainda reforça a desigualdade de gênero a fim de que mudanças ocorram em nossa sociedade. E para isso, abordaremos alguns mitos que têm contribuído para a promoção das diferenças entre os papéis sociais do homem e da mulher. O mesmo será dividido da seguinte forma: primeiramente, será analisado o mito Guarani de Iara, em seguida, abordaremos sobre a caça às “bruxas”, o mito Grego de Héstia - a senhora do lar, tendo como eixo interseccional as opressões causadas pelo patriarcado e o androcentrismo.

Palavras-chave:Mulher; Mito; Patriarcado; Androcentrismo; Ensino

A mulher, há muito, é considerada por uma sociedade patriarcal e machista o ser mais fraco e menos inteligente que o homem. Consequentemente, o trabalho doméstico e a criação dos filhos são realizados majoritariamente por mulheres. Mesmo depois de muitos direitos adquiridos como o voto, o direito de não ter filhos, e ao trabalho remunerado, ela ainda sofre preconceitos. Preconceitos esses que vêm sendo reforçados através de discursos que vão passando de geração a geração, perpetuando assim as atitudes que oprimem, diminuem e subestimam as mulheres.

Tais preconceitos são reforçados nas histórias infantis, nos estudos dos mitos nas escolas e até mesmo dentro das igrejas, gerando no inconsciente coletivo que a mulher é a parte mais fraca, é a perigosa, é aquela que usurpa, que causa confusão, a menos inteligente e que portanto, deve ficar somente por conta dos filhos e da casa.

É evidente que existem as diferenças como as “anatômicas, embriológicas ou fisiológicas que serviram para nos excluir, coibir e inibir determinadas ações e posições sociais e culturais ao longo dos séculos” (AMITRANO, 2020 p.27). Entretanto, tais diferenças não podem ser o fator de mensuração para a capacidade cognitiva de uma mulher. Capacidades essas, que têm sido provadas no decorrer da história em todos os âmbitos da sociedade tais como na política, religião, educação, etc.

Segundo Geórgia Amitrano (2020, p. 43), “a narrativa mítica tem ajudado na construção histórica de um pensamento que afirma e mantém, na ordem de diversos discursos apregoados, a inferioridade da mulher[...]”. Portanto, é necessário empreendermos mais esforços a fim de desconstruirmos tais pensamentos, que são inculcados desde a mais tenra idade se tornando um problema estrutural. Ou seja, é na família, no jardim de infância onde o problema começa e encontra força no ambiente de trabalho e sobretudo nas igrejas, onde deveriam ser lugares de inclusão, enfim, em toda sociedade. Precisamos então, de ações didáticas e esclarecedoras nas escolas públicas e privadas, nas escolas bíblicas e onde for possível, para que o pensamento de que as mulheres sejam seres inferiores venha a ser suprimido.

Então, é necessário explicitar o quanto esses discursos têm trazido tensões ao gênero feminino pois, ao serem repassados reforçam a ideologia dominante da sociedade patriarcal e potencializam problemas na vida das mulheres.

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Ademais, esperamos que esse trabalho alcance as mentes, especialmente daquelas que se encontram ainda na mais tenra idade, nas escolas ou em casa, através dos pais e educadores a fim de que sejam renovadas e transformadas com o objetivo de dar à mulher o lugar de respeito que lhe é devido. Entretanto, para isso é necessário mudar o nosso olhar pois toda mudança ocorre a partir do reconhecimento de que algo está errado, e sem tal reconhecimento não haverá possibilidades de mudanças.

Compreendendo que não há pesquisa neutra e também que a pessoa que pesquisa apresenta uma intencionalidade, sendo a parte ativa da relação fenomênica. Sendo assim, penso que eu preciso dizer qual o meu lugar, quem eu sou, conforme a sugestão da filósofa:

Todavia, para construir esse discurso tese, essa possibilidade ontológica da existência de um ser outro, é preciso primeiro que eu me posicione. É necessária a minha fala de mulher, minha condição estrutural na sociedade, minha possibilidade de “dizer algo acerca de...” [...] Dizer da mulher, é no meu caso, sempre falar na primeira pessoal. Há algo de autobiográfico nos discursos de mulheres falando de outras mulheres (AMITRANO, 2020, p. 21-22).

Portanto, eu sou Liula, mulher latino-americana, heterossexual, cristã, lida como branca no Brasil, 59 anos. Há 25 anos, meu esposo e eu lideramos uma pequena igreja evangélica na periferia de Goiânia, onde mantenho contato com inúmeras mulheres, já que as mesmas são as maiores colaboradoras dentro das igrejas, possibilitando assim, identificar os problemas pelos quais elas passam.

Nesse país, estou em uma posição de opressão por ser mulher, mas reconheço a minha situação de privilégios por conta da cor, da religião e da orientação sexual. Então, a partir desse meu lugar de fala, eu apresento minha intenção nessa pesquisa: elaborar um trabalho que aborde questões relevantes e críticas, no intuito de despertar reflexões feministas no meio evangélico. Obviamente, eu reconheço que alguns assuntos eu não tenho intuito de abordar, pois penso que a reflexão filosófica pode entrar em choque com minha crença religiosa.

Entretanto, há pontos específicos que são possíveis de serem abordados e que possibilitam promover melhor qualidade de vida para mulheres evangélicas.

Penso ainda que a valorização da vida cotidiana também é fundamental para a produção de conhecimento e consequentemente, para transformações sociais pois, é no dia-a-dia que acontecem as tristezas pela falta de pão, pelo abandono social, pela morte etc. Enfim, é no cotidiano que nossa história real acontece.

Portanto, é necessário que as mulheres reflitam e se mobilizem a fim de que ocorram as transformações necessárias.

Primeiramente, gostaria de descrever como o dicionário conceitua o mito:

Mito (do grego mythós) é uma narrativa fantástica que possui o objetivo de explicar a origem de tudo aquilo que existe e é considerado importante para um determinado povo. A reunião dessas narrativas forma um conjunto de explicações sobre o mundo chamada de mitologia. É uma narrativa de caráter simbólico e imagético, ou seja, o mito não é uma realidade independente, mas evolui com as condições históricas e étnicas relacionadas a uma dada cultura, que procura explicar e demonstrar, por meio da ação e do modo de ser das personagens, a origem das coisas (MENEZES, 2021).

Estudar os mitos é indispensável para que possamos conhecer a história da humanidade, pois os mesmos carregam uma herança psicológica. O estudioso da psicanálise, Carl Gustav Jung, chama isto de inconsciente coletivo que é “a parte da psique que retém e transmite a herança psicológica comum da humanidade” (JUNG et al. 2008, p.138).

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Tomando por base os pensamentos de Jung, os mitos não pertencem somente aos povos antigos. Existe, porém, uma conexão com a complexidade da vida moderna. Sendo assim, “ainda lemos os mitos dos antigos gregos ou dos índios americanos, mas não conseguimos descobrir qualquer relação entre essas histórias e nossa própria atitude para com os ‘heróis’ ou os inúmeros acontecimentos dramáticos de hoje” (JUNG et al. 2008, p. 136).

Portanto, para entendermos esses dramáticos acontecimentos, é necessário aprofundarmos o estudo do vasto material mitológico, a fim de conhecermos mais profundamente a humanidade.

[...] o inconsciente coletivo é um legado construído ao longo da história, povoado por tipos arcaicos - os arquétipos – que emergem na consciência como imagens simbólicas. Para Jung, o arquétipo personifica certos dados instintivos da obscura psique primitiva do ser humano, as raízes verdadeiras e invisíveis da consciência. (NOGUERA, 2021, p. 15).

Por conseguinte, estudar os mitos, significa mostrar como vem sendo construído o papel social da mulher sob as influências dos mesmos, a fim de desfazer a imagem negativa que mulher é fraca, insensível e incapaz. Necessita sim, de uma releitura dos mesmos e trazê-los para a realidade moderna, a fim de reescrevê-los.

Outrossim, mudar a realidade que nos afeta significa que precisamos trazer à luz os fatos obscuros da história. Ademais, é inegável, assim como aponta Nogueira, Amitrano e Jung, o fato de que nossa subjetividade é afetada e influenciada pelos mitos. Assim, podemos pensar práticas possíveis de serem vividas que sejam capazes de transformações no mundo real e também as subjetivas.

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  1. Parte I: Um mito Guarani

No cenário mítico Guarani, Nhanderu criou Iara para ela proteger o reino das águas, dos rios, dos lagos, da neblina e da cerração. O pai, pajé do seu povo, tinha orgulho profundo da beleza, da coragem e da astúcia da filha. A mãe não fazia diferente: elogiava e cuidava dela como se fosse filha única. Os irmãos de Iara sentiam muito ciúme e inveja dela e tomaram uma decisão: matá-la para ter o amor dos pais só pra si. Um dos motivos que reforçava tanto a inveja como o ciúme eram os olhos e os ouvidos longos de Iara. Ela tinha uma capacidade fora do comum de enxergar, ouvir e perceber as coisas que estavam por acontecer. Ela tinha olhos ‘compridos’ e ouvidos ‘longos’. Na manhã em que planejavam atacar a jovem, começaram a discutir de que forma o fariam. Com ciúme e inveja, seus corações estavam quentes como a fogueira que recebe lenha por muito tempo. O sangue dos rapazes fervia; os olhos de todos eles estavam vermelhos como urucum. Nessa situação, a ‘cegueira’ ficara tão profunda, que tudo o que enxergavam transformou na vontade de assassinar a irmã. Ideias diferentes passaram a lutar entre si, todas buscando virar realidade. Cada irmão de Iara deu voz para uma delas. A primeira ideia: afogá-la. Mas como? Iara era uma nadadora fora do comum. A segunda ideia: feri-la mortalmente e colocar a culpa em um animal de caça. Mas como, se Iara era uma exímia caçadora? A terceira ideia: durante seu sono, sufocá-la sem deixar vestígios. Porém, Iara sempre teve sono leve e qualquer passo interrompia seus sonhos. Ainda sem saberem como levariam o plano ao fim, decidiram que a matariam ao anoitecer. Mas Iara tinha bom ouvido e captou todas as palavras de seus irmãos. A moça decidiu rápido e, antes que fosse atacada, defendeu-se, flechando mortalmente todos os irmãos. Em seguida fugiu. No mesmo dia, o pai de Iara deu-se conta de que a morte de seus filhos era obra dela. O pajé sentiu uma tristeza mortal, mas transformou o pesar no dever de castigar a filha tão amada e a perseguiu por várias luas. Iara escondia-se porque amava o pai e não queria confrontá-lo. Ela dormia camuflada, misturada com a floresta e seus habitantes. A moça não temia onça nem cobra; o único medo era o pai. Tomada pela culpa, passava dias sem encontrar sono. Mantinha-se a maior parte do tempo em vigília, à espreita, pronta para se defender de um ataque. Depois de sete ciclos de lua cheia, o pai encontrou Iara acampada entre as árvores. Em uma manhã em que o sol chegou manso e a chuva fina da noite tinha se retirado, o dia fresco embalou o sono de Iara. Assim, o pai amarrou a própria filha, arrastou-a até o encontro voraz entre os rios Negro e Solimões. Iara acordou com a queda nas águas e desceu como uma pedra até as raízes dos rios. O espírito das águas junto ao reino dos peixes protegeu Iara e a transformou em uma mulher-peixe. A partir de então, ela tem atraído homens para o fundo dos rios. Em geral, esses homens nunca retornam. Por isso, sua reputação permanece assustando quem passa pelo domínio de suas águas (NOGUERA, 2021, p.139-140).
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No mito acima, podemos observar várias mensagens de cunho psicológico como também filosófico. Verificamos o ciúme dos irmãos em relação ao pai com a irmã mais nova, pois por ser a preferida do pai, ela poderá ser a sucessora do mesmo, nessa cultura indígena. Então, diante do medo de serem liderados por uma mulher, os irmãos tramam contra ela.

Ademais, para que possamos perceber o medo dos irmãos de serem liderados por Iara - porque não é somente o ciúme e inveja que existe nessa trama-, é necessário um olhar muito mais profundo, um olhar de espanto, ou seja, um olhar filosófico. Quando fazemos a leitura de uma forma natural e corriqueira, vamos nos encantar com a moça que virou peixe, vamos somente nos indignar com o ciúme e a inveja dos irmãos. Porém, o problema é muito mais profundo do que se imagina.

[...] por outro, o foco é o gênero das pessoas envolvidas. Os irmãos estão em número indeterminado, mas, sempre no plural, são do sexo masculino, enquanto Iara, a única identificada com o gênero feminino, recebe explicitamente mais atenção do pai, um pajé alguém com posição social de status simbólico, político e religioso. Em outras palavras, em um território onde o poder político é masculino, os irmãos de Iara estranham a escolha do pai, que parece preferir Iara como sucessora (NOGUERA, 2021, p. 140).

Então, os irmãos ao perceberem que Iara, era a única mulher e poderia liderá-los, se irritaram a ponto de tramarem contra ela. Iara representa as mulheres que são “alvos de violência dos homens com quem tem proximidade afetiva e parental, devido à noção de que o poder político deve ser naturalmente masculino” (NOGUERA, 2021, p.141).

Ademais, estamos acostumadas (os) a ouvir somente a parte que nos convém saber. Ouvimos a parte em que Iara atrai os homens para o fundo do rio, porém não fica explícito o motivo pelo qual ela está no fundo das águas. Porém, Iara, é apenas mais um mito que se for lido sob a perspectiva feminista, mostra-nos claramente a opressão do poder patriarcal.

  1. Parte II: As bruxas

Primeiramente, a figura da mulher má, com nariz grande e voando em uma vassoura, chegou ao imaginário infantil através das histórias contadas nos livros ou nos filmes. Porém, pouco se fala ou se sabe sobre essa figura mítica que assusta os sonhos infantis.

Na imaginação popular, a bruxa começou a ser associada à imagem de uma velha luxuriosa, hostil à vida nova, que se alimentava de carne infantil ou usava os corpos das crianças para fazer suas poções mágicas – um estereótipo que, mais tarde, seria popularizado pelos livros infantis (FEDERICI, 2017, p. 324).

Entretanto, não é falado que as “bruxas” foram as mulheres executadas no começo da Era Moderna, na sociedade cristã, por serem curandeiras, por deter o conhecimento sobre as ervas, que tinham controle de seus corpos em relação ao ato sexual, bem como em relação à reprodução e que foram acusadas de terem pacto com o demônio e que por isto deveriam ser mortas. Diante disso, as acadêmicas feministas tentam explicar o fenômeno da caça às bruxas da seguinte forma:

[...] como explicar a execução de milhares de “bruxas” no começo da Era Moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres. [...] existe um acordo generalizado sobre o fato de que a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor (FEDERICI, 2017, p. 30).
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Para a mesma filósofa acima, (2017) “a caça às bruxas continua sendo um dos fenômenos menos estudados na Europa, ou talvez, da história mundial e que a acusação de adoração ao demônio foi trazida ao Novo Mundo pelos missionários, como uma ferramenta para subjugação dos nativos”. A indiferença dos historiadores em estudar esse genocídio, tenha sido talvez, o fato das mulheres serem camponesas, e tal indiferença chega a ser quase uma cumplicidade. Outrossim, oitenta por cento das pessoas julgadas na Europa nos séculos XVI e XVII pelo crime de bruxaria, eram mulheres. Além do mais, a associação entre concepção, aborto e bruxaria apareceu pela primeira vez na Bula de Inocêncio VIII que diz o seguinte:

[...] através de seus encantamentos, feitiços, conjurações, além de outras superstições execráveis e sortilégios, atrocidades e ofensas horrendas, [as bruxas] destroem as crias das mulheres[...] Elas impedem a procriação dos homens e a concepção das mulheres; daí que nem os maridos podem realizar o ato sexual com suas mulheres, nem as mulheres podem realizá-lo com seus maridos (FEDERECI 2017 p.324).

Vale ainda ressaltar que o Papa Inocêncio VIII em 1484 proclamou a bula Summis Desiderantis Affectibus “onde ele relacionava os crimes atribuídos às bruxas e dava plenos poderes à inquisição para prender, torturar e punir todos aqueles que fossem suspeitos de crime de feitiçaria” (SOUSA, 2016).

Outrossim, sendo as mulheres curandeiras e parteiras, morriam muitas crianças subitamente logo ao nascer, e por isso elas eram acusadas de bruxas. Porém, essas crianças, eram vulneráveis a uma grande quantidade de enfermidades devido ao crescimento da pobreza e consequentemente da desnutrição.

[...]parece plausível que a caça às bruxas tenha sido, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino – o útero – a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho. Essa é uma hipótese; o que podemos afirmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população, e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação (FEDERICI, 2017, p. 326).

Portanto, a caça às bruxas foi uma guerra contra as mulheres em que as mesmas ficaram confinadas ao trabalho reprodutivo e ao cuidado do lar. Criou-se uma imagem degradada da mulher, demonizando-a, a fim de destruir seu poder social. O estereótipo da mulher era “fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal” (FEDERECI, 2017, p. 335). E além do mais, com o domínio sobre seus corpos, ou seja, com o controle da reprodução, a população demográfica diminuiu e faltava mão-de-obra. Assim, a caça às bruxas procurou destruir esse controle que as mulheres tinham sobre seus corpos pois, havia a preocupação com o crescimento da população por parte também do protestantismo como escrito abaixo:

Rejeitando a tradicional exaltação cristã da castidade, os reformadores valorizavam o casamento, a sexualidade e até mesmo as mulheres, por sua capacidade reprodutiva. A mulheres são necessárias para produzir o crescimento da raça humana, reconheceu Lutero, refletindo que, quaisquer que sejam suas debilidades, as mulheres possuem uma virtude que anula todas elas: possuem um útero e podem dar à luz (FEDERICI, 2017, p. 171).
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Certamente, a caça às bruxas foi uma iniciativa política muito importante, em que os homens da alta sociedade tais como advogados, juristas, filósofos e cientistas, concordavam em executar mulheres, muitas vezes viúvas e pobres, dizendo ter elas, parte com o demônio. Porém, com a revolução industrial no século XIX, a mulher pôde adentrar no mercado de trabalho gerando mão-de-obra produtora e intensificando assim, as reivindicações feministas, no entanto, mais uma vez não foi fácil. Vejamos:

[...] uma das consequências da revolução industrial é a participação da mulher no trabalho produtor: nesse momento, as reivindicações feministas saem do terreno teórico, encontram fundamentos econômicos; seus adversários fazem-se mais agressivos... a burguesia apega-se à velha moral que vê, na solidez da família, a garantia da propriedade privada: exige a presença da mulher no lar tanto mais vigorosamente quanto sua emancipação torna-se uma verdadeira ameaça (BEAUVOIR, 2019, p. 20).

A caça às bruxas ainda não acabou, simplesmente mudou a forma de executá-las pois, mulheres continuam sendo perseguidas, massacradas e mortas. Talvez, não numa fogueira, mas de uma forma muito velada, quando negam-lhe um emprego por ser mãe ou por ser negra, quando é demitida por não ceder aos assédios sexuais, quando é estuprada por simplesmente usar uma roupa que não está nos padrões tradicionais etc. Ou seja, o caminho ainda é longo para que o macho conscientize-se de que ele não é o sujeito, o absoluto, e as mulheres o Outro.

  1. Parte III: Héstia, a senhora do lar - Um mito grego

Os mitos gregos revelam muitas coisas acerca das relações entre homens e mulheres. Eles falam sobre amor, beleza, poder e muitos estão dentro de um contexto patriarcal. Por patriarcado deveremos entender o seguinte:

O significado literal de patriarcado é “regra do pai”, “pai de uma raça” ou “chefe de uma raça”, patriarca. Em uma cultura patriarcal, o homem assume a responsabilidade e a autoridade política, moral e religiosa sobre as mulheres e os filhos confiados à sua proteção, situando as mulheres como “donas de casa”. Vejamos então, o que nos diz o mito:

A deusa Héstia, a primogênita de Cronos e Reia, é a divindade olímpica do lar, da família e da arquitetura. Deidade casta, virginal e com a peculiaridade de ser a “mais jovem e a mais velha” das irmãs e dos irmãos. Quando titãs e divindades olímpicas entraram em um período de guerra, Héstia ficou cuidando do lar. Ela recebeu do irmão mais novo, Zeus, a garantia de um culto em todos os lares. Héstia se mantém no Olimpo e diferencia-se das outras divindades por ser a única cultuada em todos os lares mortais e nos templos de todos os deuses e deusas. Héstia rege a arquitetura e é tida como a deusa da lareira. Ela é pouco lembrada como divindade e não figura com a mesma frequência que outras deusas nos circuitos de debate da mitologia grega (NOGUERA, 2021, p. 21-22).

Héstia é o arquétipo da dona de casa esquecida e que introduziu a perspectiva de que o cuidado do lar e gestão doméstica pertencem à mulher.

Nas sociedades patriarcais, costumamos a ensinar as meninas a brincarem sempre com bonecas, panelas, enquanto aos meninos ensinamos a dirigir carros, motos, jogar bolas etc. Dividimos até mesmo as cores em cores para homens e cores para mulheres, reforçando assim os estereótipos de gênero. Segundo Noguera (2021), “Héstia é um símbolo de um estereótipo de gênero, uma ideia padronizada que circula com frequência nas mais diversas instâncias da sociedade: a ideia de que as mulheres são naturalmente donas de casa”.

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Por conseguinte, o patriarcado é um dos motivos que promoveram e promovem ainda hoje as desigualdades de gênero, estabelecendo os papéis do homem e da mulher dentro do espaço familiar. Porém, a família, como a concebemos hoje, nem sempre foi assim. Ao longo da história, o termo família foi adquirindo novos significados.

Ao contrário de ser algo dado, a família é compreendida como o produto histórico de diversas formas de organização entre os humanos, que pelas necessidades materiais de sobrevivência e de reprodução da espécie, inventaram diferentes formas de se relacionarem com a natureza e entre si. Dentre essas diversas formas de organização, encontramos a família patriarcal (SILVA et. al. 2018).

O modelo da família patriarcal teve início pela influência das transformações econômicas e sociais ocorridas na antiga sociedade de caça e coleta. Até então havia a harmonia entre homens e mulheres e não havia a dominação do sexo masculino sobre o sexo feminino.

Com as crescentes atividade de cultivo e criação de animais, passou a ser necessário um número cada vez maior de filhos para servirem de força de trabalho, possibilitando uma maior exploração da terra e, consequentemente, um maior acúmulo de capital. Esse processo rompeu com a harmonia que havia entre homens e mulheres produzindo relações de dominação e controle do sexo masculino sobre o sexo feminino. Consequentemente, com acúmulo de capital, surgiu a necessidade de mudar as regras para a ordem da herança em proveito de seus filhos. Para isto, foi necessário abandonar as relações coletivas e adotar as relações monogâmicas, conferindo assim aos homens, o acesso exclusivo às suas mulheres e a garantia da paternidade de seus herdeiros (SILVA, et. al. 2018).

A partir de então, o patriarca tinha autoridade sobre sua mulher, escravos, vassalos, filhos, e os corpos das mulheres passaram a ser controlados, bem como sua sexualidade, ficando também instituída a divisão sexual e social entre homens e mulheres.

Entretanto, as relações monogâmicas não trouxeram reconciliação entre homem e mulher, mas sim, uma dominação do homem sobre a mulher.

A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, muito menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorados, até então, na pré-história (SILVA, et.al. 2018).

Além do mais, com o advento do capitalismo, pensava-se que o mesmo abriria portas para a emancipação feminina por meio da entrada das mulheres no mercado de trabalho, porém, ocorreu o contrário, a saber:

O modo de produção capitalista alija força de trabalho do mercado, especialmente a feminina. Os caracteres raciais e de sexo operam como marcas sociais que permitem hierarquizar, segundo uma escala de valores, os membros de uma sociedade historicamente dada (SAFFIOTI, 2013 p. 60).

Sendo assim, na passagem do modo feudal de produção para o modo capitalista, a sociedade foi dividida em classes sociais, surgindo assim, a exploração econômica de uma pela outra. “Assim é que o sexo, fator que há muito selecionado como fonte de inferiorização social da mulher, passa a interferir de modo positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das classes sociais” (SAFFIOTI, 2013 p. 66).

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Com o modo de produção capitalista, houve uma subvalorização das capacidades femininas, como consequência dos mitos justificadores da supremacia masculina, ficando as mulheres, às margens do sistema de produção. “A mulher então, figura como um elemento obstrutor do desenvolvimento social, quando, na verdade, é a sociedade que coloca obstáculos à realização plena da mulher” (SAFFIOTI, 2013 p. 66).

Na sociedade feudal, a servidão atingia homens e mulheres. Porém, com o advento do capitalismo, as mulheres puderam se distanciar de casa para trabalharem, mas ainda continuam sem poder participar da vida pública. Além disso, os costumes que inferiorizavam socialmente as mulheres continuaram, como também não diminuíram as diferenças entre os gêneros, mas aumentaram-nas.

  1. Conclusão

A proposta central deste trabalho foi mostrar o quanto os preconceitos que, a partir das leituras e interpretações equivocadas e carregadas de anacronismos, têm sido reforçados no que diz respeito à construção do papel social da mulher atual.

Abordamos os mitos guarani de Iara, e o grego de Héstia - a senhora do lar, mostrando como esses arquétipos estão ainda tão presentes no inconsciente humano, legitimando assim, as atitudes patriarcais opressoras.

Da mesma forma, trouxemos à tona a figura da “bruxa”, a mulher horrenda contada nas histórias infantis, mas tão esquecidas nas aulas de história, em que mulheres que detinham um certo conhecimento e por simplesmente quererem ser donas de seus próprios corpos, foram queimadas e silenciadas porque eram vistas como ameaças para o patriarcado, e consequentemente ao capitalismo.

Enfim, ao lermos os mitos, é necessário uma hermenêutica feminista a fim de valorizar a categoria de gênero pois, é através dessa valorização que iremos aprender que não é a natureza, mas é a cultura que determina as diferenças dos papéis sociais entre homens e mulheres, a fim de mudarmos os conceitos e descontruirmos atitudes e visões patriarcais opressoras, com o intuito de gerar ações libertadoras em toda sociedade.

Então, é necessário desconstruir padrões opressores, quebrar os ciclos de repetições pois, ao reproduzir esses mitos sem uma visão feminista, acabamos por fomentar as desigualdades de gênero.

  1. Referências

AMITRANO, Georgia Cristina. Querendo ou podendo ser Lilith: a mulher um ser-Outro. Rio de Janeiro (RJ): Ape’Ku, 2020.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Tradução: Sérgio Milliet. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira, 2019.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorex. São Paulo: Elefante, 2017.

JUNG, Carl Gustav e colaboradores. O homem e seus símbolos. Tradução: Pinho, Maria Lúcia: Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira, 2008.

MENEZES, Pedro. O que é o mito? (Disponível em: https://www.todamateria.com.br/?s=mito-acessado em: 20/dez./2021) . NOGUERA, R. Mulheres e deusas. Rio de Janeiro (RJ): Harper Collins, 2021.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo (SP): Expressão Popular, 2013.

SILVA, Vânia Olímpia Barbosa et al. O patriarcado e a constituição familiar: um panorama sobre as desigualdades de gênero/ VI Congresso em desenvolvimento Social, 2018. Repositório Institucional da Universidade Estadual de Montes Claros - MG (Disponível em: https://congressods.com.br – acessado em 07/jan./22).

SOUSA, Felipe Trindade. Caçando a bruxaria na Germânia: a inquisição através da Bula Summis Desiderantes Affectibus (1484), de Inocêncio VIII, Repositório institucional da Universidade Federal de Sergipe – RI/UFS- Monografia (Disponível em: https://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/7325 – acessado em 06/jan./2022).