Otávio Augusto Pereira Tavares

Cristiano Farias Almeida

Bicicleta e hostilidade urbana

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Resumo:Numa sociedade amedrontada, com espaço urbano esvaziado, a bicicleta vai de encontro a uma cultura em que o automóvel particular ainda gera maiores aceitações sociais, legitimando um consumo baseado no status, ou engendrando rejeições para com aqueles que fazem uso dos transportes alternativos. Contudo, nos últimos anos, o crescimento do uso da bicicleta foi intensificado pela pandemia como transporte seguro diante dos riscos das aglomerações nos coletivos. O momento permitiu uma tomada das ruas pelas “magrelas” e trazem um impulso para mobilidade urbana sustentável, o que requer um redirecionamento da perspectiva urbana para o novo contexto. Portanto, por meio de uma pesquisa bibliográfica, este artigo propõe a refletir o uso da bicicleta como mecanismo de humanização e hospitalidade urbana, enfatizando o momento de ouro para as cidades.

Palavras-chave:Mobilidade urbana; bicicleta; hostilidade urbana; cidade hostil.

  1. Introdução

Na atual sociedade, o distanciamento social vai além daquele afastamento exigido no período de pandemia. As distinções de grupo ou classe social cria uma barreira ideológica ao que é diferente. Tais divergências são mais visíveis no espaço urbano, onde a dinâmica do encontro dá lugar a desertificação urbana. A insegurança ao que é estranho transforma a utilização do espaço público numa constante sensação de alerta ao perigo, o espaço público torna-se hostil.

Num espaço urbano aversivo, o comportamento defensivo se instala em nosso transitar. O deslocamento pela cidade é preferencialmente feito por carro, a fim de evitar as mazelas da cidade. Na busca pela sensação de segurança, o encontro entre as pessoas ocorre em espaços privados, munidos de um sistema de proteção.

Neste cenário, a bicicleta vem desempenhar um protagonismo necessário a humanização do espaço urbano, ela é capaz de promover a ocupação das vias e ainda gerar qualidade de vida, tanto individual quanto coletiva. Porém, para que se alcance maior efetividade na adesão ao modal, se faz pertinente analisar alguns dos entraves que atrasam sua ascensão como meio de transporte preferencial.

Logo, a partir de uma pesquisa bibliográfica, este artigo vem refletir o uso da bicicleta no espaço urbano como mecanismo de humanização e hospitalidade urbana, analisando as dificuldades mais comuns do modal, que geram barreiras à sua utilização.

Para tanto, partiremos do entendimento da cidade hostil, que surge das diferenças sociais ou de classe, passando pela compreensão da sensação de insegurança e arquitetura hostil, que trará clareza para os conceitos das patologias sociais que surgiram em decorrência da hostilidade urbana.

Posteriormente, se discorrerá sobre o aumento do uso da bicicleta no período de pandemia, marcando o aumento da sua presença nas ruas e oportunizando a humanização da cidade. Mas para que isso ocorra de forma célere e acertada, se faz necessário discutir alguns dos obstáculos do modal, dentre eles: os problemas da rede cicloviária, a insegurança, a cultura do automóvel e o machismo.

Na sequência, serão feitas as considerações finais acerca dos apontamentos levantados, no qual vale ressaltar desde já, que o aumento do uso de um transporte movido a força humana, é capaz de promover grandes mudanças na dinâmica de vida e da cidade, daí tamanha importância em compreender sua relação com a hostilidade urbana.

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  1. Cidade hostil, hostilidade urbana

Composto de uma complexa rede de interrelações sociais, o espaço urbano é o lugar das lutas de classificação. Segundo Bourdieu (2020, p. 21), “quando se trata do mundo social, com efeito, classificar é classificar sujeitos que também classificam; é classificar “coisas” que têm como propriedade serem sujeitos de classificação”, ou seja, há um ciclo no qual quem classifica, também é classificado.

Neste sentido, há um mecanismo que opera em codificar os indivíduos e distribuí-los em classes, atribuindo-lhes propriedades, atomizando, decompondo e analisando-os, traduzindo, em suma, numa categoria simples (BOURDIEU, 2020).

Portanto, no plano das significações, algumas categorias sobrepõem outras. E o que se disputa é justamente a posição de dominação, onde as regras sociais são determinadas pelo grupo dominante, a fim de garantir a permanência da posição deste na ordem social. A partir dessas diferenças, “a constituição do campo do poder se dá por indivíduos que detêm uma espécie de capital que lhe confere posição legítima para lutar pela imposição de um princípio de classificação dominante” (CATANI et al, 2017, p. 153).

A partir deste entendimento, quando as distinções emergem, o termo consciência de classe assume um significado no qual vale destacar o uso do termo hostilidade, tornando clara a relação entre estes conceitos.

Consciência de classe: consiste no fato de dar-se conta ou perceber as diferenças que existem entre a própria situação de classe e a de outro indivíduo ou indivíduos. Essas atitudes podem consistir num sentimento de inferioridade ou de superioridade, respectivamente, se os outros pertencem a classes sociais superiores ou inferiores. Podem dar lugar a um sentimento de oposição ou de hostilidade, à medida que se percebem as diferenças de interesses, em sociedades que possuem a luta de classes, ou simplesmente um sentimento de afastamento ou reserva, devido à diferença de usos sociais, costumes e ideologias das diferentes classes. (OSBORNE, 2022)

Neste sentido, a hostilidade surge da aversão ao que é estranho, diferente, fora do é considerado padrão em determinado grupo social. Somado a sensação de insegurança que paira na atual sociedade, o entendimento supracitado corrobora para o agravamento do que ficou conhecido como arquitetura hostil. O termo é usado para designar a representação da insegurança manifestada em elementos ou soluções arquitetônicas que afastam aquilo que é considerado suspeito.

A adoção da “arquitetura do medo”, como denomina Ellin (1997), repelem não só o perigo, mas também aquelas pessoas mais necessitadas que vivem no espaço urbano, influenciando também no convívio e na experiência urbana.

Se num primeiro momento a arquitetura é reflexo da sensação de insegurança e medo, que nem sempre se traduz em índices reais de violência, em um segundo momento passa influenciar na percepção da sensação. Uma arquitetura que protege o espaço privado, num segundo momento, pode ser capaz limitar relações, impedir o convívio e romper laços. (DIAS; JESUS, 2022, p. 29)
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Portanto, a forma de utilizar as ruas, as praças, os espaços de convivência se modificam. O afastamento entre as pessoas gera uma necessidade de proteção individualizada, ao invés de uma segurança coletiva. O apoio mútuo entre vizinhos, que antigamente ocorria através da união e comunicação em uma supervisão e vigilância coletiva, se traduz na contemporaneidade em um abandono dos usos tradicionais da cidade, altos muros, cercas elétricas, segregação, desurbanização e desertificação socioambiental (LEAL et al, 2022).

Os exemplos podem ser ainda mais ríspidos. Cercas elétricas, arames farpados, grades no perímetro de praças e gramados, bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia, bancos curvados ou ainda assumindo geometrias irregulares, lanças em muretas e guarda-corpos, traves metálicas em portas de comércios, pedras em áreas livres, gotejamento de água em intervalos estabelecidos sob marquises, e tudo que puder de alguma forma afastar ou excluir pessoas “indesejáveis” dos locais públicos urbanos. (SOUZA; PEREIRA, 2018)

Destarte, a vivência com o desconhecido, numa constante desconfiança e suspeita, nos afasta da solidariedade humana, reproduzindo a ideia do perigo iminente. “Este é um fenômeno que atinge a sociedade: cotidianamente, as práticas são penetradas pela ameaça da criminalidade urbana e enfraquecimento dos laços sociais” (DIAS; JESUS, 2022, p. 33). A sensação de vulnerabilidade tira as pessoas do espaço público, e as aloca cada vez mais no espaço privado, refletindo na redução do campo visual e do campo das possibilidades de movimento, de encontro e de animação (MELO et al, 2022).

Relacionado a esta ideia, a busca por segurança tem reflexo no consumo, implicando no anseio por espaços fechados e vigiados. Semelhante às casas, o comércio de rua, como bares, restaurantes, cafeterias, bistrôs, etc., se munem de um aparato de segurança que visa tranquilizar seus clientes contra qualquer situação ou pessoas que venham trazer algum problema ao bem-estar do lugar. Engendrando uma segregação socioespacial de segurança em benefício de uma classe social que por ela pode pagar.

O entendimento se reflete na lógica do condomínio horizontal, um espaço de morar livre das ameaças e desordens urbanas, traduz o desejável ambiente da limpeza, do coletivo padronizado (sociedade homogênea), com regras de urbanidade, das áreas de jardim perfeitamente podadas, onde “tudo inspira uma beleza bem organizada, mas sem alma, repetitiva, privada de referências” (LIPOVETSKY, 2015, p. 341).

Essa lógica encontra sua expressão perfeita nas “gated communities”, essas cidades fechadas nascidas nos Estados Unidos que começam a se difundir pelo mundo todo, no Brasil, no Marrocos, na Europa. Cidades limpas, com regulamento interno, proteção, vigilância, em que não entra qualquer um: enclaves de classe seguros, onde se vive entre iguais, distantes dos outros, considerados, suspeitos ou perigosos. (LIPOVETSKY, 2015, p. 341)

Como efeito, patologias sociais emergem na cidade hostil, como a aporofobia e mixofobia. O primeiro é a aversão para com pessoas pobres e se insere no conjunto de crimes de ódio, e se expressa através de discursos de difamação, desprezo e desigualdade, além de não “reconhecer o outro como sujeito, mas como um objeto que deve ser alvo de desprezo e rejeição” (MELO et al, 2022). Já o segundo, denomina o medo típico de se envolver, interagir, ou mesmo conviver com o que é diferente (DIAS; JESUS, 2022).

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Figura 1- Banco na calçada pública com vários “apoios de braço” impedem o morador de rua (deitado no chão, no plano secundário da imagem) de utilizá-lo para deitar.  Fonte: SOUZA; PEREIRA, 2018.

Figura 1- Banco na calçada pública com vários “apoios de braço” impedem o morador de rua (deitado no chão, no plano secundário da imagem) de utilizá-lo para deitar. Fonte: SOUZA; PEREIRA, 2018.

Assim sendo, como revela a Figura I, o lado hostil das intervenções urbanas impacta na vida não só de quem ocupa e vive no espaço da cidade, mas também segrega e perpetua o afastamento do que é diferente. Moradores de rua fazem parte da comunidade, e, portanto, “eles merecem ser capazes de usar os ambientes públicos da maneira que precisam, dentro dos limites de segurança e da decência, é claro. Mas, (...) eles precisam dormir” (SOMOS CIDADE, 2022).

A desertificação urbana, a escassez de pessoas no espaço comum da cidade, a ausência da dinâmica do encontro, quando corroborados por mobiliários urbanos, estratégias ou elementos arquitetônicos limitantes do uso público, agem como uma higienização social, fortalecendo um comportamento indiferente e frio com o próximo, criando o afastamento e perpetuando as diferenças de classe.

Porém, ainda que ocorra uma mudança para pensar arquitetura a partir da hospitalidade, o espaço construído se limita ao plano da “intenção hospitaleira”, ou seja, mesmo com espaços acolhedores, a maior mudança estrutural vem das pessoas com o fomento das políticas públicas de qualidade (GHISLENI, 2022).

Logo, quando se trata de aproximar pessoas do espaço urbano, o uso da bicicleta se mostra um forte mecanismo de humanização e hospitalidade urbana, por isso, é fundamental compreender os entraves deste modal afim de tratá-lo como prioridade na reconquista do espaço urbano pelas pessoas, no qual a utilização da bicicleta tem como alvo a qualidade de vida e humanização do espaço público, tornando menos hostil a cidade contemporânea.

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  1. Ascensão da bicicleta na pandemia

Recentemente, durante a Pandemia de COVID-19, o interesse na bike se intensificou no mundo todo em busca do deslocamento seguro, visto que era uma alternativa ao risco das aglomerações que são inerentes ao transporte coletivo, e por promover o bem-estar, pois o uso da bicicleta foi visto como um lazer seguro nos momentos de isolamento e afastamento social. Em consequência, as bicicletarias tiveram um momento de alta nas vendas, o que levou a “magrela” aos noticiários como opção de transporte mais recomendado no período pandêmico, chegando a ser citada até mesmo pela Organização das Nações Unidas.

Figura 2 - Bicicleta como recomendação da ONU durante pandemia. Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020.

Figura 2 - Bicicleta como recomendação da ONU durante pandemia. Fonte: WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020.

A tabela 1 traz informações levantadas pela Aliança Bike (2022), considerando os lojistas e dados de produção, montagem e importação de bicicletas e componentes. A estimativa contempla bicicletas novas e usadas.

Tabela 1 - Crescimento nas vendas de bicicletas
Estimativas de vendas no comércio varejista de bicicletas nos últimos anos.
2018 4 a 4,5 milhões de unidades
2019 4 a 4,5 milhões de unidades
2020 6 milhões de unidades
2021 5,8 milhões de unidades

Diferentemente dos veículos automotores, a bicicleta se constitui por uma mecânica simples, estruturalmente leve e de baixo custo de produção. Mesmo com o desenvolvimento tecnológico em âmbito fabril, a bicicleta permanece sendo simples. Simples, mas não menos eficiente. Isso se deve a sua capacidade de deslocamento a um custo muito baixo, “para um ciclista se deslocar por 1km, são gastos 0,06 megajoules de energia, contra 0,16 do pedestre e 2,1 do automóvel” (CASTRO; BARROS FILHO, 2021), além de promover a saúde individual e coletiva, refletindo largamente na qualidade de vida do espaço urbano. Speck (2016, p.171) afirma que:

(...) a bicicleta deve ser a forma de transporte mais eficiente, saudável, libertadora e sustentável que existe. Com a mesma quantidade de energia usada para caminhar, a bicicleta leva três vezes mais longe. Quem vai ao trabalho de bicicleta pratica o dobro de atividades físicas do que motoristas. Bicicletas são baratas e o combustível é gratuito. E é divertido. Como disse um feliz ciclista “é como ir ao trabalho jogando golfe”.
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Mesmo assim, a bicicleta não recebe a prioridade merecida nos investimentos públicos quando se trata de mobilidade urbana, mesmo com um custo relativamente menor de implantação da rede cicloviária em relação às vias para automotores. Portanto, o modal se mostra preterido em relação a urbanização baseada no veículo particular. Ainda que se tenha os marcos legais, como a Lei nº 12.587/2012, que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana, e mais recentemente a Lei nº 13.724/2018, que institui o Programa Bicicleta Brasil, as melhorias das condições para os ciclistas caminha a passos lentos, postergando “a criação de uma cultura favorável aos deslocamentos cicloviários como modalidade de deslocamento eficiente e saudável” (BRASIL, 2018).

A partir do exposto, é necessário então refletir sobre as dificuldades enfrentadas pela bicicleta em um momento tão oportuno de adesão ao modal, pois os dados são animadores, mas “é preciso reduzir a desigualdade social e ampliar a justiça espacial para que a mobilidade urbana e o direito à cidade possam ser plenamente concretizados” (CASTRO; BARROS FILHO, 2021).

  1. Desafios da bicicleta

    3.1 Obstáculo 1: Rede Cicloviária Dispersa.

Algumas cidades brasileiras ainda sofrem com a ausência de rede cicloviária, porém outras cidades, como Goiânia, a rede existente se configura de maneira dispersa, logo, o atendimento a necessidade do ciclista é parcial e segregativa. Obviamente, os locais de implantação são eixos de transporte de grande relevância e que cruzam grandes distâncias na cidade, a dispersão não tira sua importância. Como se pode ver na figura 3, as ciclovias representadas pelas linhas vermelhas representam dois grandes eixos, Av. Universitária (linha vermelha superior) e T-63 (linha vermelha inferior), que são conectadas por ciclofaixas.

Figura 3 - Intersecção da área de influência das ciclovias nas regiões mais nobres. Fonte: LINS, 2020, p. 76.

Figura 3 - Intersecção da área de influência das ciclovias nas regiões mais nobres. Fonte: LINS, 2020, p. 76.

O sistema cicloviário, como um todo, encontra-se disperso em Goiânia, concentrando-se a maior parte desta infraestrutura nas áreas mais centrais. As demais encontram-se espalhadas e localizadas em parques urbanos, sem conexão com o transporte público. (LINS, 2020, p. 107)

Segundo Lins (2020, p.108), a rede cicloviária carece de alcance nas áreas periféricas, no qual “a população de baixa renda teria maior demanda por uso deste modal de transporte, não apenas como um equipamento para o lazer e o esporte, se estas estruturas cicloviárias estivessem também localizadas nas franjas da cidade”. Por isso, este obstáculo alerta a implantação da rede, pois não basta contemplar os centros, é necessário levar conectividade até as periferias e franjas urbanas, e abastecê-la com mobiliário essencial à segurança das bicicletas (paraciclos e bicicletários).

  1. 2 Obstáculo 2: Insegurança.

A ausência da rede cicloviária, cria risco aos ciclistas. Mesmo os mais experientes são expostos aos conflitos, erros e imprudência do trânsito nos grandes centros. Infelizmente, alguns acidentes envolvendo ciclistas são fatais, no qual é possível notar através de noticiário ou por uma pesquisa em buscador (Figura a ocorrência dos atropelamentos em vias urbanas. Neste sentido, Speck (2016, p. 171) afirma que “cidade com mais ciclistas são consideravelmente mais seguras tanto para ciclistas como para pedestres”.

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Figura 4 - Buscou-se 'Ciclista morre', e se obteve uma sequência diária de fatalidades. Fonte: Autor.

Figura 4 - Buscou-se 'Ciclista morre', e se obteve uma sequência diária de fatalidades. Fonte: Autor.

Este obstáculo, por sua vez, traz apontamentos de insegurança, como os atropelamentos, mas entram neste enfrentamento também os furtos, por isso a ausência de bicicletários também é uma barreira à permanência ao modal.

  1. 3 Obstáculo 3: Cultura do carro.

Considerando os meios transportes, nenhum outro modal carrega consigo tantos estigmas quanto o automóvel particular. Símbolo da liberdade individual, da independência financeira, do status, da ascensão social, o carro é mais que um meio de transporte, é um objeto de desejo e identidade.

A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias. Uma revolução ideológica ("cultural ") seria necessária para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe dirigente (direita ou esquerda). (GORZ, 1973, p. 2)

Mas para a cidade, a cultura do automóvel se revelou esmagadora. A necessidade de mais espaço cria vias em excesso e mais largas, substituindo áreas verdes e de convivência por estacionamentos. Roberto Andrés defende que a ferramenta para transformar o automóvel em “supérfluo necessário” foi através do urbanismo: “abrir largas avenidas, construir viadutos, espraiar as cidades em novos bairros periféricos” (ANDRÉS, 2021).

O sistema de vias e o tráfego que nele é organizado podem afetar muito a qualidade de vida das pessoas, prejudicando suas relações e destruindo o patrimônio histórico e arquitetônico. O prejuízo às relações humanas se dá na forma da limitação dos contatos físicos, que se tornam difíceis ou impossíveis quando há um tráfego pesado circulando. (VASCONCELLOS, 2018, p. 121)
  1. 4 Obstáculo 4: Machismo.

Na correria do cotidiano, a mulher desenvolve uma dinâmica de deslocamento diferente do homem. A mulher conquistou o espaço urbano promovendo mais o encontro, entre amigos e familiares, seja cuidando da vida pessoal, profissional ou familiar, porém para elas, experienciar a cidade tem suas restrições, medos e preocupações.

Notadamente, os crimes de opressão às mulheres se corporificam de diversas formas no transporte urbano: dos olhares insistentes, cantadas inconvenientes, importunações e assédio, até casos de racismo, estupro, ejaculações e dopagem. Tudo isso engendra a constante sensação de insegurança que as levam a adotar medidas que as protejam, adequando seus hábitos e sua rotina nos deslocamentos. (TAVARES, ALMEIDA, 2022, p. 298)
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Figura 5 - Mulheres são vítimas do machismo ao utilizar a bicicleta. Fonte: Autor.

Figura 5 - Mulheres são vítimas do machismo ao utilizar a bicicleta. Fonte: Autor.

Conforme figura 5, os resquícios da cultura machista se materializam em crimes de agressividade e perversão, fazendo mulheres ciclistas vítimas de assédio. É impossível mensurar os traumas dessas ocorrências, mas é possível perceber que a impunidade dos agressores hostiliza o uso do espaço urbano por elas.

A violência contra a mulher se manifesta tanto fisicamente, por meio das importunações e assédios, quanto subjetivamente por meios simbólicos que a inferiorizam e restringem a sua liberdade através de uma constante insegurança e vulnerabilidade nas atuais condições do transporte urbano. (TAVARES, ALMEIDA, 2022, p. 303)

A busca por uma distinção do homem se ampara na cultura automobilística, onde permite escoar e fortalecer toda a masculinidade tóxica, as “subjetividades individualistas, irresponsáveis e objetificadoras do outro, em busca do prazer a todo custo, que deste muito investiram no carro como meio de poder, distinção e violência” (ANDRÉS, 2021).

  1. Considerações Finais

Na atual sociedade, nos encontramos inseridos em um modo de vida cada vez mais individualizado, onde a indiferença e o afastamento do desconhecido por si só já torna hostil a relação entre as pessoas, no lugar de um tratamento mais gentil e fraterno.

Diferentemente da cultura das pequenas cidades, os centros urbanos vivem maiores segregações dos grupos sociais. O meio urbano se tornou casa da “violência urbana”, estabeleceu um medo constante, distanciando as relações e dissolvendo áreas comuns a todos, esvaziando o que é público. O hostil está estabelecido.

No resgate da humanização da cidade, a bicicleta, como mecanismo de hospitalidade, precisa superar obstáculos que vão do nível de infraestrutura até de gênero. É evidente que a falta do espaço reservado ao trânsito dos ciclistas, torna utópico a mobilidade urbana onde a bicicleta seja uma preferência da população. E claro, garantiria a integridade física dos ciclistas. É preciso acelerar a implantação da rede cicloviária nas cidades, a fim de evitar as fatalidades de quem escolhe um meio de transporte tão saudável e libertador.

A cultura do automóvel vai além da preferência pelo carro particular. Ela é um ponto cego ao olhar às mazelas urbanas, ela esconde as dificuldades que são enfrentadas por quem utiliza a bicicleta ou o transporte coletivo.

Nas questões de gênero que envolvem transporte, a bicicleta tornou-se parceira na conquista feminina do espaço urbano, mas é preciso reconhecer que a infraestrutura de transporte ainda inicia as mudanças para atender aos anseios da mulher nos seus deslocamentos. É latente a necessidade da mobilidade urbana feminina às mudanças culturais livre do machismo. Isso inclui melhorias nas calçadas, na rede cicloviária, na iluminação pública, na integração com a rede de ônibus, trens e metrôs, entre outros. Uma mobilidade urbana inclusiva, é uma mobilidade segura para a utilização pelas mulheres.

Por fim, considerando a mobilidade urbana, o incentivo ao uso bicicleta, com os devidos investimentos em rede cicloviária, educação no trânsito, e política pública, tornam possível o enfrentamento à interface hostil do espaço urbano. O urbano deve ser encarado com coragem, mas sem o constante medo da iminente violência implantada em nossa consciência. A ocupação do espaço urbano pelas pessoas passa pelo acolhimento das bicicletas.

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