José Rodolfo Pacheco Thiesen

Thaís Troncon Rosa

Silke Kapp

Apontamentos sobre o papel econômico dos canteiros de obras coloniais latino americanos

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Resumo: Quando chegaram às Américas, os colonizadores europeus procuravam expandir o comércio segundo uma lógica mercantilista. A história da arquitetura latino americana revela que edifícios e cidades também foram produzidos, não de maneira homogênea, mas segundo uma distribuição que pode ser compreendida a partir de pesquisas focadas nos modos de organização do trabalho e na economia política dos canteiros de obras. Pretendo demonstrar que a produção de objetos arquitetônicos atuou como uma atividade econômica secundária, complementar às atividades principais (exportação de metais e produtos primários), e que as dinâmicas econômicas da produção principal é que determinaram, em grande medida, o porte e a sofisticação dos edifícios coloniais latino americanos.

Palavras-chave: Estudos de produção; Marxismo; Trabalho.

Introdução

Na UFG Campus Goiás o curso de Arquitetura e Urbanismo compõe, junto com os cursos de Direito, Serviço Social e Administração, a Unidade Acadêmica Especial de Ciências Sociais Aplicadas. Apesar de a Arquitetura e o Urbanismo pertencerem, segundo classificações de órgãos como Capes e CNPQ, à área de ciências sociais aplicadas, o arranjo da UFG-CG é incomum: o mais comum é encontrar cursos isolados em suas próprias faculdades de Arquitetura, ou conjugados em Unidades Acadêmicas de Artes ou Engenharias.

As consequências deste fato são profundas, abrangendo desde o perfil da atuação profissional esperada dos egressos até a pesquisa e o olhar sobre, por exemplo, a história da arquitetura. Do ponto de vista da atuação profissional, o campo das ciências sociais aplicadas sugere maior engajamento nos problemas urbanos e habitacionais, em detrimento de concepções mais elitistas voltadas à formação de profissionais liberais, por exemplo. Já do ponto de vista da história da arquitetura é possível dizer que falta, geralmente, um olhar de ciência social aplicada capaz de enxergar em disciplinas como a Economia Política um grande potencial para a reflexão crítica sobre o passado e o presente. Neste sentido, Sérgio Ferro, arquiteto e teórico brasileiro, sugere ser necessário repensar toda a história da arquitetura a partir de um rearranjo epistemológico que confira à Economia Política um papel elementar:

A arquitetura faz parte de um conjunto maior, o da construção em toda sua extensão, que por sua vez está incluído num maior ainda, o da economia política. Acreditamos que é a partir da análise da construção, toda ela, dentro da economia política e, em seguida, da arquitetura dentro da construção, que poderemos compreender corretamente esta nossa atividade: desenhar, projetar. (FERRO, 2010, p. 13)

Atualmente sou pesquisador afiliado em um projeto de pesquisa anglo-brasileiro intitulado Translating Ferro / Transforming Knowledges (TF/TK). O TF/TK tem efetivamente avançado no sentido apontado por Sérgio Ferro. Ele visa não somente a tradução das obras de Sérgio Ferro para a língua inglesa como também a estruturação de um campo chamado de "Estudos de Produção", no qual pretende-se articular e aprofundar a produção teórica, histórica e experimental de pesquisadores de diversos países identificados com os problemas levantados por Sérgio Ferro. Trata-se de um esforço promissor, pois como salienta Silke Kapp: "Seria possível e necessário reescrever a história e a teoria da arquitetura a partir dos canteiros." (KAPP, 2020, p. 24).

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Dilemas internos da historiografia da arquitetura

Quando, em 1935, Bertold Brecht escreveu Perguntas de um operário letrado, nos fez lembrar que os trabalhadores, especialmente os da construção, são eclipsados na escrita da história. Poucos anos depois, Walter Benjamin lança igualmente um apelo à realização da tarefa de "escovar a história a contrapelo" (BENJAMIN, 1987, p. 225). Benjamin questiona "com quem [grifado no original] o investigador historicista estabelece uma relação de empatia" (BENJAMIN, 1987, p. 225). Este "quem" grifado por Benjamin é fundamental. Sem o questionamento a respeito dele, não somente escreve-se a história dos vencedores como também ela passa como sendo a história universal. No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels também reconheciam o problema: "as ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante" (MARX, 2015, p. 20).

Quando o objeto de investigação é o passado, partimos de testemunhos. Estes testemunhos não são, em si, respostas, mas contém respostas, a depender das perguntas lançadas a eles. Interessa saber quem pergunta. Segundo Edward Thompson:

Cada idade, ou cada praticante, pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz novos níveis de evidência. Nesse sentido, a "história" (quando examinada como produto da investigação histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. (THOMPSON, 1981, p. 51)

As perguntas lançadas por Brecht há 85 anos tinham esse objetivo. Brecht lançou as perguntas pela poesia, cabe à ciência respondê-las. Há quem acredite que elas já estão sendo respondidas, como o historiador Carlo Guinzburg. No prefácio à edição italiana de seu famoso livro O queijo e os vermes ele afirma que "No passado, podiam- se acusar os historiadores de querer conhecer somente as 'gestas dos reis'. Hoje, é claro, não é mais assim" (GUINZBURG, 2006, p. 11). Mas Paulo Bicca comenta:

Gostaria de poder concordar plenamente com o que diz Guinzburg. Infelizmente, sinto-me impedido, ao menos no que tange às teorias e historiografias arquitetônicas, pois nestas, salvo raríssimas exceções [...], a ideologia dos seus autores continua a referir-se tão somente, se não "às gestas dos reis", ao menos "às gestas dos arquitetos", ocultando, deixando de lado ou simplesmente ignorando a pergunta do "leitor operário". (BICCA, in FERRO, 2005, p. 13)

A afirmação de Paulo Bicca é inequívoca e tem razão de ser. Diferente do campo da história (em geral), a história da arquitetura (em específico) é produzida, geralmente, por arquitetos e arquitetas "incapazes de fazer uma crítica da qual eles próprios seriam os alvos" (BICCA, 1984, p. 8). Diferente de historiadores e historiadoras, arquitetos e arquitetas estão diretamente inseridos no universo da produção de mercadorias (imóveis, mas ainda assim mercadorias), e cumprem um papel bastante demarcado nos mecanismos de extração de mais-valor. Trata-se, portanto, de um problema estrutural. Segundo Silke Kapp, "a obliteração do trabalho material que a realização de planos e projetos exige é sistemática na teoria arquitetônica" (KAPP, 2020, p. 24).

Há, assim, um vício na teoria e na história da arquitetura que consiste em analisar e considerar somente projetos, mesmo quando se analisa uma obra. As obras, mesmo depois de construídas, são avaliadas como produtos de um projeto, de uma ideia ou uma intenção, e não como produtos de um canteiro de obras. O desenho, nascido como um meio, torna-se um fim, e o corolário deste processo é chamado por Sérgio Ferro de “consulado da representação” (FERRO, 2006). Segundo Amarí Peliowski, professora da Facultad de Arquitectura y Urbanismo da Universidad de Chile:

Puesto que en América latina uno de los aspectos más estudiados en la arquitectura del pasado ha sido su identidad cultural, buscando discernir el origen americano o europeo de las tipologías, ornamentos y técnicas de construcción, el foco ha estado dirigido tradicionalmente a entender la forma de un edificio y no tanto las condiciones de su producción. (PELIOWSKI, 2017, p. 69)
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João Marcos Lopes e José Lira também pontuam o "relativo silêncio de que se reveste a contribuição de escravos, artífices e operários na história da arquitetura, da arte e do patrimônio cultural entre nós" (LOPES; LIRA, 2013, p. 9). Esta afirmação está contida no texto Memória, silêncio, duração, que abre o livro que contém os resultados do Simpósio Memória, Trabalho e Arquitetura, realizado em 2010 com a finalidade de romper com tal silêncio. E ainda Ester Gutierrez ressalta a especificidade do trabalho escravo nesse processo:

A historiografia da arquitetura pouco tem investigado sobre os trabalhadores que ergueram as cidades, aqueles que, com a força de seu trabalho, levantaram os prédios, dotaram as áreas de infra-estrutura, equipamentos e serviços urbanos. Sobretudo, esqueceram de tratar os escravizados. (GUTIERREZ, 2009, p. 1)

Ao mencionar que o mais grave esquecimento recai sobre os trabalhadores escravizados, Gutierrez explora uma dimensão central do problema. Sérgio Ferro, por exemplo, discute a relação entre arquitetura e trabalho livre na Europa desde o século IX até o século XVIII sem ter de enfrentar o trabalho escravo como um elemento central, embora ele estivesse presente. Na América Latina, especialmente no Brasil, antes do problema do trabalho livre vem o problema do trabalhador livre. Digo especialmente no Brasil porque aqui o trabalho escravo foi a forma hegemônica de trabalho compulsório empregada no período colonial e isso é uma condição específica. Em parte considerável do território latino americano, outras formas de trabalho compulsório foram mais empregadas do que a escravidão. É o caso do México e dos Andes. Por isso, recorremos à divisão proposta por Ciro Flamarion Cardoso entre Afro, Indo e Euro América.

Nos interessa essa forma de entender a América Latina porque ela tem um enraizamento nos problemas do trabalho mais acentuado do que a divisão entre "América espanhola" e "América portuguesa". Segundo o autor:

[...] em linhas gerais a distribuição da população nos últimos tempos pré-colombianos foi fator central na posterior configuração étnica e das formas coloniais de trabalho, dando origem a três grupos de sociedades coloniais − Indo-América, Afro-América e Euro-América − nos quais predominaram, respectivamente, o variegado trabalho indígena (México, Peru, Guatemala), o dos negros escravos (Brasil, Cuba) e o de camponeses parcelários de origem europeia (Costa Rica, parte do que é hoje a Colômbia). (CARDOSO, 1985, p. 25).

Trata-se, portanto, de uma questão ao mesmo tempo étnica e de relações de produção. As formas de exploração do trabalho indígena na América Latina colonial foram distintas das formas de exploração do trabalho escravo predominante na Afro- América. Esta distinção teve reflexos diretos na produção da arquitetura.

Este artigo se vincula a meu projeto de doutorado, no qual tenho desenvolvido um estudo que olha para as arquiteturas coloniais latino americanas e busca compreender como a Economia Política pode ajudar a compreendê-la. O que vou apresentar a seguir são ainda hipóteses, pois a pesquisa ainda tem um longo caminho a percorrer.

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Apontamentos para a construção de novos olhares sobre o tema

Embora haja grande omissão nos livros de História e de História Econômica, a produção da arquitetura na América Latina Colonial atuou como atividade econômica, mesmo dentro de um sistema mercantilista focado na exportação. Parece, porém, que atuou como uma atividade econômica secundária. Obviamente, a infraestrutura essencial para o desenvolvimento de qualquer atividade-fim, de outra natureza, precisaria ser construída. Mas houve um volume de obras que excedeu esse mínimo, e esse volume variou muito de acordo com o arranjo laboral disponível. Minha primeira hipótese é de que o que excedeu esse mínimo foi construído para manter ocupada a mão de obra que poderia ficar "subutilizada".

Os objetivos econômicos dos colonizadores estavam centrados na produção de mercadorias exportáveis, mercadorias de "alto valor por unidade de peso ou volume, como os metais preciosos e certos produtos tropicais" (CARDOSO, 1985, p. 26).

Acontece que na Indo-América, havendo ou não a possibilidade de produzir tais mercadorias, a mão de obra já estava no local e precisava ser dominada para que a colonização se tornasse efetiva. Quando as condições para produzir imediatamente mercadorias exportáveis não eram as melhores, recorreu-se à produção arquitetônica para colocar em atividade essa mão de obra e exercer a dominação.

As primeiras décadas de colonização do México são o melhor exemplo disso. Este assunto, que não cabe aqui desenvolver, foi abordado por mim em artigo recentemente publicado (THIESEN, 2022). O que cabe ressaltar é apenas o fato de que no México central os espanhóis dominaram grandes cidades ameríndias, locais de grande densidade populacional, com cultura urbana, trabalhadores habituados à construção de monumentos e acostumados à técnicas construtivas semelhantes às europeias (técnicas de pedra e cal, por exemplo). Até que se consolidasse a atividade mineradora, nas primeiras décadas da invasão européia, a principal atividade econômica dirigida pelos invasores foi a construção civil. Havia, de certo modo, mão de obra excedente, que se não fosse empregada na construção de modo heterônomo, não seria dominada.

Já na Afro-América a mão de obra era majoritariamente comprada no mercado de pessoas escravizadas. Neste caso, a quantidade de trabalhadores tinha necessariamente que ser determinada "pelas necessidades da fase de máxima atividade do ciclo agrário, mesmo se durante o resto do ano tal mão de obra permanecesse subempregada" (CARDOSO, 1982, p. 45). Celso Furtado é outro que chama a atenção para este fenômeno:

Se ocorria uma redução no ritmo da atividade produtiva para exportação, reduziam-se os lucros do empresário, mas ao mesmo tempo se criava uma capacidade excedente de trabalho, a qual podia ser utilizada na expansão da capacidade produtiva. Se não havia interesse em expandir essa capacidade produtiva, o potencial disponível de inversão podia ser canalizado para obras de construção ligadas ao bem-estar da classe proprietária ou outras de caráter não-reprodutivo. (FURTADO, 2003, p. 60)

Segundo Mário Maestri, "de forma geral, as construções eram empreendidas sobretudo quando da entressafra e nos momentos de crise da economia de exportação, ocasiões em que abundava a mão-de-obra servil desocupada" (MAESTRI, 2001, p. 77). E Ester Gutierrez reconhece nesse processo um acúmulo lento e gradual de capital ao estudar o caso de Pelotas-RS:

Um século durou as empresas escravistas em Pelotas, de 1780 a 1888. O período de matança concentrava-se de novembro a maio; nos outros seis meses, durante 100 anos, os cativos poderiam ter trabalhado nas olarias e na construção civil. Não é a melhor época para essas atividades, mas, ao longo do tempo, possibilitava o crescimento do capital. (GUTIERREZ, 2001, p. 133)
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O elemento comum, portanto, nos dois casos (Indo- e Afro-América), é a aparição da atividade de canteiro de obras como um enchimento, um tampão, voltado ao exercício da dominação e à eliminação do ócio quando a atividade extrativista voltada para a exportação não era capaz de cumprir plenamente essa função.

A primeira hipótese conduz a uma segunda: A arquitetura latino americana adquiriu diferentes níveis de monumentalidade que variaram de acordo com o volume e as características dessa mão de obra "excedente" em relação às atividades econômicas prioritárias. O México é novamente um grande exemplo, assim como a Guatemala (este caso a ser ainda verificado), territórios que abrigam obras públicas ou religiosas monumentais erigidas ainda no século XVI. Nestes casos não somente as obras são de grande porte, mas também se observa emprego extensivo de mão de obra, com enormes desperdícios.

Conflitos entre a priorização da atividade extrativista e o emprego de mão de obra na construção foram determinando o porte e as feições da arquitetura colonial latino americana. O Peru é um caso singular que confirma a regra. Potosí (hoje em território boliviano) foi a segunda maior cidade do mundo no século XVII, mas não tem grandes obras públicas coloniais como têm Lima e Cusco: a mineração drenou os canteiros de obras de Potosí. No Brasil as obras públicas foram, em geral, pouco priorizadas, já que a mão de obra era também uma propriedade privada.

A terceira hipótese se baseia em uma afirmação já contida na literatura. Fernando Chueca Goitia (1980, p. 194) interpretou a arquitetura colonial latino americana como uma "arquitetura de massa", ou seja, pesada, superdimensionada, oposta à "arquitetura de esqueleto" do gótico. Entendo, assim como ele, que isso se deve aos canteiros de obras nos quais a presença de trabalhadores não especializados era abundante e também a uma separação entre construção e ornamentação como dois momentos distintos na produção da arquitetura: primeiro a construção, depois a ornamentação. Mas acredito ser possível avançar no detalhamento desse quadro sob a luz da Economia Política, pois há interferências aí relacionadas aos modelos de contrato e divisão étnica do trabalho.

Houve casos nos quais se experimentou uma maior complexidade estrutural nas obras coloniais latino americanas, sem perder, no fundamental, o caráter "de massa": abóbadas de pedra, muitas vezes nervuradas, uma carpintaria sofisticada, cantaria aparente. Estes casos aparecem mormente na Indo-América, sobretudo nos locais onde as civilizações pré-coloniais já praticavam a cantaria, ou a carpintaria, ou a construção com terra mais elaborada. Novamente o México, a Guatemala, Peru, Equador, Bolívia.

A ausência de experiências mais elaboradas na Afro-América tem motivações de outra ordem. A questão parece estar relacionada ao fato de que na Indo-América a coesão social dos trabalhadores não foi completamente desmontada, como na Afro- América. Os trabalhadores escravizados, africanos ou afro-descendentes, eram certamente detentores de importante saber-fazer. Por mais que este saber-fazer pudesse se estender para o canteiro de obras, ele parece ter sido neutralizado pelo tipo de relação de trabalho que se consolidou nos canteiros de obras afroamericanos.

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Não que as tecnologias construtivas de origem africana não tenham sido incorporadas, mas o cenário indoamericano é totalmente diverso. Neste sentido, os estudos de Webster sobre o Equador são valiosos, pois mostram como os contratos de obras assinados por mestres indígenas “dão aos mestres muito mais autonomia em termos de fornecimento, alimentação e pagamento de suas próprias equipes de assistentes nativos" (WEBSTER, 2011, p. 321). Vale ressaltar que a autora, na passagem citada, não está comparando indígenas e africanos, e sim indígenas e europeus, demonstrando que se trata de uma autonomia realmente significativa.

Não se trata de romantizar essa situação, certamente, pois há também indícios, tanto no Peru quanto no México, de que os colonizadores empregaram mecanismos sofisticados de superexploração da mão de obra qualificada, inserindo trabalhadores no sistema de guildas com pagamentos rebaixados em mais de 90%.

Para além da arquitetura produzida como atividade secundária, como forma de colocar em atividade a mão de obra "excedente", formou-se também um mercado da construção na América Latina colonial. Profissionais europeus dominaram esse mercado, e muitos deles eram proprietários de escravos, mesmo na Indo-América. Parece ter havido uma relação entre a distância do litoral e a velocidade de formação desse mercado.

O litoral brasileiro, por exemplo, foi abastecido com material de construção importado da Europa por muito tempo, da mesma forma que a ilha de Santo Domingo, colônia espanhola. Construiu-se um sistema de pré-fabricação colonial no qual grandes peças de pedra lavrada, bem como insumos do tipo tijolos, telhas, vigas de madeira, cal, muita coisa veio nos navios que vinham buscar as mercadorias exportáveis e aceitavam carga na viagem de vinda.

Isso significa que, quando uma cadeia produtiva da construção não foi completamente formada em território americano, ela alimentou uma produção no velho continente. Já em locais mais afastados do litoral, como o México Central, toda a costa do Pacífico, ou Minas Gerais no Brasil, longe dos portos, o surgimento de uma cadeia produtiva completa da construção foi bem mais veloz.

Importante destacar também que este mercado parece ter assumido duas faces, uma para a construção em si, e outra para a ornamentação. A construção − sobretudo onde foi mais forte o caráter de "arquitetura de massa" − assumiu uma dinâmica de mercado muito mais acentuada, com um sistema de arrematação (semelhante às atuais licitações) no qual a concorrência se dava com base no preço e no prazo. Já a ornamentação parece ter permanecido por mais tempo em uma lógica vinculada ao campo das artes, ou seja, os artistas eram escolhidos não pelo menor preço, mas pela qualidade do trabalho e pelo prestígio do próprio artista.

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A formação deste mercado da construção ameaçou muito cedo a já enfraquecida lógica corporativa de organização dos trabalhadores da construção. Quando o sistema de arrematações passou a vigorar nos pueblos de indios em Nova Granada (atual Colômbia), segundo Guadalupe Romero Sanchez (2010), pedreiros passaram a assinar contratos para construir não somente as paredes como também as coberturas de madeira das igrejas (toda a obra, na verdade, da fundação ao acabamento). No Brasil, em Minas Gerais, mestres assumiam contratos para cumprir os requisitos burocráticos e depois entregavam a obra para outros sujeitos, seus escravos ou construtores (muitos deles libertos) incapazes de vencer as arrematações. Tudo isso aponta para a formação de um proto-empresariado da construção.

Alguns mecanismos de controle do trabalho ganharam grande difusão nos canteiros de obras. Os principais deles são a coartação de escravizados, e o chamado "ganho". A coartação consistia basicamente na liberação do trabalhador escravizado por determinado período para que pudesse vender sua força de trabalho e com o recurso adquirido comprar a alforria. O "ganho" consistia, em linhas gerais, no aluguel de escravizados. Essas práticas, que obviamente foram mais comuns na Afro-América, parecem ter sido muito comuns também nos canteiros da Indo-América, conforme revela um interessante estudo de Emílio Harth Terré (1961) sobre o trabalho de africanos e afrodescendentes nos canteiros de obras peruanos. Essa hipótese é importante porque mostra que o canteiro de obras, talvez por abrigar uma produção de mercadorias que se dá em meio urbano, não foi capaz de reproduzir a lógica escravocrata convencional. Manter trabalhadores escravizados em meio urbano e fora do trabalho doméstico exigiu outros mecanismos de dominação.

O canteiro de obras colonial latino americano, embora pareça apresentar um nível muito mais baixo de autonomia dos trabalhadores, se comparado ao canteiro de obras europeu da mesma época (todas as hipóteses anteriores apontaram para isso), não deixou de ser um espaço permeável à inovação tecnológica advinda do próprio canteiro. O caso mais emblemático é da chamada "quincha", tecnologia construtiva de origem indígena que serviu para produzir paredes e até cúpulas (cúpulas "encamonadas", ou "falsas cúpulas") no Peru, no século XVII e em diante. Outros casos, contudo, são igualmente notáveis, como as fundações da catedral da cidade do México, que são o resultado da adaptação das tecnologias indígenas de fundações, já que a Cidade do México está sobre um enorme aterro feito sob a cidade pré-colonial.

Por fim, o canteiro de obras colonial latino americano foi palco de revoltas por parte dos trabalhadores. Esta talvez seja, contudo, a hipótese mais difícil de trabalhar, porque a existência de testemunhos dos próprios trabalhadores é raríssima. Dos casos que pude encontrar até o momento, chama a atenção uma recorrência: o transporte da cal. Transportar cal, nas costas, por longas distâncias para os canteiros de obras gerou revoltas no México (KUBLER, 1948, p. 167; RABIELA, 1987, p. 183) e na Colômbia (PINZÓN-RIVERA, 2014, p. 112), ambas no século XVI.

Todas essas hipóteses são produto de leituras preliminares, surgidas na esteira de um primeiro movimento exploratório da literatura levantada. Algumas já parecem mais sólidas, outras mais questionáveis e frágeis. Somente o amadurecimento da pesquisa poderá revelar a validade de cada uma delas, bem como o aparecimento de outras ainda não identificadas.

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Referências

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