Natalia Almeida Brito

Maria Carolina Carvalho Motta

O controle jurídico e político da administração pública

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Resumo:As ações e omissões governamentais acarretam consequências severas e devem ser tratadas como forma específica de decisão política. Insta salientar que o caos como método se materializa em um arsenal de táticas que engendram o colapso da administração pública, cujos efeitos impactam os direitos da população, o que suscita a judicialização. Neste ponto, o presente artigo objetiva identificar a idiossincrasia e a dinâmica da relação entre os três poderes no Governo Bolsonaro, entre os anos de 2019 e 2021, mormente a atuação do Judiciário frente à atual gestão. A partir da observação, análise e interpretação dos fatos e fenômenos jurídico-políticos do período, se traçará as características do controle da administração pública.

Palavras-chave:Conflitos político-institucionais; Gestão pública; Judicialização da política; Teoria de Freios e Contrapesos.

O desenvolvimento social e os conflitos inerentes à convivência humana engendraram mecanismos reguladores das relações de poder, nos quais se busca, por intermédio do Direito, delinear o comportamento das instituições e os meios de contenção de usurpações das respectivas funções atribuídas pela Carta Magna. Afinal, Montesquieu assevera que todos os Estados possuem, em geral, o mesmo objeto, que é conservar-se frente à experiência eterna de todo homem que possui poder é levado a dele abusar, até onde encontrar limites. Logo, torna-se impreterível que, pela distribuição, o poder limite o poder (MONTESQUIEU, 1996, p.166-167).

A Constituição Federal se debruçou, contudo, mais nos direitos e menos na modelagem do sistema político garantidor de sua eficácia (ABRANCHES, 2018, p.10), ao mesmo tempo que prevê cooperação, estimula o conflito interinstitucional. Concede, pois, ao Legislativo a capacidade fiscalizadora e controladora, mas também entrega ao Executivo a possibilidade de legislar por medidas provisórias. Outrossim, embora haja uma excessiva centralização de atribuições abrangentes na figura do Presidente da República que potencializa o risco de práticas arbitrárias, ocorre, simultaneamente, um alargamento da atividade legislativa frente à tradição legiferante brasileira.

Ademais, a ausência de ferramentas propriamente políticas para a resolução de impasses entre os poderes majoritários, suscita a paralisia decisória cujo único recurso é a judicialização, porquanto a extensão da Carta, que regula os mais diversos aspectos, aumenta o escopo do controle constitucional, ampliando demasiadamente o papel do Judiciário (ABRANCHES, 2018, p.366). As preferências subjetivas do magistrado tornam, ainda, vulneráveis as controvérsias de natureza política, diante de sua ampla autonomia na imposição de freios e contrapesos à ação dos demais Poderes.

A separação dos Poderes foi erigida pela Constituição de 1988 como cláusula inabolível, a qual deflui do art. 60, § 4º, III: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] a separação de poderes” (BRASIL, 1988). Assim como está no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, é ela intrínseca à Constituição, portanto, imprescindível ao constitucionalismo. Contudo, é de indagar-se o que abrange esse conceito no texto vigente, afinal, nos séculos que se passaram desde que o Espírito das Leis foi publicizado, no qual essa doutrina foi prescrita, diversas convicções foram consagradas pelo Direito positivo (FERREIRA FILHO, 2015, p. 69).

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No escopo jurídico, a divisão significa Poderes autônomos com atribuições próprias, definidas pela Carta Maior, que não podem ser usurpadas pelos demais. Para manter a tripartição das instituições superiores de governança, que todos assentam ser essencial à manutenção da liberdade, é de toda necessidade que cada um deles tenha uma vontade própria, e, por conseguinte, que seja organizado de tal modo que aqueles que o exercitam tenham a menor influência possível na nomeação dos depositários dos outros Poderes. Outrossim, é, inclusive, imperiosa a constante alternância dos dirigentes nos Legislativo e Executivo, nos regimes democráticos.

Não obstante, no escopo político, exige-se não apenas a independência dos Poderes na sua composição e no exercício de suas funções, porquanto estas se relativizam numa equação de forças que enseje o sistema de freios e contrapesos. Destarte, sua distribuição nunca se dissociou de processos de interpenetração, que exercem a ação frenadora através da qual se visa alcançar o desejado equilíbrio, aliás, a repartição não pode ser tida como absoluta e desintegradora.

  1. A composição do governo e o desmantelamento da administração pública

No Estado de bem-estar a governança, como espelha a Constituição brasileira em vigor, é complexa e delicada, e avulta-se a importância das crises na condução dos negócios públicos. Antes cabia ao Executivo manter a segurança do país, a ordem pública, executar as leis e fazê-las executar. Para tanto, contava apenas com uma Administração mínima e burocrática, e as Forças Armadas. No entanto, o advento do Estado social, em razão da questão social combinada com a democratização da participação eleitoral, acarretou-lhe muitas outras tarefas. Levou-o a intervir no domínio econômico, tornou-o o protetor dos paupérrimos, obrigou-o inclusive a constituir serviços para o cumprimento dessas novas tarefas que devem ser promovidas através de políticas públicas (FERREIRA FILHO, 2021).

Ao Poder Executivo cabe os atos típicos da Chefia do Estado, são eles as relações com Estados estrangeiros e celebração de tratados, e atos concernentes à Chefia do governo e da administração em geral, como a fixação das diretrizes políticas e a direção das atividades administrativas, mas também a iniciativa de projetos de lei e edição de medidas provisórias, a expedição de regulamentos para execução das leis, conforme dispõe o artigo 84 da Constituição Federal. Ademais, cabe-lhe ainda a iniciativa quanto ao planejamento e controle orçamentários, bem como sobre o controle de despesas, como preveem os artigos 163 a 169, e, por fim, a direção das Forças Armadas.

Frente a tamanha responsabilidade, a omissão governamental, portanto, acarreta consequências severas e deve ser tratada como forma específica de decisão política. O caos como método (NOBRE, 2019) se materializa em um arsenal de táticas que engendram o colapso institucional e a paralisia decisória, cujos efeitos impactam os direitos da população. “A ausência de planos, estratégias e metas é uma forma de não tomar decisões sobre o futuro, e inviabiliza a ação política”, não obstante, foi o modus operandi na Esplanada dos Ministérios (LOTTA, 2020). Outrossim, protelar processos que dependem exclusivamente da anuência governamental, retarda pronunciamentos e obsta a liberação de recursos.

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Pretende-se, então, eliminar entraves que possam vir da própria burocracia de Estado e os controles institucionais penosamente conquistados ao longo da redemocratização. “Mas o atual governo também ensina que a não decisão não precisa ser silenciosa. Ela pode ser fruto do excesso de falas e mensagens contraditórias, quesito no qual Bolsonaro vem se mostrando insuperável”. Se faz, pois, o caos decisório ao lançar dúvidas porquanto enseja conflitos entre os atores políticos. “Transmitir mensagens ambíguas, voltar atrás sem cerimônia nas decisões tomadas instantes antes, prometer coisas diferentes para distintos grupos” além de gerar uma não decisão, o governo cria um cenário instável que prejudica o posicionamento dos demais agentes (LOTTA, 2020).

Destarte, o Governo Bolsonaro é marcado pela criminalização e deslegitimação contínua da burocracia federal. A burocracia estável garante a primazia da lei que é imprescindível para o funcionamento da democracia, apta, assim, a se resguardar acima das ingerências e interferências políticas. Assegura, também, a impessoalidade e isonomia no tratamento do cidadão, âmago do Estado de Direito. Portanto, a ideia de estabilidade é imperiosa. Antagonicamente, sua ausência é égide para pressões políticas e, viabilizando-se a politização da burocracia, enseja o serviço público personalista e clientelista, que endossa trocas para os caciques locais. Logo, opera-se o desejo dos políticos do momento em detrimento ao ideal universal que demanda uma continuidade da provisão de serviços consubstanciados na burocracia, porquanto os projetos políticos se renovam a cada quatro anos sob o escrutínio das eleições.

A governabilidade democrática engendra instituições que possuem estrutura, especialidade e direcionamento, ancoradas formalmente na arquitetura do Estado de Direito, na qual o jogo de mudanças e reformas se desdobra a partir do processo de convencimento. Os movimentos que se destoam disso, tensionam pela paralisação do funcionamento usual e constitucional das instituições. Dessarte, convergem à desconstrução da atuação estatal para uma reorientação de mercado, ao processo de deslegitimação das políticas públicas e ao embaralhamento das competências institucionais, em que uma série de atribuições são deslocadas para ministérios cujos atores são antagônicos às políticas de proteção e contrários aos seus objetivos institucionais. Aderidos a uma visão heterodoxa.

Inoportunamente, promove-se o excesso de processos administrativos que se voltam a obter comportamentos específicos, ao cercear procedimentos habituais de atuação profissional já estabilizada e desqualificar constantemente a capacitação dos agentes, já sedimentada do ponto de vista histórico. Ademais, a atuação da política pública é tida como irrelevante, não sendo incremental à manutenção de resolução de problemas por parte dos órgãos e entidades governamentais. Disso decorre, por conseguinte, outra cisão para a desconstrução do Estado, porque o intitula subsidiador de interesses que são escusos, corporativo, ineficiente. Todavia, a descrença da população, em suma, existe não pela anomia do sistema jurídico-político brasileiro, mas persiste devido ao apolitismo pelo qual se torna míope com o que é estrutural ou o resultado de uma ação dissuasória.

A pandemia do Coronavírus, cujo enfrentamento demanda medidas improrrogáveis, explicitou a relevância das instituições em um regime democrático. Exigiu-se do Executivo e Legislativo o gerenciamento da crise mediante regulamentações das relações trabalhistas, comerciais e, sobretudo, sanitárias. O país, entretanto, cindiu-se em opiniões e, então, cenários mais complexos se instauraram. Sobrevém a discussão sobre quais são os serviços essenciais e a carência do repasse de verbas, desnudou-se, também, a divergência entre Presidência e Ministério da Saúde e a dissonância sobre os limites da atuação de governadores e prefeitos. Eventos como estes desafiam a resistência constitucional das instituições.

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Ainda depois da transição do autoritarismo para a democracia, apesar da constituinte de 1988 ter se pretendido normativa a partir do detalhamento de direitos e garantias, é inegável que o Brasil ainda atravessa dificuldades para se consolidar. Vislumbra-se, como exemplo, a arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada por partido político com representação no Congresso Nacional, na qual se questionou, perante o Supremo Tribunal Federal, a “investigação sigilosa contra um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança e três professores universitários identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’”, em que se teria produzido um dossiê com nomes e endereços de redes sociais, todos críticos do governo do presidente Jair Bolsonaro (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020).

Segundo a legenda partidária, integrantes do governo pretendiam tolher ilegalmente o exercício regular do direito à expressão de pensamento e interferir na íntima convicção ideológica de funcionários públicos essenciais, agentes de segurança e de educação, sob o pretexto de supostamente proteger a segurança nacional. Contudo, houve posicionamento da Corte, a Ministra Rosa Weber asseverou que "o poder arbitrário, sem o freio das leis, exercido no interesse do governante e contra os interesses dos governados, o medo como princípio da ação, traduzem as marcas registradas da tirania” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020).

Além do autocontrole democrático da burocracia estatal, agride-se também a imprensa livre, o Judiciário independente, o Legislativo fiscalizador, os movimentos sociais de contestação. O empenho por refrear esses arroubos autoritários, no entanto, parecem insuficientes diante da velocidade com que o Governo Federal impõe seu projeto de poder. Sua atividade se perfaz em disseminar notícias falsas que precisam ser refutadas pelos jornais, e fomentar incessantemente crises institucionais, no intuito de utilizar-se da máquina estatal para fortalecer os pilares que poderiam sustentá-lo no poder para além da garantia pétrea do voto direto, secreto, universal e periódico (EL PAÍS, 2021). Aliás, utiliza-se o discurso da antipolítica para desmantelar o arcabouço legal criado.

As promulgações de portarias, resoluções, decretos, editais, leis e despachos são, também, método de erosão da democracia. Em menos de três anos no poder, 1.141 decretos foram assinados pelo presidente (PORTAL DA LEGISLAÇÃO, 2021), os quais se converteram em ferramentas negacionistas da Constituição e das engrenagens que compõem o sistema político do país. Embora o Supremo Tribunal Federal reverta a maioria deles, enquanto não são julgados impulsionam as pretensões do presidente. Tática pela qual ampliou a venda de armas em confronto ao Estatuto do Desarmamento, previsto em lei federal aprovada pelo Congresso em 2003, porquanto foram publicados mais de 30 atos normativos cujo objetivo era contornar as limitações ao acesso e reduzir a fiscalização pelos órgãos competentes. Por meio dos decretos, portanto, o Governo Federal passa a legislar em um círculo vicioso de revogação e publicação.

Faz parte do cotidiano de um órgão público normatizar seu funcionamento, a fim de promover a manutenção da organização institucional e aperfeiçoar o exercício de suas atribuições como executor de políticas públicas, porém 1.252 atos concebidos nessa gestão, até setembro de 2021, produziram impacto significativo ao meio ambiente, voltados para alterar a legislação e facilitar a exploração dos recursos naturais, segundo o monitor Política por Inteira (FOLHA, 2021). “Em tempos normais de democracia e de cumprimento das normas legais por parte do Poder Executivo, o que não afasta escolhas de ordem política de natureza discricionária, esse exercício normativo transcorre sem grandes cismas e temores” (INESC, 2021), entretanto, as políticas públicas acumularam retrocessos desde a posse do Presidente Jair Bolsonaro, como se vislumbra na fala do ex-ministro Ricardo Salles (2020) em reunião ministerial:

Enquanto estamos nesse momento de tranquilidade, no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de COVID, é ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de Ministério da Agricultura, de Ministério do Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação.
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Assim, o governo se esforçou para desmantelar as estruturas dos órgãos ambientais. As secretarias do Ministério do Meio Ambiente foram alteradas ou extintas e cargos foram ocupados por pessoas com pouca experiência e militares. Não bastando:

Caso a Reforma Administrativa proposta pelo governo fosse aprovada sem alterações, o presidente poderia extinguir IBAMA e ICMBio sem consulta ao Congresso. Em 2019, um decreto reduziu a composição do Conselho Nacional de Meio Ambiente, órgão deliberativo que estabelece diversas normas ambientais, como o licenciamento de atividades poluidoras, praticamente pondo fim à participação social em matéria ambiental. Os assentos das ONGs, drasticamente reduzidos, são agora definidos por sorteio e o colegiado passou a atuar, na prática, como órgão de governo. [...] E os recursos existentes são mal aplicados. [...] o Ministro do Meio Ambiente e o presidente do Ibama estão sob investigação, acusados de estarem envolvidos na exportação ilegal de madeira. (ANESP, 2021).

A dirimição dos espaços de gestão da sociedade civil a partir do Decreto 9.759/2019, publicado sem qualquer diálogo com os órgãos afetados, é um anátema às medidas conjunturais relevantes cuja implementação advém da interlocução direta do Governo com os movimentos sociais e da mais ampla negociação por meio de inúmeros canais forjados para consolidar o Estado de Direito. A depredação destes órgãos vai de cortes financeiros a extinção de programas estruturantes, os quais configuravam o embrião de um sistema nacional participativo, podando a representação de vozes que, tradicionalmente, não têm espaço. Porquanto o governo coloca as diferenças e divergências, que são elementos constitutivos de qualquer democracia contemporânea, como algo problemático a ser superado.

Outrossim, o caráter arbitrário, que opera cada vez mais evidente, significa um movimento de avanço de desestruturação da administração pública federal, na medida em que os Conselhos e Comitês são espaços institucionais que aproximam os agentes públicos da sociedade com o objetivo de garantir eficácia para as políticas públicas. Logo, fortalecendo o cenário persecutório e criminalizador de atores civis e grupos que, frequentemente, por representarem minorias políticas, se defrontam com demasiados obstáculos para levarem suas demandas aos legisladores e formuladores de projetos, ensejando o fechamento do Estado à participação social.

Todavia, em 22 de abril daquele ano, o Partido dos Trabalhadores entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6121 junto ao Supremo Tribunal Federal com vistas à derrubada do Decreto, em liminar obteve-se a decisão

Democracia não é apenas o regime político mais adequado entre tantos outros – ou, parafraseando Winston Churchill, o pior à exceção de todos os demais; antes, deve ser compreendida como o conjunto de instituições voltado a assegurar, na medida do possível, a igual participação política dos membros da comunidade. Sob essa óptica, qualquer processo pretensamente democrático deve oferecer condições para que todos se sintam igualmente qualificados a participar do processo de tomada das decisões com as quais presidida a vida comunitária: cuida-se de condição da própria existência da democracia. [...] A conclusão é linear: a igual oportunidade de participação política revela-se condição conceitual e empírica da democracia sob a óptica tanto representativa quanto deliberativa. Como ideal a ser sempre buscado, consubstancia-se princípio de governo a homenagear a capacidade e a autonomia do cidadão em decidir ou julgar o que lhe parece melhor para a definição dos rumos da comunidade na qual inserido – requisito de legitimidade de qualquer sistema político fundado na liberdade. [...] Ao consagrar, junto aos mecanismos representativos, o princípio de participação direta na gestão pública, o texto constitucional, no que dotado de inequívoca força normativa, promoveu a emergência de diversos institutos alusivos à gestão ou fiscalização de políticas públicas. A leitura dos diversos capítulos da Lei Maior revela extenso rol de preceitos nos quais mencionada, expressamente, a “participação da comunidade” na gestão pública, notadamente na área da saúde – artigo 198, inciso III –, da seguridade social – artigo 194, inciso VIII –, da política agrícola, – artigo 187, cabeça –, da gestão democrática da educação – artigo 206, inciso VI –, e da assistência social, onde se estabelece, de forma específica, a participação da população “por meio de organizações representativas” na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis – artigo 204, inciso II. [...] Ante o cenário descrito, a conclusão constitucionalmente mais adequada, em sede precária e efêmera, consiste em suspender, até o exame definitivo da controvérsia, a extinção, por ato unilateralmente editado pelo Chefe do Executivo, de órgão colegiado que, contando com assento legal, viabilize a participação popular na condução das políticas públicas – mesmo quando ausente expressa “indicação de suas competências ou dos membros que o compõem”. (MELLO, 2019, p. 16-19).
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A partir da qual Bolsonaro teve que alterar sua estratégia inicial de extinção para a estratégia de esvaziamento do Conselhos em termos de funções ou de representatividade social, mantendo apenas a sua existência formal. Assim, o Governo passou a editar decretos específicos para alterar suas regulamentações. A exemplo, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com o Decreto 9806/2019, viu sua composição reduzida de 96 para 23 representantes, sendo que destes apenas quatro representam a sociedade civil.

Ademais, chancelou-se a nomeação em larga escala de policiais militares visando puramente o controle dos servidores, estratocracia que evidencia a completa obstrução à atuação de servidores públicos nas tomadas de decisões estratégicas. “Há pelo menos 6.157 fardados espalhados entre diretorias, conselhos administrativos e gerências de empresas estatais, como Petrobras, Itaipu, Correios e Eletrobras” (EL PAÍS, 2021). Destarte, a apologia da adoção do pretorianismo, mediante distorcida exegese do artigo 142 da Constituição, que destina às Forças Armadas a garantia dos poderes constitucionais, sustenta a ideia de que nela residiria o poder moderador, compreensão equivocada e juridicamente inidônea, na qual se viabiliza uma intervenção militar nos Poderes da República, gesto de infidelidade à ordem democrática e desprezo manifesto pelas instituições que compõem o sistema político-institucional brasileiro (MELLO FILHO, 2021).

A Constituição de 1988, além de ampliar a proteção aos direitos fundamentais e modelar o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput), reforçou temas e diretrizes precípuas para uma organização estatal condizente com os postulados republicanos, sobretudo a promoção da transparência e a valorização do controle da atividade administrativa. Estipulou-se, então, um duplo mecanismo fiscalizatório, de dimensão externa e outra interna, porquanto a preocupação do poder cooptar o serviço público se acentua pelo elevado número de cargos de livre nomeação pelo detentor do Executivo, que divergem do interesse republicano.

À vista disso, a burocracia deve ser compreendida como forma de arranjo que substitui um regime de imprevisibilidades e desigualdades regulado pela fidelidade a alguém interferente. Trata-se, pois, da racionalização do aparelho estatal, a torná-lo impessoal a partir de determinações legais. Aqueles que compõem a burocracia, portanto, estão imbuídos do interesse público e de razões públicas, no intuito de proteger a cidadania dos desmandos daqueles que de turno, e oportunamente, estão ocupando o exercício do poder do Estado.

  1. As intervenções do supremo tribunal federal e do congresso nacional nos atos da administração pública

Quando a própria atividade política e administrativa, que envolvem necessariamente a negociação entre valores e interesses irreconciliáveis, passa a ser tratada como eminentemente corrupta, pressupõe-se que a solução é exógena a ela. A exemplo, a pandemia cujo enfrentamento exigiu medidas céleres colocaram à prova a importância das instituições em um regime democrático.

Em sua função judicial, o Supremo Tribunal Federal atua decidindo o mérito de modo que o ganho obtido por um participante é equivalente à perda sofrida pelo outro participante, é, pois, a dinâmica da soma zero. Entretanto, nas questões políticas se busca a “solução ganha-ganha, na qual cada uma das partes cede para se chegar a uma decisão em que todas tem seu interesse satisfeito em alguma medida” ( ABRANCHES, 2019, p. 368). Logo, quando a judicialização prevalece, é propícia a denúncia de um governo de juízes e de uma justiça da salvação, induzindo a percepção da abdicação da integridade do Direito e a transformação, mesmo nas melhores intenções, em instrumento do seu derruimento.

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Deve-se, portanto, ponderar o impacto político do órgão de cúpula do Judiciário na definição do regime democrático, não apenas como guardião da Constituição Federal, mas também acerca da neutralidade de suas decisões pela influência de questões de conveniência política decorrentes da composição do Governo Federal e do Congresso Nacional.

Não obstante, a transferência das questões políticas para a apreciação do Poder Judiciário, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, é, principalmente, consequência do ajuizamento dos próprios integrantes da minoria parlamentar. O uso político da via judicial pelos partidos é, pois, o principal proponente na Corte das ações de controle concentrado. Trata-se de valioso instrumento para frear adversários da estratégia das arenas representativas, principalmente frente a produção de Medidas Provisórias temerárias de desestruturação institucional produzidas pelo Governo Federal.

O judiciário deve ser diferente em relação à opção feita pelos poderes públicos, sob pena de atuar como legislador positivo e administrador e, dessa forma, transgredir o postulado da divisão funcional de poder. Logo, consoante orientação doutrinária e jurisprudencial consolidada é descabida sua intromissão no exercício da função administrativa e no exame do mérito do ato administrativo, ou seja, o Corte somente pode atuar no controle da legalidade do ato, não podendo adentrar no exame de conveniência e oportunidade da solução escolhida pelo administrador.

Entretanto, a interpretação no Direito envolve a própria dignidade do ser humano, em questões como a vida, a saúde, a liberdade, o patrimônio e todas as garantias fundamentais que terminam por traduzir o núcleo inalienável da natureza humana. O que exige do jurista, no caso brasileiro, o respeito ao pacto de solidariedade que fundou a nova ordem política, para além de mera boca da lei como aduziu Montesquieu.

Nesse descortino, o controle de constitucionalidade impede paixões eventuais ou conjunturais, ainda que de maioria, possa descaracterizar valores do ordenamento jurídico, sendo fundamentalmente um controle contra majoritário. Dessa forma, o STF não é uma instituição que, ao velar da Constituição, faça tradução dos anseios da sociedade em um sentido representativo, mas sim, vislumbra a ordem constitucional no sentido de que os poderes instituídos, Executivo e Legislativo, não possa ofender as previsões do Estado de Direito, a democracia, os direitos sociais e a ordem econômica. Logo, o que está a se garantir é o pactuado firmado em 1988.

Em suma, assim atua quando, diante reiteradas tentativas de esvaziamento da proteção de terras indígenas não homologadas, o ministro Luís Roberto Barroso (2022) suspende dois atos administrativos da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão indigenista oficial do Estado brasileiro vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, que barravam medidas de amparo territorial da autarquia, a fim de concretizar-se os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência, estruturantes da administração pública:

Portanto, em síntese: (i) o Presidente da República declarou que não demarcará terras indígenas em seu governo, a despeito de se tratar de dever constitucional (e não de escolha política); (ii) atos administrativos da União buscaram “revisar” demarcações em curso e sustar a prestação de serviços a comunidades cujas terras ainda não tivesse sua regularização concluída (Parecer nº 001/2017/GAB/CGU/AGU); (iii) decisão judicial suspendeu a última providência (RE nº 1.017.365, Rel. Min. Edson Fachin); (iv) a União omitiu-se na prestação do serviço especial de saúde em terras não homologadas; (v) decisão judicial determinou a prestação do serviço (ADPF MC nº 709, Rel. Min. Luís Roberto Barroso); (vi) na sequência, a FUNAI editou resolução voltada à heteroidentificação de povos indígenas, com base na regularização de suas áreas (Resolução FUNAI nº 4/2021); (vii) nova decisão judicial suspendeu a providência (ADPF 709, Rel. Min. Luís Roberto Barroso); (ix) não satisfeita, a FUNAI pratica novos atos por meio dos quais pretende que terras indígenas não homologadas fiquem desprovidas de proteção territorial (Ofício Circular nº 18/2021/CGMT/DPT/FUNAI e Parecer nº 00013/2021/COAF-CONS/PFEFUNAI/PGF/AGU). Fica clara a persistência dos recursos de que vem se valendo a FUNAI – fundação que deveria estar voltada à tutela dos direitos dos indígenas – para desassistir tais povos.
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O Congresso Nacional, por sua vez, é um espaço cuja complexidade reflete o meio social, de modo que o conflito político que habita a vida cidadã se converte em um conflito regido pelas regras do procedimento parlamentar. As decisões dos congressistas seriam, por conseguinte, o resultado da interação entre as diversas correntes de pensamento (BARROSO, p.46). O sistema partidário, portanto, expressa a pluralidade e nisso se funda sua legitimidade como instituição intrínseca à gestão da coisa pública.

Logo, sob a égide da articulação e agregação dos interesses sociais, o parlamento exerce o controle sobre os atos e atividades da administração pública através da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas. Trata-se de controle político por excelência das atividades do Estado, exercido pelo Poder Legislativo, destinando-se a comprovar a probidade dos atos da administração, a regularidade dos gastos públicos e do emprego de bens, valores e dinheiros públicos e a fiel execução da lei orçamentária.

Cita-se, ainda, as Comissões Parlamentares de Inquérito, que por sua natureza e pela competência conferida pela Constituição da República, têm como objeto fatos determinados sobre os quais há presunção de interesse público. No desenho constitucional brasileiro, são manifestações da função fiscalizatória sobre a administração pública, instrumentalizando, assim, uma das facetas do sistema de freios e contrapesos, essencial à Democracia, conforme defendeu a Ministra Cármen Lúcia na ADI 5.351 (2021). Sua instalação depende do apoio de somente 1 ⁄ 3 dos parlamentares, motivo pelo qual elas servem às minorias, e têm cumprido papel importante em momentos cruciais da vida política nacional.

Frente ao Governo Bolsonaro se instalou a CPI da Pandemia no Senado, em 27 de abril, após determinação do Supremo Tribunal Federal, porquanto o presidente da Casa resistia. À medida que as investigações avançavam, a gestão malfadada da crise sanitária se evidenciava, somada às fortes suspeitas de corrupção envolvendo a negociação de vacinas, alta produção de cloroquina e logística dos cilindros de oxigênio. De acordo com o relatório elaborado pela comissão do Senado, as omissões e inabilidades de administrar se encerraram em diversos tipos penais, entre eles o crime de infração de medida sanitária preventiva, advocacia administrativa e corrupção passiva (SENADO, 2021).

  1. Considerações finais

Consoante aos resultados, apesar de suas limitações, as duas instituições, judiciária e legislativa, por meio do conhecimento epistêmico do direito estão sendo capazes de analisar a dimensão dos efeitos sociais, e tentam fazer um exercício de contenção em meio ao período de iminente desgoverno. Observando, para tanto, o Sistema de Freios e Contrapesos inerente ao adequado cumprimento da Teoria da Tripartição dos Poderes que visa a garantia dos direitos fundamentais do homem, através da limitação do poder estatal.

Logo, persiste o respeito à Constituição Federal de 1988 e a resistência da Sexta República Brasileira pela defesa da liberdade, com tolerância e respeito às diferenças, visando a subsunção do real ao escrito, para que a Lei Maior não seja uma mera folha de papel. Reivindicações necessárias para a subsistência do Estado Democrático de Direito.

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  1. Referências

ABRANCHES, Sérgio.Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ESPECIALISTAS EM POLÍTICAS PÚBLICAS. Dia do meio ambiente: retrocessos marcam o Brasil nos últimos anos. Disponível em: http://anesp.org.br/todas-as-noticias/dia-do-meio-ambiente-retrocessos-marcam-o-bras il-nos-ltimos-anos. Acesso em: 04 de out. 2021.

BARROSO, Luís Roberto. Medida Cautelar Na Arguição De Descumprimento De Preceito Fundamental 709 Distrito Federal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/barroso-manda-funai-proteger-terras.pdf . Acesso em: 20 de ago. 2022.

BARROSO, Luís Roberto. Reforma política: uma proposta de sistema de governo, eleitoral e partidário para o Brasil. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5588083/mod_resource/content/1/Texto%20Barroso%20Sistema%20de%20Governo%2C%20eleitoral%20e%20partid%C3%A1rio. pdf. Acesso em: 03 de jun. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 03 de jun. 2021.

BRASIL. Presidência da República. Decreto Nº 9.806, de 28 de maio de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D9806.htm Acesso em: 03 de jul. 2022.

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