Uma perspectiva do patrimônio e da cidade de goiás por meio de mapas mentais
101Resumo:O artigo visa compreender estruturas e contextos sociais e patrimoniais existentes na cidade de Goiás, de modo a costurar os temas de preservação de cidades com práticas cotidianas. Tal costura ocorrerá através de escutas e narrativas visuais envolvendo as práticas sociais e os saberes fazeres de alguns moradores da cidade de Goiás relacionados aos patrimônios, buscando revelar uma outra visão da cidade, e assim tentar compreender se tais práticas podem contribuir para a preservação da cidade. O objetivo deste trabalho é revelar uma outra perspectiva do patrimônio da cidade de Goiás(GO), mediante a construção de uma cartografia por mapas mentais, que tem como base as narrativas de alguns protagonistas em seus cotidianos, interpretadas a partir de leituras sobre decolonialidade. Com isso, espera-se entender como as práticas cotidianas podem contribuir para a preservação de uma cidade. Os métodos utilizados para o desenvolvimento do trabalho consistem na criação de mapas mentais a partir da escuta de palestras realizadas durante o evento Goyaz 2001+20, em que moradores, articuladores culturais e lideranças comunitárias puderam falar sobre patrimônio em suas práticas cotidianas e, a partir desses, a elaboração de um mapa síntese.
Palavras-chave:Narrativas, mapa mental, saberes fazeres, patrimônio, preservação.
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Introdução
A construção deste trabalho partiu do interesse em repensar estruturas e contextos sociais e patrimoniais existentes na cidade de Goiás, através de escutas e narrativas visuais, de modo a costurar os temas de preservação de cidades com práticas cotidianas. O processo envolvendo as escutas e narrativas visuais visa valorizar as práticas sociais e os saberes fazeres de alguns moradores (protagonistas do cotidiano) da cidade de Goiás, buscando revelar uma outra visão da cidade, e assim tentar compreender como tais práticas podem contribuir para a preservação da cidade.
A intenção de criar estes mapas é de apresentar por meio de narrativas visuais, uma outra visão da cidade e do seu patrimônio. Para o embasamento teórico e a definição das categorias e legendas apresentadas nos mapas, estão sendo realizadas leituras que discutem os temas da decolonialidade, mapas mentais, patrimônio, raça.
Os resultados que buscamos ao trabalhar com os diálogos transmitidos no evento Goyaz 2001+20, enquanto fontes públicas de pesquisa, é reinterpretação através de mapas mentais, que condensam não somente as práticas sociais cotidianas de fruidores do patrimônio edificado da cidade de Goiás, como também seus saberes fazeres.
Quanto à base teórica, esta vem sendo desenvolvida em duas partes: uma relacionada aos aspectos conceituais sobre mapas mentais e a outra parte, se conecta a busca e compreensão de debates atuais sobre decolonialidade e cotidiano, que se constituem como conceitos norteadores do trabalho. Conclui-se que, através deste suporte teórico, o trabalho busca criar uma base bem fundamentada para posteriormente compreender como a cidade e o patrimônio de um lugar, como Goiás, pode ser preservado mediante as práticas sociais e a valorização dos saberes fazeres locais.
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Metodologia
Para se obter os resultados que permitam a análise e compreensão da cidade de Goiás por uma outra perspectiva foram realizadas a escuta e transcrição das falas durante o evento Goyaz: 2001+20, a elaboração de mapas mentais derivados destas narrativas, tudo isso paralelamente à leitura de artigos, livros e demais textos que discutem temas afins, tais como: CERTEAU (1998), DANTAS (2021), BUZAN (2009), RIBEIRO (2017), FERRAÇO (2007), LYNCH (2011), MIGNOLO (2017), BHABHA (1998), para então criar um mapa síntese de como esses sujeitos e suas práticas cotidianas se conectam com a preservação da cidade de Goiás.
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Resultados e discussões
O trabalho partiu de inquietações que surgiram a partir de falas no evento Goyaz 2001 + 20, realizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em colaboração com a UEG Câmpus Cora Coralina e o IFG Câmpus Goiás, que ocorreu em modo online através de transmissões ao vivo pelo YouTube. Tal evento abordou como temática central: qual a humanidade que podemos observar no patrimônio da cidade de Goiás após 20 anos do tombamento de 2001 pela UNESCO. Os assuntos abordados no evento se dividiram nos seguintes eixos: Patrimônios em disputa; Identidade, reconhecimento e decolonialidade; Performances patrimoniais, visualidades e narrativas; Centralidades e periferias das cidades “patrimônio mundial”; Patrimônios mundiais – abordagens comparativas e perspectivas para o futuro. Os diálogos desenvolvidos em cada mesa temática dos eixos do evento serviram de suporte para a construção dos produtos desenvolvidos ao longo do projeto de pesquisa, com o maior enfoque para as mesas dos eixos temáticos Patrimônios em disputa e Identidade, reconhecimento e decolonialidade.
Essas transcrições foram interpretadas com suporte da base teórica, que foi construída em duas partes, uma que abordasse o desenvolvimento dos produtos (mapas mentais) e a outra parte, tem relação com a busca e compreensão de conceitos, termos e ideias que falam sobre o patrimonialização à luz da decolonialidade e da perspectiva do cotidiano de modo a ajudar a compor as percepções que darão vigor ao trabalho. Em relação à primeira parte, os autores usados como referência teórica são Tony Buzan, Kevin Lynch e Emiliano Ferreira Dantas. Já a respeito da segunda parte, os autores utilizados são Michel De Certeau, Homi K. Bhabha, Walter Mignolo, Djamila Ribeiro, dentre outros autores(as). No entrelaçamento destas duas partes, os produtos foram sendo elaborados de forma crítica, analítica e bem fundamentada.
Após leituras e discussões, dois conceitos se tornaram fundamentais para a compreensão do trabalho, que são: mapas mentais e decolonialidade. Quanto ao mapa mental, que tem relação com os produtos desenvolvidos, foram utilizadas duas noções, dentre as várias maneiras de se realizar um mapa mental, para estabelecer como ele seria produzido ao longo do projeto. A primeira noção considera-o um modo de representação e construção de ideias que ocorre com a composição de ramificações e imagens, tal noção foi utilizada para expressar a percepção quanto às narrativas ocorridas no evento e tendo como referência BUZAN (2009). Já a segunda noção de mapa mental, seria a ideia de um mapa síntese que busca representar as impressões de alguma cidade levando em conta temas específicos, tal vertente que teve como inspiração Kevin Lynch e os mapas de análise urbana realizados por ele na obra “A imagem da Cidade” (2011). A proposta de mapas mentais foi utilizada para se criar uma narrativa visual das percepções apreendidas nas falas de três protagonistas do cotidiano da cidade de Goiás, que são os responsáveis pelo seu patrimônio, e também obter uma síntese de como as manifestações, realizadas por esses moradores, se conformam na cidade.
Associando à produção dos mapas, o pensamento decolonial, segundo MIGNOLO (2017), nada mais é do que o esforço analítico para se compreender e superar a lógica da colonialidade e todo o pensamento dominante que é estabelecido por ela, procurando dar visibilidade para os indivíduos subalternizados. Logo, no que se refere à questão do patrimônio tal pensamento pode ser utilizado para valorizar, reconhecer e dar visibilidade para as manifestações culturais subalternizadas.
103Os protagonistas escolhidos para análise a partir das leituras realizadas, com a escuta e a transcrição das narrativas no evento de modo a produzir um mapa mental sobre as percepções apreendidas. A narrativa escolhida dentro do eixo “Patrimônios em disputa” foi a fala da Sinara Carvalho Sá e as do eixo “Identidade, reconhecimento e decolonialidade” foram as falas de José Mendes Peixoto e Alessandra Rodrigues de Jesus.
A Sinara Carvalho de Sá (mapa mental 01), que é uma mulher negra vilaboense, geógrafa, que possui mestrado em história com área de concentração em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio, expõe sobre a Festa da Rua do Capim, tradição na qual ela e sua família fazem parte e ajudam a manter, e é possível apreender que essa manifestação é um patrimônio imaterial da cidade de Goiás composto por outros micro patrimônios, como a fogueira, a barraca, os altares. Os micro patrimônios estão relacionados com a ação de partilhar e com outras práticas sociais, como a fogueira está conectada com o batizado, a barraca com a alimentação, e os altares com a fé. Ou seja, cada um dos micro patrimônios fortalecem o saber fazer e as práticas sociais que são fundamentais para a compreensão da Festa da Rua do Capim como patrimônio. Entretanto, este ainda se apresenta marginalizado, sem o seu devido reconhecimento pelas instituições de poder da cidade. Ainda, é interessante perceber que tal tradição ocorre às margens do centro tombado da cidade, sendo essa divisão institucional, mas que mostra o que tais instituições de poder optam por dar visibilidade. Mesmo com essa invisibilidade por parte das instituições, as pessoas que compõem tal patrimônio imaterial seguem preservando-o cotidianamente, mantendo ativa suas práticas sociais e seus saberes fazeres, e lutando para que haja reconhecimento desta tradição tão importante para a cidade, ainda vale ressaltar, que há patrimônio para além da área tombada que merece ser salvaguardada.
Em relação à fala de José Mendes Peixoto (mapa mental 02), conhecido como Zé do Congo, que é um homem negro vilaboense que cresceu envolvido nas atividades do Grupo do Congo Vilaboense, onde atualmente é Coordenador e Secretário do Rei (para saber mais sobre a estrutura e distribuição dos cargos dentro dos grupos de Congo, ver MACEDO, 2015), é possível entender como o patrimônio é vivo e mutável como a vida, já que é motivado pelas pessoas que o mantém. O Congo ou “A Dança dos Congos é uma performance, realizada por afrodescendentes, constituída por marchas de rua e embaixadas e, geralmente, realiza-se no Centro Histórico da cidade [...]” (MACEDO, 2015, p.14), sendo ainda um patrimônio imaterial mantido por meio da fé e devoção do coletivo que o compõe. Além dos seus representantes, tal tradição é composta pela dança que se desenvolve ao longo da cidade, sempre por caminhos diferentes, conectando a casa do Rei do Congo à Igreja do Rosário (tradicionalmente Nossa Senhora do Rosário dos Pretos) a qual são devotos. Logo, tal patrimônio, que como a Festa da Rua do Capim ainda não possui o seu devido reconhecimento e salvaguarda, é mantido e preservado no dia a dia pelas pessoas que o compõem.
104Quanto à fala de Alessandra Rodrigues de Jesus (mapa mental 03), conhecida como Leleca, que é uma mulher negra vilaboense mãe de três filhos homens, advogada e especialista em direitos sociais do campo, membro da Associação Anunciando a Consciência Negra com Meninos de Angola, servidora pública estadual e capoeirista, compreende-se como as tradições e as manifestações culturais podem ser importantes como fator de representatividade, e como o patrimônio pode ser visto como um elemento de luta e resistência de grupos subalternizados. Ainda, percebe-se em sua narrativa a importância de manifestações culturais, como por exemplo a capoeira, para a conscientização e apropriação do ser negro(a) no mundo e em uma sociedade racista. Além da representatividade e da conscientização, as tradições, como a Festa de Santos Reis (citada por ela), simbolizam a união de um coletivo em prol da celebração da tradição e dos valores da comunidade. Além disso, em sua fala é possível compreender algo já exposto nas outras narrativas, que é a questão das pessoas serem também patrimônio, já que são elas que compõem e, em sua maioria, mantém os saberes fazeres e práticas sociais que dão vida ao patrimônio imaterial.
Por fim, ao sobrepor cada um dos três mapas elaborados, chegou-se a um mapa síntese expondo como as manifestações culturais citadas e outras identificadas ao longo do trabalho se conformam no território da cidade e sua relação com o perímetro do tombamento urbano. Por meio do mapa é perceptível que tais manifestações criam áreas de pertencimento que não se limitam à área do centro histórico e tombado, mas engloba seu entorno assim como se espraiam pela cidade. Vale ressaltar que há outras diversas manifestações que não foram abordadas nas falas e, logo, não representadas nos mapas, mas que nem por isso são menos relevantes, pois possuem grande potencial de dinamizar a interação social dos patrimônios e sujeitos. Além do mais, destaca-se que o trabalho buscou evidenciar os patrimônios imateriais, que são compostos pelas pessoas e seus saberes fazeres e práticas sociais, e como isso é espacializado no patrimônio material protegido institucionalmente, procurando assim demonstrar como esse patrimônio vivo pode contribuir para a preservação da cidade de Goiás mediante ações cotidianas, práticas sociais e, sobretudo a valorização das pessoas e seus saberes fazeres.
105No que tange o Mapa Síntese, pode ser visto tanto manifestações culturais citadas nas narrativas dos moradores, como o Congo, a Festa da Rua do Capim e a Capoeira, quanto às vivenciadas pelas realizadoras do trabalho, como é o caso da Serenata e do Fogaréu. Ademais, percebe-se que as manifestações se apropriam e influenciam de áreas tanto dentro quanto fora do centro tombado, entretanto a maioria se concentra dentro do limite tombado, seja de forma pontual ou através de caminhos. Um ponto a se observar é a proximidade do local da Festa da Rua do Capim com o limite tombado, porém estando de fora deste limite, e a influência que tal festa exerce no Quilombo Alto do Santana (demonstrada de amarelo no mapa), tão situação gera questionamentos, como “por que tão área não foi englobada dentro do limite? Por que ela foi deixada à margem da preservação institucional?”. Outro ponto a se notar é a área de influência do Congo, que é uma performance que possui um trajeto mutável, tendo somente definido seu início e fim, respectivamente, a casa do Rei do Congo e a Igreja do Rosário. Já a Serenata e o Fogaréu, são manifestações que possuem um trajeto fixo e que por algum motivo, seja ele intencional ou não, são semelhantes em algumas partes, sendo uma delas a Igreja do Rosário, que para a Serenata significa o seu início e para o Fogaréu um componente de seu trajeto. Em relação a capoeira, essa se diferencia de todas as outras manifestações, pois ela ocorre em diversos pontos da cidade, ocorrendo tanto dentro do limite de tombamento quanto fora.
Ao longo deste trabalho, pode-se perceber como as pessoas, suas práticas sociais e seus saberesfazeres podem ser responsáveis pela preservação de tradições e manifestações culturais que constituem o patrimônio da cidade de Goiás. Isso porque são os sujeitos e suas práticas cotidianas que mantêm e dão vida e sentido à preservação do patrimônio. Entretanto, é importante destacar que, além desses fatores, um elemento fundamental para se preservar tais patrimônios é a questão da visibilidade destas manifestações pelas instituições de poder. Pois, quanto mais pessoas compreendem a importância dessas manifestações e saberesfazeres para a preservação de uma cidade, mais pessoas vão se dedicar para salvaguardá-los.
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Conclusão
Mediante a pesquisa e os mapas realizados, é possível concluir que uma cidade é composta pelas tradições e saberes fazeres de seus moradores, tão logo valorizar e dar visibilidade para tais práticas e manifestações se tornam formas de preservar o patrimônio local, e com isso manter a identidade de uma cidade. A cidade de Goiás não foge a regra, e por isso necessita reconhecer outros patrimônios para além dos limites formais impostos pelo perímetro do centro tombado e preservar histórias para além da história tida como oficial, isto é, dar visibilidade para os saberes fazeres e práticas sociais de grupos subalternizados pela história e pela sociedade de forma verdadeiramente preservar a cidade de Goiás.
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Referências
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte(MG): Editora UFMG, 1998.
BUZAN, Tony. Mapas Mentais: Métodos criativos para estimular o raciocínio e usar ao máximo o potencial do seu cérebro. 1ª edição. Rio de Janeiro: Sextante, 2009
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3ª Ed. Petrópolis(RJ): Vozes, 1998.
DANTAS, E. F. A imagem enquanto leitura e escrita do mundo: "leveleve" e a ferida colonial em São Tomé. Tese de doutoramento, Iscte - Instituto Universitário de Lisboa. Repositório do Iscte, 2021. Disponível em: http://hdl.handle.net/10071/22806
FERRAÇO, C. E. . Pesquisa com o cotidiano. Educação & Sociedade (Impresso) , v. 98, p. 73-95, 2007.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. 3ª Ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011 - (Coleção cidades)
MACEDO, Eliene Nunes. A Dança Dos Congos da cidade de Goiás: performances de um grupo afro-brasileiro. Dissertação de mestrado, UFG - Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2015. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/5307
MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Trad. Marco Oliveira Duke. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 32, n° 94 junho/2017. pp. 1-18
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte(MG): Letramento: Justificando, 2017.