O abandono afetivo e a cultura heterocisnormativa
45Resumo:O presente artigo apresenta como objetivo investigar as influências da cultura heterocisnormativa no âmbito do abandono afetivo. Para isso, a pesquisa se restringe ao problema: o abandono afetivo de LGBTQIAP+ é influenciado pela cultura heterocisnormativa? De forma que aponta-se a hipótese de que o abandono afetivo de LGBTQIAP+ é influenciado pela cultura heterocisnormativa imposta há anos, especialmente porque a vivência dos pais, compenetrada nesta, enseja a crença na dicotomia entre certo e errado, corroborando a criação do abjeto, da discriminação e, consequentemente, a rejeição familiar. Consistindo o presente trabalho em escrita por meio do método hipotético-dedutivo e pesquisa bibliográfica.
Palavras-chave:Direitos Humanos; Direitos LGBTQIAP+; Discriminação; Cultura heterocisnormativa; Igualdade.
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Introdução
O trabalho busca tratar a respeito da responsabilidade da cultura heterocisnormativa pela rejeição afetiva a LGBTQIAP+, ou seja, como a manutenção da intolerância e discriminação são fatos geradores do desamparo familiar. Este objeto será demonstrado por meio da perspectiva histórica e religiosa do abandono afetivo, acreditando-se que a perpetuação de padrões sociais perpassa pela conivência social com a violência e criação do abjeto.
Quando falamos de família logo pensamos em conforto, segurança, apoio e amor. Este grupo social, portanto, está atrelado intrinsecamente ao afeto. Mas infelizmente, muitas vezes o lugar e as pessoas que deveriam nos passar confiança, que deveriam nos apoiar e amar apesar de qualquer diferença, é onde menos nos sentimos seguros.
O abandono afetivo é, em suma, o descumprimento do dever dos pais de dar afeto aos seus filhos. Assim, a negativa de afeto se dá quando não há, por exemplo, cuidado, responsabilidade na formação, empenho na aprendizagem e/ou interesse na participação na vida do ente abandonado.
Tal rejeição, infelizmente, é recorrentemente sofrida pelas pessoas que não se enquadram nos padrões sociais impostos pela heterocisnormatividade. A LGBTfobia, preconceitos e intolerâncias existentes contra LGBTQIAP+, faz com que as pessoas que assim se denominam sejam ainda mais vulneráveis às intempéries sociais quando abandonadas afetivamente, visto que já são marginalizadas pela dificuldade de se manterem na escola devido ao bullying, pela escassez de vagas de emprego e pelo insuficiente número de políticas públicas que garantam seus direitos.
Desse modo, tem-se uma análise histórica a respeito da vulnerabilidade de LGBTQIAP+, de forma que é observada a evolução da luta contra a discriminação face às orientações sexuais e identidades de gênero desde a década de 1.960 até o ano de 2.000. Tal reflexão é pertinente para compreender a sociedade em que estão inseridos os pais que abandonam os filhos, e também, para perceber a cultura normativa que impulsiona as ações destes indivíduos.
A temática histórica objetiva fortalecer a compreensão da transformação do pensamento a respeito da sexualidade e do gênero, razão pela qual foi pautada não sob a perspectiva patologizante/estigmatizante, mas sim sob a ótica inclusiva, que buscou refutar a ideia de que a verdade do sujeito se encontra relacionada à sua composição biológica e à visão binária dos gêneros, que regem o comportamento dos sujeitos. (CARAVACAMORERA; PADILHA, 2015).
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A heterocisnormatividade
A cultura compreende os aspectos apreendidos pelo ser humano ao longo de sua convivência. Esses aspectos compartilhados refletem diretamente na realidade social desses sujeitos. De forma que são criadas normas de conduta a partir de seus valores, responsáveis pela aprovação social do indivíduo, regulando o comportamento de seus integrantes.
A mente humana instintivamente se agarra a padrões, é uma peculiaridade que permite a sobrevivência desde os povos primitivos. Observar os padrões gera segurança sobre os aspectos futuros, além de uma falsa sensação de controle, visto que a imprevisibilidade é inevitável, mas temida.
Apesar de toda a diversidade de pessoas, surgiram, a partir da fomentação da ideia de adequação de toda espécie humana, vários padrões pré-estabelecidos, nesse caso, os de identidade de gênero e orientação sexual em consonância com o sexo biológico — denominado heterocisnormatividade. Desde a gestação, quando toda a sociedade questiona o sexo de uma criança e a partir dessa característica, expectativas são criadas para toda a sua vida, desde o uso das cores azul e rosa até a designação de profissões, lugares que podem ser ocupados por elas, como também as maneiras de se portar, sentir e amar. Tudo isto julgado de acordo com esses estigmas e os contratos sociais firmados pelo patriarcado. (PARANHOS, 2015).
Essa padronização é, muitas vezes, advinda das crenças fundamentais presentes em determinadas sociedades, as quais afetam até mesmo as pessoas LGBTQIAP+ que, às vezes, perduram no processo de aceitação. Não por acaso o número de suicídios de pessoas deste grupo é gritante, visto que tem seis vezes mais chance de cometer o ato, de acordo com a revista científica americana Pediatrics e, segundo a mesma o risco de suicídio é 21,5% maior quando convivem com pessoas que as aprisionam. (FERNANDES, 2021).
Muitas esperanças são depositadas sobre um ser humano: como se somente existisse possibilidade de sobrevivência dentro destes padrões preordenados e não houvesse liberdade para a vivência de sua autenticidade. De modo que os indivíduos tentam se enquadrar a estas caixas classificatórias para se sentirem pertencentes à sociedade, muitas vezes sustentando máscaras para corresponder aos estereótipos aceitos socialmente.
Essa categorização fundada nas relações heterossexuais foi provocado por restrições como a biologização do sexo, que naturalizaram o homem e a mulher a determinado órgão reprodutor. Baseando-se na concepção de Foucault a respeito da sexualidade e as relações de poder, entende-se que o machismo é introduzido através da educação ortodoxa, criando uma transmissão das discriminações sexista e heterocisnormativa, como maneira de coibir a aparição de futuras feministas que podem reivindicar a igualdade social. (PARANHOS, 2015, 2016).
Desse modo, estas raízes da padronização social reverberam até hoje preconceitos que agridem e tornam abjeto as minorias. Frases ruminadas criam verdades e naturalizam construções humanas como sagradas, gerando um raciocínio reprodutor de estigmas desiguais. A inadequação a estas criações segregam os que externalizam a autêntica vivência da diversidade sexual e lutam pela liberdade a qualquer imposição.
Bourdieu alerta que:
A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho. (BOURDIEU, 2012, p. 11).47
Tal perspectiva resume o ser humano ao seu corpo, como se o intelecto, o emocional e a compreensão de seu íntimo não fossem intrínsecos a sua identidade. Concepção necessária para a mudança de óptica. Se o corpo é o todo, este vira uma gaiola que aprisiona os sentimentos que abundam este ser e precisam ser vazados para a completa expressão de sua singularidade, resultando em uma existência insuficiente.
Destarte, foram criadas diversas normas sociais regulatórias de gênero, realçando a superioridade masculina frente a submissão feminina, com base no sexo (SCOTT, 1989). O gênero se torna uma categoria de análise social, ao passo que fundamenta um sistema que perpetua a soberania da elite, como expõe Foucault: “[...] assegurar o povoamento, reproduzir a força de trabalho, reproduzir a forma das relações sociais; em suma, proporcionar uma sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora [...]” (1988).
Toda esta categorização para satisfação egoística ainda deturpa o sofrimento das minorias, o qual se prefere mascarar, como comprova a invisibilidade da discriminação. Os casos de homicídio advindos da trans e homofobia ainda são tratados com certa naturalidade, como algo tolerável, sem comoção social, diferente de quando são mitigados valores religiosos da tradicional família brasileira frente aos direitos garantidos, como no caso da menina de 10 anos vítima de estupro que se utilizou de seu direito de interromper a gravidez indesejada e consequência do abuso, o qual movimentou vários conservadores às portas do hospital de Recife para tentar impedi-la de abortar. (JÍMENEZ, 2020).
Judith Butler expressa esse entendimento:
Na constituição dessa norma heterossexual, há a ideia de que algumas instâncias devem estar alinhadas, por exemplo, sexo, gênero, corpo e desejo, apresentando continuidade e complementaridade entre si. O gênero deveria estar em concordância cisnormativa com o sexo – as pessoas apenas poderiam ser legítimas a partir dessa suposta concordância, afinal o sexo biológico conservaria a essência da masculinidade e feminilidade – e o desejo deveria estar sempre heterossexualmente orientado, para a devida manutenção da função social da reprodutividade e da família como preservação de um modelo de moral social. (BUTLER, 2009).
Conclui-se assim, que a consonância entre sexo, identidade de gênero e orientação sexual é criação humana utilizada para a massificação de estereótipos que reproduz preconceitos, alcançando os relacionamentos intrafamiliares e, lamentavelmente, para alguns, justificando o abandono afetivo frente a vivência livre dos filhos.
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A santificação do estereótipo
Do mesmo modo, a religião possui pontos positivos e negativos, segundo o contexto social em que é inserida e de acordo com o teor da consciência de sua influência sobre a sociedade. Pois, muitas vezes, o desejo, as práticas sexuais e os sentimentos são penetrados no inconsciente de maneira inexplicável, propagando várias ações reflexas e vazias de racionalidade, porém abundantes de preconceito. (PARANHOS, 2016).
É possível observar nos discursos religiosos a inclusão de normativas exclusivas e sexistas, de maneira que os opressores se vestem desse poderio para violentar os oprimidos, admitindo essas instituições o poder de legitimar discursos ilegitimáveis e contraditórios com os princípios dos próprios líderes religiosos. (FOUCAULT, 1988).
48A utilização do pecado como dispositivo heterocisnormativo e do medo como ferramenta fomentadora do padrão, de forma que o destoante é segregado e condenado a um futuro torturante, controla as pessoas para se comportarem de acordo com o aceito e adequado aos estereótipos. Criando, até mesmo, uma falsa sensação de erro, ao mero desvio da conduta normativa.
Por conseguinte, como país com população, em sua maioria, cristã (IBGE, 2010), muitos pais se revestem dos discursos de caráter religioso para validarem a discriminação às orientações sexuais e identidades de gênero e respaldarem o abandono afetivo de LGBTQIAP+.
Há assim, o controle sobre os corpos, os sentimentos e até mesmo os desejos das pessoas, de forma que estas somente têm uma vivência digna de respeito e legítima se estão em consonância com esta normatividade. Contudo, o poder normalizador falha frente a seres de tamanha complexidade que não podem ser configurados para a reprodução perfeita de ações preordenadas como se fossem robôs.
No entanto, a vida cobrará rigidamente os que denominam pecado o amor que diverge da perspectiva fútil heterocisnormativa, por julgar comportamentos, prender, humilhar e podar todo o relacionamento que não se enquadra na ignorância dos valores propagados comuns. “Porque o amor, do jeito que pode ser, é o caminho da liberdade e da grandeza – é a nossa única possibilidade de salvação.” (LUFT, 2004, p. 55).
Portanto, como disse ngela Pires Terto, assessora de Direitos Humanos da ONU no Brasil, a natureza humana é complexa demais para se enquadrar em caixas classificatórias, por isso é necessário respeitar os diferentes conceitos, compreendendo que somos tão intrinsecamente multifacetados que as ideias antigas sobre a nossa identidade e como nos apresentamos ao mundo não conseguem mais atender à riqueza de quem somos, porque somos todos diversos e aí está nossa maior potência. (ESMP TALKS, 2021a).
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Transições da heterocisnormatividade
A heterocisnormatividade é um padrão imposto há anos, mas sofreu modificações ao longo destes. Em 1963 surgiu “O Snob”, jornal que ajudou na formação de um ambiente mais permissivo às questões sobre a homossexualidade, no entanto, em 1969, acabou encerrando suas atividades devido à repressão às liberdades individuais e coletivas ocasionada pelo governo militar (GREEN, 2000).
Nesse período, a repressão da ditadura se deu por meio da organização de grupos de militância, o ativismo do grupo homossexual surgiu por um jornal que politizava acerca das questões em torno da normativa sexual. No entanto, somente no final dos anos 70 há o surgimento do movimento homossexual no Brasil, marcado pela politização da homossexualidade, tendo como referência o jornal Lampião da Esquina, editado no Rio de Janeiro e o grupo Somos de Afirmação Homossexual de São Paulo que promoviam a reflexão em torno da sujeição do indivíduo às convenções de uma sociedade sexista, gerando espaços permissivos à afirmação da diversidade (SANTOS, 2018; FACCHINI, 2011).
Aliada ao movimento feminista e ao movimento negro, a primeira onda do movimento homossexual continha propostas de transformação para o conjunto da sociedade, no sentido de abolir vários tipos de hierarquias sociais, especialmente as relacionadas a gênero e a sexualidade. (FACCHINI, 2011).
Esta ordem somente é permitida pela normatividade heterosexista, que através da naturalização do sexo e dos gêneros masculino e feminino, impõe uma “normalidade” em virtude da qual a virilidade é preponderante em relação às outras expressões sexuais como a feminilidade, a homossexualidade, lesbianeidade e a transexualidade, sendo (in)compreendida como um transtorno de identidade (CARAVACA-MORERA; PADILHA, 2015).
Porém, é evidente que a normalidade é uma construção social que constitui lógica a partir do convívio com outros seres ditos “anormais”. Em razão desta estrutura é que as múltiplas diversidades sexuais são vistas como manifestações equívocas, que devem ser reprimidas e negadas por um mecanismo identitário binário, claustrofóbico e simplista.
Adversa a esta criação foi que, em 1979, houve o primeiro encontro de homossexuais militantes no Rio de Janeiro, que resultou também na convocação do primeiro encontro de um grupo de homossexuais organizados, o que ocorreu em abril de 1980, em São Paulo. (FACCHINI, 2011; CARAVACA-MORERA, PADILHA, 2015).
49As construções ultrapassadas de certo e errado impostas pela sociedade para que o indivíduo se integre a este meio desafiam a potencialidade de diversificação, cada ser constitui uma complexidade de desejos e concepções, que se racionalizadas e restringidas perdem sua função de impulsionar este à vivência de sua autenticidade devido à vulnerabilidade gerada pela resistência ao que é imposto.
A repressão a estes corpos ocorreu, em 1980, através da prisão arbitrária de lésbicas devido à sua orientação sexual, em São Paulo, durante a “Operação Limpeza”. Ano em que também surgiu o primeiro grupo exclusivamente lésbico, chamado Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), por uma divisão no grupo Somos-SP e o seu primeiro ato foi justamente denunciar os abusos ocorridos nesse encarceramento de pessoas por se expressarem como de fato são, contrariando a imposição de uma identidade estereotipada pela ligação entre sexo biológico, gênero e práticas sócio sexuais consideradas aceitáveis. (FACCHINI, 2011; ANTUNES, 2018; CARAVACA-MORERA, PADILHA, 2015).
Porém, no início da década de oitenta, a descoberta do HIV (vírus da imunodeficiência humana), sobretudo transmitido a partir de relações sexuais, impulsionou o discurso patologista, quando o associaram à homossexualidade. No boletim informativo do Grupo Gay da Bahia, de 1982, noticiou-se: “A ‘Peste Rosa’ mata os gays”, o medo gerado pela falta de informações e o julgamento moral fez com que os homossexuais recuassem na luta pelo respeito à diversidade sexual, ao passo que, o desconhecimento generalizado e o preconceito motivava cada vez mais a homofobia, chegando ao ponto de o jornal “A Tarde”, de Salvador, recomendar o extermínio destes. (SANTOS, 2018).
A patologização é a tentativa, por meio da fundamentação científica, de legitimar o preconceito e reproduzir este pensamento de que o diferente é doente através da relação errônea criada entre a homossexualidade e a transmissão do vírus. Ademais, denominar esta síndrome como “peste” também remete a ideia de castigo divino suportado pelos pecadores, o que demoniza a homossexualidade propagando a ideia de que é profana.
A partir de então, o movimento se articulou objetivamente e passou a interagir de maneira mais programática com o Estado, entre os anos de 1981 e 1985, movendo uma campanha nacional coordenada pelo Grupo Gay da Bahia pela despatologização, que somente seria conquistada em maio de 1990 com a retirada da homossexualidade da lista de doenças pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Decisão que contribuiu à compreensão desta característica como uma identidade sexual que precisa ser respeitada. (FACCHINI, 2011).
Outra importante inovação foi a adoção do termo “orientação sexual”, retirando a sexualidade do campo da escolha ou de condição inata. Durante a Constituinte de 1988 o Grupo Triângulo Rosa, do Rio de Janeiro, reivindicou a inclusão deste termo no artigo 3.º, inciso IV que proíbe as variadas formas de discriminação. Apesar de não obter êxito nesse momento, a busca pela inclusão da proibição desta distinção foi acolhida posteriormente nas legislações de vários Estados e Municípios. (FACCHINI, 2011).
Tais denominações são extremamente importantes, pois influenciam na perspectiva da sociedade a respeito destas práticas, visto que a linguagem é comumente utilizada para a propagação de ideias e preconceitos se a palavra e sua simbologia não são refletidas pelo interlocutor.
50Posteriormente, em 1990, o movimento homossexual cresceu, tornando o Brasil pioneiro na resposta comunitária e governamental à SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida) através de grupos que passaram a coordenar projetos preventivos financiados por programas estatais de combate à infecção. A introdução de pautas do movimento nas políticas públicas, se deu pela via da saúde e não pelo reconhecimento das demandas de cidadania de LGBTQIAP+ ou criação de conselhos de direitos. (FACCHINI, 2011).
Todas essas ações que visaram o combate à epidemia da SIDA bem expressam o que disse Érika Hilton: “Quando temos uma sociedade ancorada nos valores da equidade e dos direitos humanos, que respeita a sua diversidade e pluralidade, por consequência até mesmo os grupos que não são vulneráveis são beneficiados por este avanço social.” (ESMP TALKS, 2021b).
Nesse momento ocorre a diferenciação dos vários sujeitos políticos internos do movimento: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, focando em demandas específicas destes. A partir de 1995, começou o empenho de transexuais pelo acesso às cirurgias experimentais de transgenitalização que foram aprovadas, em 1997, pelo Conselho Federal de Medicina. (FACCHINI, 2011).
Tal autorização é fundamental para as pessoas que nasceram com corpos que não correspondem à sua identidade de gênero e desejam mudá-lo. O discurso ideológico disseminado pela sociedade hétero-inquisidora, questiona a diferença entre homens e mulheres, assim como a exteriorização do desejo de ser outra pessoa com características gênero-comportamentais opostas.
Também no ano de 1995, ocorreu a fundação da rede de organizações brasileira ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis), sendo a maior da América Latina com cerca de 200 organizações. Esta rede, então, passou a promover uma série de ações no âmbito legislativo e judicial, orientadas para acabar com as discriminações e violências sofridas por esta comunidade, são exemplos as campanhas em favor da aprovação de projetos de lei, como o 1151/95, que pretendia reconhecer a parceria civil, e o 122/2006, que objetivava criminalizar a homofobia. (FACCHINI, 2011).
Dessa forma, da década de 1960 até os anos 2000 houve mínima regressão das discriminações sofridas por LGBTQIAP+, devido a uma série de fatores como: a pouca quantidade de políticas públicas que buscassem uma educação escolar inclusiva para a diminuição da evasão escolar, o acesso desses grupos ao mercado de trabalho, a admissão especial em unidades básicas de saúde, a visibilidade da agravante violência ocorrida contra esses corpos por meio dos censos, entre outras promoções caras ao avanço de uma sociedade democrática.
Este mínimo avanço influencia diretamente na concepção da família sobre o ente LGBTQIAP+, o que muitas vezes é a causa do abandono afetivo, devido não se achar que aquele sujeito, devido sua orientação sexual e/ou identidade de gênero, é digno de amor, respeito e cuidado.
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Considerações finais
O presente trabalho teve como foco principal de estudo a perspectiva histórica e religiosa do preconceito a LGBTQIAP+ que corrobora com o abandono afetivo. A criação de padrões ao longo da história humana baseados nas crenças fundamentais enseja a marginalização dos diferentes, que não se submetem e, por isto, se tornam vulneráveis pela resistência à imposição dos estereótipos.
A conservação destes arquétipos em nome da preservação da moral familiar é imposta até hoje como se a fuga deste roteiro pudesse causar um descontrole social, porém, nele não existe vida, somente sobrevivência a partir do cumprimento de regras e metas que ditam o status social do ser e, portanto, a sua importância para o meio, o seu merecimento a direitos, o acolhimento que receberá, se será cuidado ou excluído por sua família.
É certa a vulnerabilidade proveniente da LGBTfobia sofrida pelas pessoas deste grupo, a qual as afeta nas esferas educacional, social e econômica. De forma que quando esta violência também atinge a esfera familiar, o LGBTQIAP+ perde muito do que lhe é essencial à vida, pois a ausência dos vínculos afetivos pertencentes a este grupo social altera uma perspectiva de segurança que frustra um desenvolvimento harmonioso e, muitas vezes, desencadeia diversos danos emocionais.
Conclui-se que paradigmas são insuficientes à complexidade da essência humana, sendo necessário tornar visíveis as pautas das minorias, compreendendo que somos inerentemente múltiplos e que as concepções conservadoras a respeito da identidade humana não atendem à riqueza de quem somos, pois, a diversidade é a maior potência dessa espécie.
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Referências
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