1. Introdução
O presente artigo é um relato da minha experiência de trabalho com crianças deficientes intelectuais, múltiplas e transtornos globais do desenvolvimento (TGD), que são distúrbios nas interações sociais.
Durante quatro anos em que vivenciei atividades de Artes com crianças que são atendidas no Centro de Atendimento Educacional Especializado Diurza Leão, da cidade de Inhumas – Goiás, percebi que precisava compartilhar esta experiência para refletir como a Especialização em Processos e Produtos Criativos, iniciada em 2017, tem contribuído para minha prática docente no Centro de Atendimento Educacional Especializado.
Sabemos das dificuldades que as instituições públicas de ensino enfrentam, principalmente no que tange ao financiamento de projetos e propostas pedagógicas. No centro onde atuo desde 2008, buscamos através do projeto “Arte de fazer Arte”, desenvolvido nesta instituição pública estadual, a possibilidade de trabalhar a Arte e a Educação inclusiva de forma a transformar nosso entorno por meio da afetividade, interação social e criatividade.
Minha participação na Especialização em Processos e Produtos Criativos como discente me permitiu conectar os conteúdos trabalhados na pós-graduação à minha prática profissional no centro. Durante este período, foram muitas as questões que me inquietaram. Uma delas me faz questionar se não estamos focando mais na produção e na comercialização dos produtos elaborados pelos alunos deficientes intelectuais, ao invés de trabalharmos a criatividade dos mesmos no processo de ensino e aprendizagem e como a criatividade pode contribuir para a obtenção de sua autonomia. Outra pergunta é saber como esses alunos avaliam a participação no “Projeto Arte de fazer Arte”, realizado no Atendimento Educacional Especializado, para a sua experiência de vida.
O Atendimento Educacional Especializado tem como objetivo preparar os alunos com deficiências ou transtornos, matriculados na rede regular de ensino, complementar e/ou suplementar à sua formação, ao desenvolver habilidades e competências, por meio de diferentes atividades na Sala de Desenvolvimento Cognitivo e demais espaços escolares e comunitários, para que eles tenham cada vez mais autonomia no seu fazer e agir, sendo pessoas atuantes e participativas, tanto no ambiente educacional quanto no mundo em que vivem.
Sendo assim, a minha proposta de trabalho no AEE é ter como aliada principal a Arte, que deverá permitir ao aluno construir sua identidade dentro de um universo cultural. Por esse motivo é tão importante ter conhecimento do meio cultural imediato em que os envolvidos no processo educacional se encontram; sem esquecer de que é preciso desenvolver habilidades e competências para sua melhor atuação no processo de ensino-aprendizagem.
2. Expressividade Infantil
O processo de formação do conhecimento da arte pela criança significa entrar no mundo expressivo, imaginário, para compreendermos como tudo isso é construído. A criança naturalmente se expressa, tanto verbal como plástico e corporalmente, e é motivada pelo imaginário e desejo da descoberta do novo. Para Ferraz e Fusari (1993 p. 55), o “desenvolvimento expressivo da criança percebe-se que ele resulta das elaborações de sensações, sentimentos e percepções vivenciadas intensamente”. Sendo assim, quando a criança desenha, pinta, canta e dança, está de alguma forma se expressando, seja positivo ou negativo, alguma emoção e prazer.
146Pensar a expressividade da criança significa compreender que existe um processo interno e de inter-relação com os outros, vinculando esta experiência pessoal, e de interação com o outro, com as experiências históricas e culturais. Então, as crianças desde bem pequenas, através da expressão infantil, conseguem mobilizar para o exterior as suas manifestações interiorizadas e que forma o seu repertório constituído por elementos cognitivos e afetivos abordados por Lowenfeld (1977) e Vygotsky (1999), que procuraram explicar o processo artístico da criança através de teorias mais centradas na individualidade do desenvolvimento das potencialidades expressivas, perceptivas e cognitivas.
Para Ferraz e Fusari (1993), a criança é capaz de desenvolver uma linguagem própria de expressão, traduzida em signos e símbolos cheias de significação subjetiva e social. Quando a criança está se expressando, é a maneira que ela encontra para participar do processo de criação e junto desenvolve o seu afetivo, a percepção e o intelectual. É importante que o professor consiga adequar o seu trabalho para o desenvolvimento das expressões e percepções infantis, para que através da arte ele possa aprimorar as suas potencialidades perceptivas e conhecimentos.
O professor precisa oportunizar à criança observar, ver, ouvir, tocar, perceber as coisas, a natureza, os objetos e pessoas que estão à sua volta. Pois, sentir, imaginar, perceber, fantasiar, representar, fazem parte do universo infantil e acompanham o ser humano por toda a vida. A arte deve ser vista pelo professor como sua aliada para desenvolver os processos de percepção e imaginação da criança, seja ela com ou sem alguma ‘deficiência’. Compete ao professor auxiliar a criança a perceber qualidades formais e a ver o conjunto dos elementos que compõem o objeto, a imagem, o som e o ambiente.
3. Atendimento Educacional Especializado - Deficiência Intelectual
O Atendimento Educacional Especializado é uma proposta do Ministério da Educação, que foi implantado em 2007 em 144 municípios-polos para a implementação da educação inclusiva.
Em 1980, a Organização Mundial da Saúde propôs três níveis que pudessem esclarecer as deficiências, como: deficiência, incapacidade e desvantagem social. Porém, em 2001, essa proposta foi revista colocando a pessoa com deficiência em relação aos fatores contextuais, rompendo com o isolamento, ‘pessoa deficiente’ por ‘pessoa em situação de deficiência’.
Em 2001, na Convenção da Guatemala, foi celebrada a “Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência”, e o Brasil foi signatário desse documento, que foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto nº 3.956/2001, no seu artigo 1º, a definição de deficiência como [...] ‘uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.’ Sendo assim, essa definição explica a deficiência como uma situação.
Segundo Batista e Mantoan (2007, p.16), “a deficiência mental desafia a escola comum no seu objetivo de ensinar, de levar o aluno a aprender o conteúdo curricular, construindo o conhecimento”. O aluno com deficiência mental ou intelectual apresenta uma maneira própria de aprender, que não corresponde com o que a escola espera destes. Eles costumam apresentar dificuldades para resolver problemas, compreender as ideias abstratas, estabelecer relações interpessoais, compreender e obedecer a regras, e realizar atividades de vida diária.
147O deficiente mental ou intelectual possui a capacidade de argumentação afetada e precisa ser devidamente estimulado para melhorar seu processo de inclusão e fazer com que adquira autonomia e condições de ter uma vida própria. Sendo assim, a escola comum não dá conta de atingir o seu objetivo com os alunos com deficiência mental ou intelectual, e passa a tratar todos os déficits e dificuldades de aprendizagem da mesma maneira como se todos fossem deficientes intelectuais.
A pessoa com deficiência mental ou intelectual depara-se com inúmeras barreiras nas interações com o meio para assimilar as propriedades físicas do objeto de conhecimento, tais como: cor, forma, textura, tamanho e outras características retiradas diretamente desse objeto. Na maioria apresentam prejuízos na estrutura do funcionamento e na construção do conhecimento. A criança com deficiência necessita exercitar sua atividade cognitiva, de maneira que possa avançar na sua abstração. Ela precisa ser estimulada e provocada para conseguir interiorizar o conhecimento e fazer uso deste oportunamente.
O Atendimento Educacional Especializado para as pessoas com deficiência mental ou intelectual está centrado na subjetividade do processo de conhecimento, não no conhecimento acadêmico (conteúdo curricular), mas na forma pelo qual o aluno trata todo e qualquer conteúdo que lhe é apresentado e como conseguirá ter significado e compreensão do mesmo. É o lugar que permitirá ao aluno uma vivência, se posicionar de forma autônoma e criativa diante do conhecimento.
O objetivo do Atendimento Educacional Especializado é propiciar condições e liberdade para o aluno construir a sua inteligência, e possa ser capaz de produzir significado/conhecimento. É elevá-lo enquanto ser humano que precisa desenvolver a criatividade e a capacidade de conhecer o mundo e a si mesmo.
1484. História do Projeto
O projeto ‘Arte de fazer Arte’ surgiu de um projeto maior criado em 2014 no Atendimento Educacional Especializado com o nome de “O olhar da criança sobre a arte”, desenvolvido com o objetivo de trabalhar o pedagógico através da linguagem visual, do desenvolvimento cognitivo, sensorial, imaginação, criatividade, capacidade de reflexão e crítica. Porém, quando iniciei a pós-graduação em Processos e Produtos Criativos foi possível lançar outros olhares sobre a prática que vinha sendo desenvolvida. Percebi que era possível refletir sobre assuntos que eu não havia pensado, talvez por não ter conhecimento teórico para discuti-los com maior profundidade. Sendo assim, essas contribuições teóricas me fizeram compreender melhor o que é um processo de criatividade e qual é o papel dos projetos criativos para o desenvolvimento econômico, item fundamental para a criação do Projeto Arte de fazer Arte, e que me fizeram perguntar: Como efetivar um projeto que envolva o processo e a produção criativa com crianças que apresentam muitas limitações nas áreas cognitivas e perceptivas que afetam a atenção/concentração, criatividade, expressividade e comunicação? Que maneira podemos contribuir para o debate sobre as especificidades que envolvem o ato de pintar como processo criativo e produtivo? Sendo assim, ao longo do curso, a cada disciplina iniciada, foi possível buscar caminhos para reforçar a autoconfiança, autoestima, autonomia e capacidade de assumir riscos e gerar mudanças para os alunos atendidos e no Centro de Atendimento Educacional Especializado.
5. Processo E Produção Criativa
Ostrower (2009, p. 19-30) diz que “o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando”. Para criar algo, principalmente com crianças, é preciso uma compreensão que tenha significado, que seja uma linguagem expressiva com capacidade de alcançar, motivar e que tenha sentimento. E assim foi possível pensar sobre o processo criativo sendo o comunicador visual que exerce o mais forte controle sobre o trabalho e dá maior oportunidade de expressar em sua plenitude, o estado de espírito que a obra se destina a transmitir, ou seja, é preciso aprender a usar o processo de criação. É necessário compreender o significado da forma visual, da imagem, da percepção, buscando através das cores, formas, texturas, tons e proporções.
A pós-graduação em Processos e Produtos Criativos, através da disciplina Produção Criativa de Produtos Teóricos me fez refletir sobre o meu local de cultura, sobre como as imagens que trabalhamos são mediadas nos espaços e qual repertório de imagens são necessários para trabalhar com os meus alunos que são pessoas especiais, isto é, deficientes intelectuais. Aprendi muito sobre criatividade na disciplina Criatividade para Inovação e Educação, pois me fez pensar que o professor deve estar atento a cada criança, gesto, olhar e expressão para favorecer o desenvolvimento de sua personalidade, do seu potencial, do seu talento, da sua imaginação para cultivar a atividade criativa.
No caso da criança com deficiência intelectual, essa percepção consciente é afetada e precisamos criar propostas que permitam a estimulação da percepção sensorial para que eles possam desenvolver o processo criativo, e através da pós-graduação consegui alavancar melhores metodologias para estimular e encorajá-los a participar das atividades e do projeto sem medo de ‘errar’.
Aprendi ao longo do curso a ter flexibilidade, ou melhor dizendo, ser capaz de mudar o pensamento e conceber diferentes categorias de respostas e elaborar ideias para avaliar o processo criativo.
149O processo criativo com as crianças possibilita a interação social, o desenvolvimento da coordenação motora, a linguagem e a satisfação de realizar a atividade várias vezes, pois, alguns trabalhos serão elaborados por várias vezes e a criança gosta da repetição.
150Sendo assim, a criatividade não é uma condição das pessoas inteligentes, mas um atributo que proporciona à inteligência uma maior versatilidade, pois muitos psicólogos dizem que a inteligência é um conjunto de múltiplas habilidades e que não existe sozinha, senão como parte de um todo e que, na prática, está interligada com as emoções, sensações e percepções para produzir conhecimento.
A pós-graduação em Processos e Produtos Criativos me possibilitou novos conhecimentos e áreas diferentes, como: apontamentos sobre arte digital e computação gráfica; design e comunicação visual; análise biônica como processo criativo; consumo cultural; design thinking de serviços; empreendedorismo e software de planos de negócios e design para a sustentabilidade. Foi possível conhecer a atuação do design e alguns conteúdos que podem atender a educação, a inclusão, o ensino e a aprendizagem. O projeto é o meio para o aluno inclusivo mostrar algo que ele produziu, algo que ele pode fazer com tanta capacidade e que Ostrower diz:
151Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse "novo", de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER,2009, p. 2).
6. Considerações Finais
O Projeto Arte de fazer Arte conseguiu desenvolver o seu objetivo proposto, que era criar objetos que possibilitassem aos alunos com deficiências intelectuais, ou transtornos, matriculados na rede regular de ensino, habilida-des e competências, tais como: autonomia, criatividade, expressividade e acessibilidade através de um processo criativo.
Consegui, ao longo do processo criativo, desenvolver as habilidades de atenção e concentração em crianças que não conseguiam se assentar para fazer uma atividade sequer. Foi possível ver o interesse das crianças pelos sa-beres e fazeres através das tintas, cores, texturas, telas e pincéis.
O Projeto oportunizou o espaço e o tempo de configurar imaginários e extrair pensamentos através da experiência com cores, formas e imagens. Foi possível desenvolver na criança o gosto pelos materiais plásticos com uma produção criativa. Acredito que a Especialização em Processos e Produtos Cri-ativos em muito contribuiu para o desenvolvimento dos meus alunos e que no ano de 2018 conseguiremos produzir trabalhos mais criativos, elaborados, pro-porcionando aos alunos maior autonomia, expressividade, criatividade e aces-sibilidade, onde poderão ser mais gratificados e reconhecidos pelo trabalho alcançado.
Referências
BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino de arte. São Paulo: Perspectiva. Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1991, p.31.
______. Inquietações e mudanças no ensino da arte. São Paulo: Cortez, 2003.
______. Tópicos e utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
BRASIL. Decreto n° 6.571, de 17 de setembro de 2008. Dispõe sobre o Atendimento Educacional Especializado.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
BRASIL. Ministério da Educação.Diretrizes Operacionais da Educação Especial para Atendimento Educacional Especializado (AEE) na Educação Básica. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. In: Secretaria de Educação Especial/Ministério da Educação. Inclusão: Revista da Educação Especial. v.4, n.1. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2008.
BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998.
BATISTA, C. A. M. e MANTOAN, M. T. E. Atendimento Educacional Especializado em Deficiência Mental. In: GOMES, A. L. L. et al, Deficiência Mental – São Paulo: MEC/SEESP, 2007.
CUNHA, Susana R. V. da. Cor, som e movimento. Porto Alegre: Ed. Mediação, 1999.
FERRAZ, Maria Heloisa C. de T; FUSARI, Maria Felismina de Resende. Metodologia do ensino de arte. São Paulo: Cortez, 1993.
FUSARI, Maria Felismina de Resende; FERRAZ, Maria Heloisa C. de Toledo. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez, 1992, p. 89.
HAETINGER, Max Günther. Criatividade, criando arte e comportamento. Porto Alegre: Edição Criar, 1998.
MUNARI, Bruno. Design e comunicação visual: contribuição para uma meto-dologia didática. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 65-71; p. 116-119; p. 170-185.
______. Das coisas nascem coisas. Tradução José Manuel de Vasconcelos. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.10-56.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vo-zes, 2009. p.9-30.
OSINSKI, Dulce. Arte, história e ensino: uma trajetória. São Paulo: Cortez, 2001.
PILLAR, Alice D. A educação do olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação, 1999.
ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam: leitura da arte na escola. Porto Alegre: Mediação, 2003.
SANTOS, Boaventura de Souza. A construção multicultural da igualdade e da diferença. Coimbra: Centro de Estudos Sociais. Oficina do CES n° 135, jan. 1999.
SANTOS, Santa Marli Pires do. Brinquedoteca – a criança, o adulto e o lúdico. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2003.