Bordadeiras mimetizadas em árvores: harmonias e memórias

Resumo Este trabalho apresenta a proposição do bordado como uma tessitura dinérgica, capaz de criar padrões com harmonias semelhantes às da natureza. Põe as bordadeiras - artífices artesãs - em uma relação de semelhança com a árvore, por compreender que as suas feituras se elaboram ao nível das harmonias e proporções da natureza. Deste modo, supõe que o processo de trabalho de ambas possui natureza dinérgica. O esforço concentrou-se na coleta de evidências e na demonstração clara de aspectos cotidianos em que as feituras percorrem os limiares entre o material e o imaterial, tecendo saberes. Evidência da prática do bordado como repertório de memória, visualidades e autoconhecimento. Privilegiou-se a metáfora como extrapolação de sentidos e sensibilização, tornando possível apresentar similitudes entre estes dois entes geradores – árvores e bordadeiras. A partir da Metodologia Exploratória por observação Assistemática, coletou-se dados por conversas informais e pelo WhatsApp. O objetivo desta comunicação é elevar a práxis do bordado à categorização de repertório de práticas coletivas constituído de legado histórico, potencializado pelo aprendizado tácito. Como resultados preliminares, apresenta evidências advindas do cotidiano, sobre as quais é possível demonstrar o valor social e de patrimônio de memória que estas artesãs representam.

Palavras-chave Trans (bordado), Árvores, Memórias, Dinergética, Bordadeiras.

Autoria

  • Elisa Conceição Mendonça Trivelli

    Especialista em Processos e Produtos Criativos – Uab pela Faculdade de Artes Visuais/Universidade Federal de Goiás - FAV/UFG (2018). Graduação em Licenciatura em Artes Visuais pela FAV/UFG (2013).

Orientadora

  • Lílian Ucker

    Licenciada e bacharel em artes visuais pela UFSM. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da UFG. Doutora em Arte e Educação pela Universidade de Barcelona, Espanha. É professora efetiva da FAV/UFG onde atua com as disciplinas de pesquisa em ensino de arte, trabalhos de conclusão de curso e estágio supervisionado no curso de licenciatura em artes visuais, modalidade presencial e a distância. Atualmente é coordenadora pedagógica do Centro Integrado de Aprendizagem em Rede da Universidade Federal de Goiás (CIAR/UFG) e coordenadora da licenciatura em artes visuais na modalidade a distancia UAB.

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1. Introdução

Estudo que lança luz à pratica do bordado como uma elaborada tessitura dinérgica. Propõe como hipótese imaginativa que as bordadeiras são equiparadas às estruturas harmônicas da natureza, a partir de duas possibilidades. A primeira, pelas suas habilidades projetivas em compartilhar conhecimentos, constituindo uma requintada composição de saberes acumulados pela experiência coletiva. A segunda, por constituírem tecidos (as) de memória – coletiva e individual. Quando são tecidos, diz-se que a composição delas são as memórias, delas e de todas as outras. Imagina-se que a matéria que as formam são feitas deste material. Quando tecidas, refere-se ao modo pelo qual se dispõe essa matéria em memórias, ao processo, ao modus operandi.

Ambas as proposições se justificam por suas habilidades em saber fazer e continuar progredindo os saberes do ofício do bordado. São esses mesmos conhecimentos (intangíveis) que produzem a estrutura material (tangível), que é o bordado. Uma espiral que se move em sentidos opostos, porém, complementam-se, atingindo a unidade, a harmonia. Em uma hipótese imaginativa, se desenha neste movimento duplo e oposto um diagrama que, se fosse calculado, exibiria a Seção Áurea, também chamada de Proporção Divina que relata a harmonia perfeita da natureza.

Pelas materialidades do bordado transitam forças de memórias individuais que soltam fagulhas, traços ativadores das memórias coletivas. Destas evidências supõe-se que cada uma das bordadeiras – são elas e todas as outras – que as antecederam, que coexistem e as que sucederão. É nesse sentido que ocorre simultaneamente dois processos do bordado, o tangível e o intangível. Sendo o tangível aquele que ocorre frente aos olhos, ornado pelo vai-e-vem da agulha que se lança pelo tecido criando visualidades.

O intangível ocorre ao nível de compartilhamento de padrões de cooperação de grupo. Das vivências se elabora um processo de individuação onde o “bordado” que ocorre é o de formação de visualidades no estrato da reconstrução pessoal e do autoconhecimento. São modos de contínua reconstrução propiciados pela prática dinérgica do bordar e pelo empoderamento dos saberes que as artesãs trazem consigo e reverbera no bordado. A partir da vivência com as bordadeiras de Goiânia – Cooperativa Bordana, localizada no bairro Caiçara, em volta do Rio Meia Ponte –, usufruí da oportunidade de presenciar a riqueza e a qualidade formal do trabalho que elas produzem. Criatividade, beleza, harmonia. Texturas e matizes que encantam e emocionam! Com o intuito de valorizar o ofício do bordado para além dos limites de um fazer manual à esmo, propondo-se como repertório de memória, imagético e de autoconhecimento, é que elaborei essa proposta. É mister esclarecer que as visitas às bordadeiras, em diferentes momentos de pesquisa nessa Especialização, constituíram uma prática de avizinhamento, reverberando em mim reflexões que emergem em contextos de memórias e metáforas. Experiências transformada neste relato poético.

No centro do “bastidor”, Halbwachs (2006) desvela a memória coletiva quando estabelece vínculos com as lembranças individuais. Basta uma fagulha da memória coletiva para que incendeie conjunturas na memória individual. Dividindo o mesmo “plano formal”, Doczi (1990) traz a fundamentação necessária acerca da formação de padrões de harmonia e cooperação nos sistemas naturais. “O dar e receber” (DOCZI, 1990, p. 29) que empreende esta proposta metafórica entre elas - as bordadeiras, as árvores.

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A partir da noção de Dinergia é possível visualizar as duas instâncias opostas e complementares, às quais fundamentam o elemento discursivo da metáfora. Quando são unas, elas mesmas, são como as árvores, vistas em um ente único, aparentemente. Quando são múltiplas, elas são processos, são memórias coletivas. Rede do sol, do vento, das pessoas. Rede do aprender e cooperar, dos pontos do bordado, das lembranças. Por essa “aventura interdisciplinar na terra-de-ninguém” (DOCZI, 1990) é que foi possível organizar tal proposta.

2.Padrão Dinérgico das Bordadeiras: Harmonia nas Artes Aplicadas

As bordadeiras!

Elas também são florestas, são árvores, são sustentáveis, são cíclicas.

A reflexão sobre a relevância do trabalho das bordadeiras incide sobre o principal questionamento que tem movido esta pesquisa, que é o de demonstrar, amparado por sistemas teóricos reconhecidos, que o bordado é uma Arte Aplicada de grande valor porque tece elaborações sensíveis e de conhecimentos, a partir do manejo de linhas, agulhas e tecido.

As construções que se elaboram na categoria do intangível correspondem aos padrões de compartilhamento próprio de mecanismos de sobrevivência grupal que a natureza opera. Não se limitam às proporções físicas, também se encarregam de tratar dos vínculos, das relações sociais, incluindo o aprendizado - dimensão intangível do compartilhamento. É nesse “dar e receber” (DOCZI, 1990, p. 29) do aprendizado que se insere as bordadeiras. Elas interagem por aprendizados quando se reúnem aos sábados na sua roda de conversa (Goiânia-GO). Os saberes pertencem a esse padrão dinérgico do aprender pelo compartilhar. Desde os ensinamentos sobre os pontos do bordado, da partilha nos sorrisos aos aspectos da vida cotidiana.

As aranhas tecedeiras constroem suas teias começando por fios retos que se juntam no centro. Em seguida, tecem espirais ao redor desses fios, que vão se alargando em órbitas cada vez mais amplas (fig. 19). Cesteiros trabalham em um padrão dinérgico semelhante. Inicialmente fibras duras, a urdira, são amarradas em um ponto que será o centro do cesto (fig. 20). Em seguida, fibras flexíveis – a trama – são trançadas por cima e por baixo da urdira, de forma rotativa. Em cestos feitos em caracol, uma fibra resistente, porém flexível, toma lugar da urdira reta; ela é cosida, ao longo das linhas radiantes, como uma trama fina, com o auxílio de uma agulha (fig. 21) Por causa da natureza dinérgica do processo de trabalho, é fácil reconstruir os contornos de um cesto, do mesmo modo que o fizemos com os contornos de uma folha, ou as espirais da margarida e do girassol” (DOCZI, 1990, p. 14)

2.1. Dos Padrões Harmônicos nas Artes Aplicadas do Bordado: o Bordado Tangível e o Intangível

Enquanto na natureza temos como padrões físicos (tangível) as proporções fractais, espirais e de contornos geométricos como o triângulo, os círculos, etc.; no bordado temos os pontos: Haste, Balestrina, Nozinho Francês, Rococó, Renascença, Ponto Cheio, etc. As proporções intangíveis na natureza referem-se a uma série de padrões inatos e aprendidos por gerações. Do mesmo modo que as bordadeiras desenvolvem lições criativas fazendo circular o conhecimento intergeracional, as estruturas naturais também organizam seus aprendizados. Sabe-se de aves migratórias nas estepes da Sibéria que realizam uma reunião (aos milhares),

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(...) ‘elas agrupam-se em um determinado lugar, por vários dias seguidos, antes de saírem e, evidentemente, discutem os detalhes da jornada [...] todas aguardam as atrasadas [...] e finalmente partem em uma determinada e bem escolhida direção – fruto da experiência coletiva acumulada. As mais fortes lideram o bando e substituem-se por turnos na difícil tarefa. Atravessam os mares em grandes grupos formados por aves grandes e pequenas’ (DOCZI, 1990, p. 75).

Seria um briefing antes desse deslocamento sazonal?

Há registros comoventes de lições de compartilhamento na modalidade de ‘auxílio mútuo e cooperação’ (DOCZI, 1990, p. 79). Golfinhos se reúnem para ajudar companheiros atingidos por arpões. ‘Em 1969, no Mediterrâneo, observou-se um golfinho atingido por um arpão que foi ajudado e salvo por seus companheiros’ (DOCZI, 1990, p. 75). São inúmeros exemplos, amplamente documentados.

Existe uma relação de contiguidade entre a tessitura elaborada pela natureza, como é o caso das aranhas tecedeiras e as elaboradas pelas artífices artesãs. Ambas realizam um processo dinérgico de tecer (bordar): Entre a dureza e a flexibilidade nos fios que a aranha e a bordadeira tecem; tramas que mergulham e planam, por cima e por baixo; no movimento corporal das aranhas, bem como no mesmo movimento das bordadeiras; no fio de seda das aranhas, na linha de algodão das bordadeiras.

O ornar pelo vai e vem da agulha que dança pelas tramas do tecido é uma elaboração mental e afetiva cheia de significados. A trama bordada, o desenho feito de texturas e cores que elas selecionam intuitivamente e instintivamente é o padrão dinérgico do bordado materializado na peça, pronto aos olhos de quem vê.

Sobre a intuição, Fayga Ostrower (2012) diz:

É claro que quanto mais você estuda, quanto mais você sabe artesanalmente e por experiência, digamos, que você tenha a experiência do fazer, tanto melhor você pode intuir. Mas intuir você está intuindo o tempo todo. Você está intuindo porque na verdade você está imaginando certas coisas. E tem que poder imaginar para depois saber intuir se aquilo que você imaginou está certo ou está errado, porque há uma distância muito grande entre a imaginação e o próprio fazer. E a gente avalia o fazer, depois de ter realizado um fato físico. (0’59” – 1’48”). (OSTROWER, 2012,)

O bordado intangível guarda relações com o que Doczi chama de “padrões intangíveis”. Para ele há uma continuidade de produção desses padrões imateriais. Do mesmo modo, como matéria intangível, o bordado imaterial tem suas espirais de crescimento por estar em constante elaboração de sentidos e de cognição.

Padrões gerados por espirais que se movem em direções opostas são frequentes na natureza. Eles nos interessam como casos particulares de um processo mais amplo de formação de padrões, ou seja, a união de opostos complementares (DOCZI, 1990, p. 3).

A bordadeira confirma a característica de continuidade dos padrões imateriais dentro da sua prática diária, embora não tenha consciência da abrangência da sua atividade como padrão harmonioso. Pela experiência ela confirma a semelhança entre os padrões harmoniosos da natureza e os fazeres das Artes Aplicadas no bordado. Como prática dinérgica também possui padrão de crescimento com uma certa distorção.

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No trabalho manual nenhum bordado, nenhum produto fica igual ao outro. Meu mesmo, bordando a mesma folha ou a mesma flor eu não consigo fazer ela igualzinha. Ela fica diferente. Porque a gente muda. Porque você sabe como faz um ponto caseado, mas dele você pode fazer ele mais perto, mais afastado, ele fica fechado, ele fica aberto. Entre ele você pode colocar outro ponto para encher mais a folha ou a flor, então a gente vai inventado assim... Você pode fazer também uma pétala, uma rosa, flor, você pode fazer, colocar vários pontos entre na mesma flor, mais a folha ou a flor. Faz uma carreira de um, outra carreira de outro; muda a textura do ponto. E a gente vai inventando. Às vezes você vai fazer um ponto e você acaba errando. E no erro ele fica legal! Daí você continua fazendo ele “errado”. Quer dizer, errado pelas técnicas que a gente aprendeu, mas não é errado! É certo! Eu acho se ficou bom, ficou bonito, ótimo! (R.T., 63 anos); Bordadeira da Cooperativa Bordana. Relato colhido pelo WatsApp.

3. O Paradoxo da Unidade e da Diversidade. O Segredo é a Interação que Forma Vínculos!

As redes são estruturas de padrão conectivo formada por nós (nó) e arestas. Os nós ou nodos são elementos que armazenam informações e as arestas(links) associam estas informações, criam conexões, interações. Árvore como unitário e múltiplo. A ideia é desenvolver a questão do paradoxo em relação às bordadeiras. Existe um padrão de uno, em cada uma delas, sendo tecido de memória individual. Sendo múltiplas: sendo árvores, sendo cíclicas, sustentáveis; são diversidades, são espirais, tecidos de memórias coletivas.

As conexões inserem-se no compartilhar dos padrões coletivos de aprendizagem. A “experiência coletiva acumulada” (DOCZI, 1990, p. 75), habilidades que compartilham saberes inatos. Toda a natureza funciona como um ciclo de autossustentação. Cada nodo executa uma função, mas as ações ocorrem por objetivo de grupo interligado, que, por sua vez, se interliga a outro formando uma rede. Até a participação individual, que em princípio possa parecer isolada, desconecta, tem uma função de força coletiva, pelo conhecimento compartilhado da mágica da ancestralidade. Se este indivíduo vir a faltar, outro não o substituirá, pois o seu fazer traz consigo a carga de repertório dos seus antepassados - uma linhagem que interrompe com a sua ausência. A sua inteligência adaptativa tem a potência dos nodos preferenciais da rede - força de conexão poderosa! Na rede, os nodos preferenciais são aqueles que têm a capacidade avançada de criar conexões, por isso atraem outros nodos.

O compartilhamento que vem das bordadeiras – unas e múltiplas – são padrões avançados de rede. Vão bordando em cores e texturas um padrão de experiência coletiva em memórias. Elas são nodos preferenciais especializados em formar vínculos, organizar conhecimentos, tecer memórias. Quando elas se reúnem para bordar, também tecem socializações. Utilizam a técnica do bordado como motor de afloramento das suas lembranças mais internas. O círculo é o arquétipo da totalidade!

O bordado tem demonstrado a potencialidade de “arrancar” sentimentos, vivências e lembranças, sobretudo de lugares e momentos que as pessoas elegem como sendo seus “Campos Elísios”, seus paraísos na vida vivida. É neste momento que aflora do inconsciente as mais tenras lembranças, fazendo com que cada bordadeira se reelabore e mergulhe para dentro de si.

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Nesse movimento de lançar-se para dentro de si, junto da roda de mulheres, não é somente o bordado que se constrói. Ao mesmo tempo elas estão partilhando suas histórias, suas memórias. A unidade que se cria a partir da individualidade de cada uma. Quando ocorre a interação entre elas, pela prática do bordado artesanal e manual, elas estão em busca é de conhecimento. Mas esse conhecimento tem um propósito, o de solucionar questões da vida cotidiana. Individuação como movimento dinérgico. Imergir para dentro de si e submergir para a coletividade. Tempo lento da vivência em redes de solidariedade e sociabilidade em contraste com o tempo rápido e monetarizado da vida contemporânea. Esses momentos de trocas são únicos, onde cada bordadeira contribui com o seu saber pessoal para a vida da outra. Elas se recriam a partir do repertório pessoal de cada uma. No fundo, o que ocorre de maior realce e com mais ênfase é a interação. No grupo familiar de bordadores Matizes Dumont, originário de Pirapora-MG, utilizam da metáfora do quintal em suas oficinas itinerantes pelo Brasil. O que se pretende com essa metáfora é sensibilizar as pessoas e incentivá-las nesse mergulho interior em busca de reencontrarem seus paraísos, suas formas de ser mais autêntica. Para o bordado são trazidas paisagens que as representam. São formas materializadas no bordado que as identificam.

(...) ontem mesmo ela pediu que eu, ..., que que eu queria que bordasse? Aí bom, eu voltei na minha infância. Eu sou do interior de Minas, né? E aí voltei! Fiz assim, gente! Eu, eu vivi numa fazenda que tinha um rio! E fui vendo o Rio São Francisco, os peixes. Isso é maravilhoso! Né? Aí eu coloca no bordado toda a sua emoção. É igual eles fala, é o nosso quintal, né? Buscando lá atrás aquelas coisas que hoje, né, tá tão abandonado né? Que é o verde.. Que é o rio, né? E eles trabalha com isso. Não é aquela coisa fria, tem emoção nesse bordado. Tem alegria! E o que eu acho mais importante é isso! (I.C., ? anos); Aluna da Oficina Projeto Quintais. (05’ 33” – 06’17”). Matéria - Grupo de bordado Matizes Dumont, 2011

Os padrões harmoniosos criados a partir de materiais tangíveis se materializam de pronto, enquanto os padrões intangíveis das artes de viver estão constantemente sendo produzidos, poder-se-ia considerar os padrões harmoniosos das artes aplicadas, como símbolos, metáforas e modelos igualmente harmoniosos de padrões de comportamento. Portanto, como padrões passíveis de materializar-se nas artes de viver” (DOCZI, 1990, p. 25).

Os bordados produzidos pela sensibilidade e pelas experiências acumuladas são feituras manuais que guardam relações de harmonia semelhante à da natureza. Sabemos que a espécie humana “aprendeu” a tecer a partir do conhecimento compartilhado das aranhas. Por observação, em algum momento, compreendeu-se que a feitura da teia, os entrelaçamentos das estruturas naturais ocorridos em plantas e animais, de algum modo resolvia os nossos problemas de vestimentas como estratégia de sobrevivência às intempéries e condições árduas do ambiente natural, próprio dos primeiros habitantes a que se tem notícia. Além das vestimentas, a tessitura de artefatos utilitários como cestos, redes, cobertura das casas e outros.

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4. Desenho Orgânico dos Anéis de Crescimento: uma Metáfora para Olhar as Bordadeiras

Figura 1. Anéis de crescimento da árvore. Fonte: http://www.oocities.org/tomografiademadeira/madeira.html. [LTRR]

O texto aqui apresentado se orienta formalmente pelo desenho orgânico dos anéis de crescimento da árvore. O intuito é tornar evidente a topologia circular que traz similitudes entre as árvores e as bordadeiras. Conjecturas que nos faz desconfiar do parentesco entre elas. Para tanto, o texto foi organizado a partir da carga poética dos anéis. Local interiorizado, reservado ao registro de eventos que se passam por memórias gravadas.

Por aqui três são as regiões anelares, a saber: Memória, Árvore, Floresta. Na Memória - minhas reminiscências familiares inscritas. Subtende-se que as manualidades já estão gravadas na herança genética. Fazeres que vão perdurando e se transformando pelas gerações. Na Árvore - o reforço da personalidade gerativa da biomassa em caule, raiz e copa, reafirmando-se como rede complexa (padrão matemático). Para o anel da Floresta foi reservado a demonstração de que a junção faz trans(bordar). Arremates necessários para fechar o raciocínio que a metáfora da árvore propôs em relação às bordadeiras. Sabe-se que tal proposta provoca estranhamentos, contudo, o esforço aqui empreendido não pretende acanhar-se frente às adversidades.

A adequação da topologia circular dos encontros das bordadeiras coincide com a topologia circular vista nos anéis. Na árvore, os anéis correspondem a registros de eventos que dão conta de períodos de fartura ou escassez. Ofertas de luz, sombra, chuvas, secas, etc.

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É que no movimento do tecer delas, trazem de suas trajetórias de vida saberes que se refletem no bordado em traços mais finos e subjetivos; como um vento que deita uma árvore ou as corredeiras sinuosas de um rio. Tudo isso são memórias que estão se recriando. É o legado histórico que cada uma traz consigo. Na dinergia circular das bordadeiras, cada uma dessas peculiaridades que o bordado materializa tem a função de registros de memórias, partilha de saberes acumulados que o coletivo armazenou, o que já foi referenciado como a dimensão intangível do compartilhamento. A missão delas está em progredir o legado histórico e aprendizado tácito que este ofício proporciona. Daí surgir os vínculos, as redes, as conexões.

Da importância que elas dão ao ofício que desenvolvem, a valorização do que o bordado constrói e (re)constrói. Deste modo, cria-se uma identidade a partir do produto artesanal que é específico de cada grupo, isso faz com que elas exerçam a autoestima em ser bordadeiras!

As bordadeiras são tecidos(as) de memórias. Elas também são árvores... São florestas... (...) sendo terra, sendo árvore: leito profundo das águas.

4.1. Anel de Crescimento: Memórias

Este anel reserva-se as elaborações profundas dos saberes acalentados ao cheiro de café fumegando na casa das tias e avós. Dos traçados antigos que animavam a feitura dos bordados que carinhosamente ornavam a casa. Esses mesmos bordados que motivaram no passado cada uma dessas memórias construídas, motivam agora a evocação das lembranças. Subtende-se que o bordado já faz parte da genética.

Ao que parece, todos os membros da família já estão preparados para a arte do bordado. Porque trazem consigo o conhecimento de gerações, a partir de uma longa trajetória de experiência. O que a bisavó ensinou para a vó, e a vó ensinou para a mãe. Porém, quando a mãe é objeto desse aprendizado tácito, por experiência e por experimentação, subentende-se todas as outras em acertos, equívocos e vivências. Aqui o caminho se encurta, pois, as estratégias não permitem que a geração atual incorra nos mesmos enganos. Pelo contrário, ocorre uma evolução que é vista na qualidade formal do bordado.

Do guardanapo cobrindo a tampa do filtro, debruçado sobre o nicho enfeitando as devoções. São memórias individuais que foram agitadas por fagulhas da memória coletiva, trazidas pelo aconchego dos bordados encantados do Cerrado goiano. Minhas memórias pessoais bordadas.

(Outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las e, para melhor me recordar, eu me volto para elas, por um instante adoto seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois experimento ainda sua influência e encontro em mim muitas das idéias e maneiras de pensar a que não me teria elevado sozinho, pelas quais permaneço em contato com elas (HALBWACHS, 2006, p. 31).

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Figura 2. Anel da memória. Painel: Elaboração da autora. Fonte da imagem: Acervo da Cooperativa Bordana. Fotografia: Lu Barcelos.
Figura 3. O tempo lento (bordado) da família. Painel: Elaboração da autora. Texto e fotografia: Acervo pessoal.
Figura 4. Cartas para minha saudade. Painel: Elaboração da autora. Texto: Acervo pessoal. Imagens: Internet.
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4.2. Anel de Crescimento: Árvore

Árvore – matriz que canta. Continnum infinito de eventos, espaço interminável para além dos limites corpóreos. Sombras intui, anima (ânima), portanto, seu composto fluido. Ente que possui as mais harmoniosas, mimetizadas e autorregulada das relações. As suas habilidades projetivas e suas estratégias de sobrevivência encantam pela complexidade. As lições que elas empreendem é fantástica em termos de redes de relações. Sabe-se que quando uma árvore sofre um desgaste ela envia informações para outras que, em cooperação, atuam para que aquela seja restaurada. É por acreditar na potencialidade da árvore, por conhecer a habilidades das bordadeiras em compartilhar por cooperação, que acredito que há uma contiguidade genética entre estas harmonias: bordadeiras e árvores.

Figura 5. Elas são redes. Painel: Elaboração da autora. Texto: Acervo pessoal. Imagens: Internet.
Figura 6. Bordadeiras mimetizadas. Painel: Elaboração da autora. Texto: Acervo pessoal.
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Figura 7. Agenciamentos na árvore. Painel: Elaboração da autora. Texto: Acervo pessoal.
Figura 8. Espraiar. Painel: Elaboração da autora. Fonte da imagem: Acervo da Cooperativa Bordana. Fotografia: Moa Marques. Texto: Acervo pessoal.
Figura 9. Querências de bordado. Painel: Elaboração da autora. Texto e fotografia: Acervo pessoal.
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4.3. Anel de Crescimento: Floresta

Florestas - termo mais adequado para relacionar as bordadeiras em uma conjuntura complexa do coletivo. São rodas, redes, tessituras, entrelaçamentos. Sistemas que se conectam transformando relações em estruturas mais desenvolvidas. Cada bordadeira é uma árvore, estrutura que já possui a sua complexidade de rede e sua peculiaridade de espécie. Juntas - todas as árvores - formam uma tessitura ainda mais intrincada com força de coesão poderosa para elaborações múltiplas. Formam rodas, formam rios. Tal qual o Cerrado, mimetizam suas raízes por onde nutrem suas tribos e seus rebentos.

Figura 10. Redes de árvore. Painel: Elaboração da autora. Fotografia: Acervo pessoal.
Figura 11. Redes de árvore. Painel: Elaboração da autora. Fotografia: Acervo pessoal.
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5. Arremates Provisórios

Os dedos escorrem pela agulha. Põe movimento a dinérgica dança de mergulhar e planar pelo tecido bordando cores, trajetórias, histórias. O bordado artesanal e manual tem a potencialidade de evocar sentimentos. O aprendizado tácito da bisavó chega às derradeiras gerações, que terão suas filhas e um dia serão também avós. Terão levado no gene e na ponta dos dedos todas as memórias – legado histórico – carregado de vivências e experiências. Lições transmitidas pela oralidade, aprendidas verbalmente e pessoalmente, baseado na experiência.

A trajetória, as experiências e vivências individuais; tudo isso caminha para o dia em que elas interagem e trocam experiências e, de uma forma tão apaixonante, que emociona, faz com que as pessoas queiram bordar também. Que as filhas queiram continuar sendo bordadeiras e que isso perpetue.

Quando uma bordadeira empunha a sua agulha enfeitada por fios coloridos de algodão ela borda rapidamente, criando no tecido memórias de todo o seu repertório familiar e prático. A sua imaginação está tomada por esse desejo intenso e frenético da agulha em levar para o bordado toda a sua consistência de vida, que nem ao menos levanta os olhos para quem a admira. E de tanto ver e conviver com as suas antecessoras, o movimento é tão automático, inato..., eu imagino..., que elas têm memórias nos dedos...! Com o tempo, e por experiência, elas foram acumulando os saberes geracionais de tal modo que os dedos foram assimilando cada modo de fazer próprio da família (consanguínea ou não).

Inicialmente, a ideia era formar um material que documentasse o repertório de fazeres da Cooperativa Bordana. No final de 2017, elas estavam imersas no lançamento da sua coleção anual. Na mesma época, o meu tempo estava dividido entre a pesquisa e mudanças, fatos que inviabilizaram tal proposta.

O contato com as bordadeiras e estudos sobre o grupo Matizes Dumont, através de vídeos do YouTube e do site do grupo, demonstraram que as memórias coletiva e individual das bordadeiras revelaram o que na árvore foi chamado de unitário e múltiplo. Paradoxo complexo. Aqui a metáfora tomou vida e se mostra compreensivelmente tangível.

A partir dessa percepção, houve uma vinculação imediata com uma proposição feita em 2016 quando afirmei que a árvore é aparentemente unitária em sua apresentação visível. Contudo, o seu comportamento é múltiplo nos processos que elabora e interage.

Daí compreender que uma proposta elaborada no limiar de teorias enunciadas por um arquiteto, Doczi (1990), e um sociólogo, Halbwachs (2006), propondo a comparação entre dois entes sociais, aparentemente distintos e processualmente semelhantes, só poderia provocar estranhamentos, mas com a metáfora, pontualmente esclarecido.

Referências

DOCZI, Gÿorgy. O poder dos limites: harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura. São Paulo: Mercúryo, 1990.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São Paulo: Ed. Centauro, 2006.

TRIVELLI, Elisa. Árvore-alegoria: uma proposta poético pedagógica. 2014. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura)–Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

TEDxSP, TEDxSP, 2009. Augusto de Franco, 2010. YouTube.com. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-3bnzmykCiM. Acesso em: 12 fev. 2018.

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OSTROWER, Fayga. A intuição, a beleza e a criação. Instituto Fayga Ostrower, 2012. YouTube.com. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3X-1_mB7UTY. Acesso em: 02 fev. 2018.

VALE, Rubinho do. Bordadeiras dos matizes Dumont, 2000. YouTube.com. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H3n4LAPbNJY. Acesso em: 23 jan. 2018.

Matéria - Grupo de bordado matizes Dumont (repórter Ariella Bersan), 2011. YouTube.com. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zyX5vKkIO0I&t=32s. Acesso em: 15 fev. 2018.

Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo908/artes-aplicadas. Acesso em: 20 jan. 2018.

Imagem de árvore. Disponível em: http://vsbattles.wikia.com/wiki/File:Tree.png Acesso em: 23 jan. 2018.

Imagem de anéis de árvore. Disponível em: http://www.oocities.org/tomografiademadeira/madeira.html. Acesso em: 23 jan. 2018.

Dinergia – termo formado por duas palavras gregas: dia – ‘através, por entre, oposto’ – e ‘energia’. Proposto por György Doczi, expressa a energia criadora presente nas harmonias das estruturas naturais. Cooperação associada que engloba a ideia de opostos, elaborado a partir da Seção Áurea.

Termos referentes: Escola de Arte de Bauhaus ((1883 - 1969), Art Nouveau (1890 – 1918), Arts and Crafts (1888 - ?), Art Déco (1910 – 1939). No cerne destes movimentos está a contraposição entre artesanato, ofícios, arte e indústria. Movimentos que laboraram o fazer manual como criativo, contra mecanização (industrialização) e produção em massa.

Fundamentação teórica das Redes: Paul Baran (1964) Grafos de Baran. A nova ciência das redes: The New Science of Networks (Barabási, 1999), (Watts & Strogatz,1998). Augusto de Franco (2008).

Alma. Psiqué. Inconsciente. Consciente feminino da Psiqué no ser humano. Jung (1875-1961). http://michaelis.uol.com.br. No domínio da poética, um suspiro, um já foi.