Filosofia: literatura das possibilidades
114Resumo:Os trabalhos de filosofia têm sido desenvolvidos de dois modos: ou a partir da história da filosofia, ou através da discussão temática. Em ambos os casos há valorização da originalidade e utiliza-se recursos, tais como técnicas de contestação, de amplificação, de aplicação e de síntese de ideias. Dessa maneira, em filosofia, valoriza-se mais as perguntas e os processos, do que propriamente as soluções. Sem apresentar um método definitivo que permita a comprovação absoluta das conclusões de seus argumentos, a filosofia caracteriza-se como uma expressão criativa, como um processo que tece ideias. Nesse trabalho, parto de uma discussão metodológica, para fazer uma comparação da filosofia com as ciências, com as religiões e com os jogos, para posteriormente defender a ideia de que a filosofia está no âmbito da arte e apresenta-se como um gênero que denomino literatura do possível.
Palavras-chave:Filosofia; Ciência; Religião; Jogo de Capoeira; Arte.
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Introdução
O pontapé inicial para o desenvolvimento deste texto surge principalmente do pedido de alunos para que eu explicasse melhor a metodologia de um trabalho que eu havia solicitado em sala de aula, nesse ano de 2022. O Wanderson José de Sousa solicitou que eu enviasse referências sobre a metodologia do tal trabalho e a Liula Gonçalves Coimbra de Oliveira solicitou que eu gravasse um áudio repetindo o que eu havia falado em sala de aula. Então eu me lembrei do fato de que Yasmim Sócrates do Nascimento, que também foi nossa aluna do curso de filosofia no Câmpus Goiás da UFG, há tempos, na mesma disciplina, havia sugerido que eu falasse sobre isso em um evento do curso. A esse aluno e a essas alunas eu dedico esse trabalho. A verdade é que me lembrei de várias outras pessoas durante minha escrita, que não vou dizer seus nomes nesse momento (mesmo porque nenhuma delas concordariam com tudo que escrevi), mas que me influenciaram na filosofia e na vida. Toda escrita individual, é de certa maneira coletiva. É também fato que, sempre que desenvolvo algum trabalho, estou tentando responder a alguma pergunta, então eu agradeço imensamente pelas demandas dessas pessoas, pois toda pergunta é expressão da curiosidade, característica primordial da filosofia.
Explico melhor esse contexto. Estávamos na disciplina de contemporânea 2, discutindo a introdução do livro O ser e o nada de Sartre (1943), e eu solicitei que os alunos desenvolvessem um trabalho, como se fosse para um congresso. Informei que esse trabalho poderia ser temático ou da história da filosofia – pois essas são as duas formas que eu compreendo que os trabalhos de filosofia têm sido desenvolvidos hoje.
No caso de trabalhos feitos em história da filosofia, o pesquisador escolhe um autor, um livro ou um assunto, algumas vezes chega a ser mais específico, quando foca-se em um capítulo ou até mesmo em um parágrafo. Então, discute-se sobre a interpretação de tal seleção, o que muitas vezes exige uma dedicação filológica, além da apresentação de autoras críticas e/ou autores críticos que discordam interpretativamente entre si. O resultado final é a apresentação de um posicionamento original e próprio. Nesse caso específico, o resultado é a apresentação de uma nova interpretação.
115No caso de trabalhos feitos no âmbito temático (diferentemente dos desenvolvidos em história da filosofia), o processo é parecido, entretanto, escolhe-se um tema específico e então as ideias das filósofas e dos filósofos que se contrapõe devem ser apresentadas, de tal modo que ao final, deve-se também apresentar um posicionamento original e próprio sobre o assunto. Mas, nesse caso, o posicionamento original é sobre o próprio tema que está sendo discutido e não sobre a interpretação específica de algum texto filosófico. Para fazer essa comparação entre filósofos no âmbito temático, é preciso perder um pouco da fidedignidade para que a discussão seja realmente permitida. Não são necessários trabalhos de tradução que possibilitem uma interpretação mais próxima (como ocorre nos trabalhos de história da filosofia), mas é preciso outro tipo de tradução, que é a transposição dos conceitos e até mesmo o enfraquecimento dos conceitos de filósofas e de filósofos diferentes, no intuito de possibilitar verdadeiramente o debate.
Em ambos os casos (no caso de trabalho desenvolvido no âmbito da história da filosofia ou no âmbito temático), para a apresentação do posicionamento original e próprio ao final, é preciso executar pelo menos um dos seguintes procedimentos: contraposição (discordância com a autora, ou com o autor), amplificação (mostrar que a autora ou o autor pensou até determinado ponto, mas que é possível ir mais além), síntese (absorção de pontos específicos de duas ou mais pessoas autoras) ou aplicação prática das ideias (a partir da ideia de uma autora ou de um autor, pode-se mostrar o uso de tal idéia para se chegar a alguma conclusão em uma situação particular específica).
Nesse momento, preciso retomar um aspecto da situação que descrevo no início: a pergunta feita pelo aluno Wanderson, sobre referências dessa metodologia. Então, para responder a essa pergunta, primeiramente, eu cito o professor José Gonzalo Armijos Palácios, que escolhe como nome social Gonçalo como “ç” (conforme consta em seu livro – acredito que seja para evitar pronúncias erradas). Ele é filósofo e meu colega de trabalho, responsável pela fundação do Câmpus Goiás - UFG, pela criação dos cursos de filosofia nesse Câmpus, pela criação do evento Eu Penso, e autor do livro De como fazer filosofia sem ser grego, estar morto ou ser gênio (2018), a quem eu dedico também esse trabalho. Gonçalo é a minha principal referência, porque ele insiste constantemente na importância da expressão da originalidade para a pessoa que está escrevendo um trabalho filosófico. Ele também fala da importância da pessoa aparecer no texto, pois a questão da investigação remete a um interesse próprio daquele que vive em determinada época e em determinado lugar. É justamente tal questão que vai conduzir a investigação.
Entretanto, eu estava preocupada com o fato de que essa indicação talvez não fosse suficiente para o que estava propondo, porque Gonçalo não insiste na importância das referências filosóficas. Contudo, performativamente (em suas palestras e escritos), seu texto é repleto de referências dos clássicos da filosofia. Logo, se em uma parte de minha proposta eu me inspiro em seus escritos e falas sobre o fazer filosófico, na outra parte de minha proposta eu me inspiro em suas ações.
116Também não poderia deixar de referenciar Deleuze e Guatarri (2010), que afirmam que filosofar é criar conceitos. Ou seja, sem esse processo artístico inventivo não se faz filosofia. Também seria injusta se não citasse Hegel (2002), que afirma que toda a história da filosofia desenvolve-se a partir de teses, anti-teses e sínteses. Obviamente ele não prescreve isso como metodologia, como estou propondo nesse trabalho, pois o que ele realmente faz é a constatação de alguns desses procedimentos que menciono enquanto processos dialéticos na história. Além disso, Hegel é determinista, pois para ele, tudo segue em direção ao Espírito Absoluto. Eu, por outro lado, proponho tais aspectos como procedimentos investigativos e não como proposta metafísica. Dessa maneira não estou copiando Hegel, mas estou apenas nele me inspirando, ou melhor, da forma como propus, estou contrapondo, amplificando e também aplicando, ou seja, estou falando sobre o meu método e o aplicando.
Para mim, isso tudo só faz sentido quando compreendemos a filosofia como uma arte. Essa afirmação é uma contraposição ao que o professor Gonçalo (2021) responde no podcast 47 do projeto Filosofia Goiás, quando é questionado sobre a relação da arte com a sua produção filosófica. Por volta do minuto 30, ele afirma que o que o motiva a escrever são as questões sociais e que sua produção filosófica não se relaciona diretamente com a arte, embora tenha tido uma relação forte com a literatura, a pintura, o teatro e a música em sua infância e em sua vida. E no minuto 40 reafirma que não é a arte e nem a literatura que o levam à filosofia.
Também poder-se-ia objetar que a filosofia não é uma arte, mas o contrário, a busca pela verdade. Porém eu reafirmo ambas as coisas: a filosofia é a busca pela verdade, mas uma verdade que não se atinge, pois está no campo das possibilidades, daquilo que é plausível, verossímel. Eu poderia dizer que isso também contrapõe o professor Gonçalo em uma palestra que ele deu para receber os calouros. Nessa palestra, Gonçalo diz que a filosofia existe para se chegar a soluções. Entretanto, para mim, é mais importante o desenvolvimento dos problemas do que as soluções, ou seja, defendo que, para a filosofia, o que interessa propriamente são os processos. Nesse sentido, sempre busco aquilo que eu não tenho: a sabedoria. Queria ser sábia, mas nunca vou alcançar esse objetivo e é justamente isso que faz com que eu continue e permaneça meu infindável interesse pela filosofia. Isso ocorre pela própria característica das investigações filosóficas: o caráter aberto, não conclusivo.
Um outro aspecto, com Gonçalo e contra Heidegger (2012), é que a filosofia não é uma ciência. As discussões filosóficas não podem ser comprovadas pela experiência, pois elas estão no campo do pensamento, uma vez que aquilo que pode ser comprovado está no âmbito da ciência e não da filosofia.
Dessa maneira, defendo que pesquisar, estudar, ensinar, enfim, fazer filosofia não ocorre da mesma maneira que é o fazer da biologia, por exemplo. Se, em biologia estuda-se as últimas descobertas referenciadas pela comunidade científica, em filosofia estuda-se ideias que não podem ser comprovadas. A filosofia é composta por paradigmas que se contrapõem e não se pode dizer que um é melhor que o outro. Por outro lado, embora a filosofia não seja ciência, ela interfere na ciência, pois a forma como penso e acredito/escolho o/no mundo, interfere sobre a forma como vivo em todas as dimensões práticas.
117Então a filosofia formou-se no âmbito das possíveis buscas pelas verdades. Mas, se essa verdade é alcançável pela razão ou pelo sentido, se vivemos em um mundo concreto ou em um holograma imaterial, se existe alma, se existe Deus, se há vida após a morte, se há distinção entre o conhecimento e a verdade, sobre quem eu sou, sobre tudo isso não se pode afirmar de forma absoluta, mas somente de acordo com algum tipo de paradigma. Fazer filosofia é então entrar no jogo. Quando jogamos dentro de um paradigma, estamos fazendo história da filosofia. Quando inventamos um jogo novo, a partir de elementos de outros paradigmas, criamos um jogo diferente – é o que eu chamo de filosofia temática.
Além disso, não podemos deixar de mencionar que esses paradigmas desenvolvem-se na temporalidade. Assim temos a filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea.
Na antiguidade, por exemplo, Platão (1949), em A república faz uma importante síntese entre as verdades imóveis de Parmênides e as mutáveis de Heráclito, criando um novo paradigma. Para Platão, o mundo sensível e mutável é uma cópia imperfeita do mundo das ideias, onde encontram-se as formas imutáveis. Nesse sentido, a verdade deve ser buscada através da razão e não dos sentidos. Ainda na antiguidade, Aristóteles em A metafísica contrapõe esse paradigma criando um novo. Para Aristóteles, cronologicamente, o conhecimento primeiro vem da experiência. Dessa forma, só temos a ideia genérica de “cadeira”, por exemplo, porque vimos muitas cadeiras. Dessa maneira, podemos dizer que, para Aristóteles, o conhecimento primeiro vem do sensível e não da razão. Tanto Platão quanto Aristóteles influenciaram inúmeros filósofos na história da filosofia, que aplicam e amplificam suas ideias. Por exemplo, podemos dizer que Platão influenciou Santo Agostinho (1997) no período Medieval, bem como Descartes (1985), na Modernidade. Assim como Aristóteles influenciou São Tomás de Aquino (2016), no período Medieval e Hume (2009), na Modernidade. Mas também podemos constatar outra importante síntese na história da filosofia: aquela elaborada por Kant (1994), na Modernidade. Kant, em Crítica da Razão Pura, cria um novo paradigma. Para ele, o conhecimento depende tanto da razão quanto do mundo sensível, pois o conhecimento é propriamente o fenômeno, que por sua vez é a relação entre sujeito (que possui a capacidade de conhecer) e objeto (que possui a capacidade de se mostrar). Contudo, esse fenômeno se contrapõe ao númeno, pois enquanto o fenômeno é o que pode ser conhecido, o númeno é a coisa em si, a própria verdade que é inacessível. Ou seja, Kant faz uma importante síntese entre a razão e o sensível, entretanto cria outra dualiade: entre o fenômeno e o númeno. A fenomenologia, em geral, embora eu possa citar especificamente Sartre (1943), apresenta uma anti-tese de Kant, ao afirmar que o fenômeno não está em contraposição com a verdade, mas, através dele (do fenômeno) é possível acessar a coisa em si.
Esses movimentos e correntes não ocorrem somente no âmbito da metafísica. Outro exemplo que posso citar disso é que, em meu trabalho de doutorado (COLANTONI, 2016), em determinado momento, eu procuro apresentar também uma síntese entre a ética existencial e a ética universal. Se, por um lado, da fenomenologia e do existencialismo sartriano, absorvo que não há valores absolutos, por outro lado, defendo que é possível deduzir juízos e prescrever condutas de valores previamente consensualizados, defendendo assim o desenvolvimento de uma ética objetiva, racional e dedutiva, que não oprime, mas que liberta.
118Mas o objetivo aqui não é adentrar profundamente nessas concepções. Apenas as cito aqui de forma genérica e superficial, com o intuito de explicitar esses processos (de contraposição, amplificação, síntese e aplicação) na história da filosofia, para mostrar a diferença entre a filosofia e a ciência, e para defender que esses movimentos devem ser absorvidos metodologicamente no fazer filosófico contemporâneo.
Por outro lado, conforme eu havia mencionado anteriormente, a filosofia se diferencia da ciência, mas a influencia, principalmente no que se refere à discussão do objeto. A filosofia discute o objeto: o objetivo e o fim de cada ciência. E após o fim consensualizado, as pesquisas científicas podem ser realizadas. Por exemplo, se, podemos dizer que a disciplina nutrição tem como fim a longevidade humana (e isso é absorvido de paradigmas filosóficos), então todas as pesquisas serão feitas para constatar ou não tal fim. Se em determinado momento há pesquisas que afirmam que o ovo faz bem para a saúde e em outros momentos verifica-se o contrário (MONTEIRO, 2020), não significa que a disciplina nutrição seja relativa, ou que ela não tenha objeto, mas significa sim que há complexidade nos estudos. As contradições são indícios de que as pesquisas devem continuar sendo feitas, pois os resultados não são óbvios ou fáceis, contudo a objetividade da ciência permanece e os resultados são sempre verdadeiros ou falsos, ainda que outros fatores (não pontuais) das pesquisas precisem ser levados em consideração para a análise complexa dos resultados.
Da mesma forma, no âmbito das ciências sociais aplicadas, isso também acontece. Discussões filosóficas discutem e definem o objeto da ética. Se a comunidade científica consensualiza que o objetivo da ética é discutir juízos e ações que não produzam ou que minimizam o número de vítimas (quando há conflito direto e significativo de interesses entre duas ou mais pessoas), então o direito e o serviço social podem absorver tal objeto para fazer a aplicação, que é propriamente a dedução desse objetivo para os casos particulares, nas questões práticas: a elaboração de juízos e leis. Dessa maneira, pode-se defender que as leis deveriam promover a distribuição de renda, a equidade de gênero, a equidade racial, proteger todas as pessoas contra a exploração, etc. Mas, da mesma forma que ocorre com disciplinas da área de saúde, nem sempre as soluções são tão óbvias e imediatas. Por exemplo, sobre a questão do aborto, podemos dizer que alguns dos maiores pesquisadores na área – como Débora Diniz e Marcelo Medeiros (2010) – apontam para a necessidade da legalização do aborto. Contudo, filosoficamente eu percebo certa complexidade nessas questões. Dessa forma, defendo que essas soluções sobre legalização do aborto só podem ser defendidas de maneira provisória, isto é, enquanto não se resolver o problema metafísico sobre a existência ou não da alma. Vou tentar explicar melhor o sentido dessa “maneira provisória”: é possível ser contra o aborto (não fazer um aborto ou oferecer ajuda material para a criação do filho para alguém que pretenda fazer um aborto) e ao mesmo tempo defender uma lei a favor da legalização do aborto, com a finalidade de garantir a saúde física e mental de mulheres que decidiram pelo aborto e o fizeram, de impedir a criminalização de tais mulheres, e de diminuir o número fatal de vítimas (já que o aborto é fato – ele vai continuar ocorrendo com a legalização ou sem a legalização – e mulheres morrem fazendo abortos clandestinos). Se considera-se que o aborto produz vítima (caso pressuponha-se que o feto tenha alma, o que não pode ser comprovado), a não legalização do aborto produz mais vítimas (pois além da vítima que é o feto, há a vítima que é a mãe).
119Além disso, é preciso colocar em destaque outro aspecto do desenvolvimento do argumento filosófico. A objetividade da aplicação não garante uma objetividade absoluta nos valores. Por exemplo, se eu consensualizar com algumas pessoas que o objetivo do direito é garantir o desenvolvimento do egoísmo e do individualismo, em oposição ao paradigma da ética, então todas as leis que serão deduzidas e defendidas desse objeto serão opostas ao que descrevi nos parágrafos anteriores. Ou seja, será deduzido o direito indiscriminado à acumulação de capital, o direito à expressões de subjugação, racismo, exploração, negligência à vida (morte por falta de assistência). Por mais que eu abomine pessoas que tenham esse tipo de projeto, não há nada que prove que elas estejam erradas.
Essa possibilidade de contraposição permanente garante a diferença da filosofia especialmente com as religiões judaico-cristãs. Tais religiões apresentam dogmas que não podem ser questionados ou contrapostos pelos fiéis, sem que tais fiéis sejam considerados hereges. Os dogmas são limitantes, assim como o sério é obtuso. No caso da filosofia, as contraposições são necessárias enquanto processo: ou seja, você pode chegar à mesma solução, em determinada circunstância prática, do que uma concepção religiosa, mas a compreensão das camadas de contraposições dos argumentos garantem uma escolha mais consciente (percepção da amplitude de possibilidades).
Por outro lado, a filosofia apresenta aspectos semelhantes com religiões não ocidentais, tais como o Tarô, o Ching da Ásia e o Jogo de Búzios (presente no Candomblé, na Umbanda, no Voodoo e na Santeria), que apresentam arquétipos de personalidades e arquétipos de caminhos que podem ser seguidos, na maioria das vezes sem afirmações de verdades absolutas (PLÖGER & JAGUM, 2017). Acrescento ainda a religião grega na antiguidade, com as deusas e os deuses, assim como o oráculo de Delfos, afinal, Sócrates absorveu o “conhece-te a ti mesmo” do oráculo. Aponto essa semelhança sem fazer nenhum tipo de constatação definitiva, pois, ainda que encantada, prefiro manter um posicionamento agnóstico. Vejo um pai de santo jogar búzios e fazer interpretações com meu rosto em sua frente. Posso dizer que ele desenvolveu uma capacidade de decodificação da posição dos búzios, misturada com uma capacidade artística de improviso, da mesma forma que posso dizer que um artista que está em cima do palco do teatro, a cada atuação, recebe uma inspiração espiritual. A filosofia contribui para que tenhamos consciência de nossas possibilidades, mas também de nossas limitações: há coisas que não são possíveis de serem afirmadas com certeza.
Ainda ouso apontar que a filosofia tem semelhança com um tipo de jogo específico: o jogo de Capoeira Angola (que comecei neste ano a praticar), em que os golpes são tirados antes do toque na pessoa adversária (há um recuo). Assim, mostra-se que a concretização do golpe é possível, mas a habilidade é efetivamente demonstrada quando nunca se acerta. A cada golpe recebido, uma marca imaterial e um aprendizado para o futuro. Cabe à espectadora ou ao espectador absorver a riqueza do acontecimento do encontro de personagens do jogo que se escolhem mutuamente: perceber os comandos dados pelo berimbau, a sátira de participantes que comandam o canto e a mútua interferência dos cantos improvisados com jogadoras e jogadores, a malandragem de se fazer de coitada, justamente aquela pessoa que acabou de dar o golpe, para evitar uma revidação muito forte, a provocação da dispersão da atenção realizada por gente que vai imediatamente golpear a pessoa opositora e tantas histórias nas entrelinhas do espetáculo vivencial que é a roda de Capoeira Angola. Quem observa de maneira desatenta, ou sem conhecer os códigos, vai ver somente um esporte, vai ficar entendiada ou entendiado e ainda vai interpretar que as pessoas que jogam Capoeira Angola não sabem fazer os movimentos direito como na Capoeira Regional. Assim como a filosofia, a Capoeira Angola é uma brincadeira de vadeação, mas para estar na superfície – para entrar com elegância artística – é preciso ter muito repertório e disposição: há o culto à ancestralidade, mas também valoriza-se a singularidade.
120Por fim, todas essas características mencionadas até aqui possibilitam que eu faça uma aproximação da filosofia com a arte, especialmente com a literatura. A filosofia não é uma literatura do tipo ficção científica, em que se sabe claramente que as ideias não correspondem aos fatos. Ela também não é uma literatura do tipo documental, em que se espera uma correspondência fidedigna com o acontecido. A filosofia é uma literatura do possível, no sentido em que o conteúdo dela pode corresponder aos fatos, mas sem que isso possa ser comprovado. Se eu não tenho a metodologia que eu queria, eu a sinto em minha singularidade e a invento para o mundo. A literatura, enquanto expressão mais fortemente artística, é aquela que tira as pessoas que entram em contato com ela da cotidianidade, para levá-las a reflexões traduzidas em práticas simples na vida. É através da emoção (provocada pela beleza ou pela feiura) que somos capazes de repensar nossas condutas. Assim, defendo que a afetação filosófica é estética: não pode ser comprovada, mas é através da brincadeira e da leveza, contra o espírito de seriedade, que evoca-se aquilo que realmente importa: o sentido da vida e os modos de vivenciá-la.
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Referências
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