Saia de roda – vestimenta identitária quilombola com resíduos têxteis

Resumo Este trabalho é um dos resultados do projeto teórico-prático Saia de roda, realizado nas comunidades quilombolas de Extrema e Levantado, localizadas no munícipio de Iaciara – Goiás. Utiliza-se a pesquisa de campo e a metodologia participativa ao longo do projeto, valorizando os conhecimentos e experiência dos participantes, envolvendo-os na discussão, escolhas e construção do produto (saias de roda). Para isso, foram arrecadados pelos discentes da especialização Processos e Produtos Criativos FAV/UFG 13 fardos de resíduos têxteis de confecções em Goiânia e Itapuranga, a fim de servir como matéria-prima para a construção das saias do projeto nas comunidades. O objetivo geral foi identificar e analisar os significados das saias de roda no contexto da sussa e auxiliar no processo de criação de saias de roda identitárias com resíduos têxteis. Logo, formulou-se previamente o conteúdo teórico-prático para as oficinas, direcionado à cultura quilombola, políticas públicas que podem ser utilizadas para aplicar melhorias nas comunidades, técnicas simplificadas de modelagem e noções de costura, incentivo ao empreendedorismo. O resultado do projeto gerou saias construídas com a identidade, memória, cultura, vivência individual e/ou coletiva de cada participante do projeto, repletas de significados, estórias e histórias, força, empoderamento, resgatando a feminilidade, tradição e cultura local. E as noções de modelagem e costura despertaram o espírito empreendedor nos participantes, fazendo com que eles futuramente possam gerar renda através de sua criatividade, união e do poder das próprias mãos.

Palavras-chave Saia, Sussa, Cultura, Tradição, Memória.

Autoria

  • Abadia Maria de Oliveira

    Graduação em Comunicação Social - Habilitação Relações Públicas,Universidade Federal de Goiás. Especialização em Indigenismo e Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Mestrado em Integração e Cooperação Internacional, Universidade Nacional de Rosario (dissertação sem defesa concluída), Argentina. Experiência profissional em Comunicação Social e em projetos sociais e culturais nas áreas de desenvolvimento territorial e sustentável com comunidades urbanas e rurais. Consultora de artesanato e processos criativos identitários.

  • Jennifer Oliveira Barbosa

    Bacharel em Design de Moda formada pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em 2015. Atuo como designer de moda e modelista. Especialista em Gestão dos Processos Produtivos do Vestuário pelo SENAI GOIÁS e especialista em Processos e Produtos Criativos pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

  • Juliana Marques do Lago

    Especialista em processos e Produtos Criativos UFG.

  • Karina Monica Achoa Berriel

    Especialista em processos e Produtos Criativos UFG.

  • Marta Rosa

    Especialista em processos e Produtos Criativos UFG.

Orientador

  • Adair Marques

    Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) pela Universidade de Brasilia (2015). Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da UFG (2007). Graduado em Moda pela Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (2002). Especialista em Docência Universitária pela Universidade Estadual de Goiás (2004). Atualmente é professor Adjunto, nível II da Faculdade de Artes Visuais/FAV da Universidade Federal de Goiás/UFG, atuando como professor do Curso de Bacharelado em Moda e no Curso de Licenciatura em Artes Visuais modalidade EAD. Tem publicações na área de imagem e moda em eventos regionais, nacionais e internacionais. Tem experiência na área de Moda , com ênfase em manufatura de Vestuário, atuando ainda nos seguintes temas: Teoria Queer, Imagem Masculina, Modelagem Plana e Tridimensional e Tecnologias da Confecção. Desde 2013 é avaliador de cursos de graduação (Licenciaturas, Bacharelados e Tecnólogos) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais - INEP, nas áreas de Moda, Design e Artes Visuais. É membro integrante da Diretoria da Associação Brasileira de Ensino de Moda - ABEMODA (2014-2018). Coordenador do Grupo de Pesquisa e Inovação em Tecnologias do Vestuário - GVEST, da FAV/UFG.

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1. Introdução

Primeira Roda da Saia

O reconhecimento do lugar!

Quando acaba o asfalto em Iaciara - GO, começa a estrada de terra, longa e um pouco sinuosa até chegarmos à Extrema. Primeiro povoado quilombola, foco do nosso trabalho de conclusão da Pós-graduação em Processos e Produtos Criativos, realizado na Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás.

Logo à entrada, está o cemitério; na sequência, a nova construção da igreja, cuja obra parada encobre a igreja antiga. Muito bucólica e cheia de apelo quanto à religiosidade de seu povo.

Abre-se, então, como uma praça: a direita uma rua ladeada por touceiras de flores, que atraem borboletas dos mais diferentes formatos, tamanhos e cores; repletas de casas e seus largos quintais com grande quantidade de árvores frutíferas, plantas medicinais e pimentas. Ao final, quase escondido no quintal de uma delas, um córrego.

À esquerda, a rua se abre em duas, tendo a Escola Municipal João Damaceno Rocha ao meio como a divisa do povoado. As casas e suas cisternas se distribuem nas duas ruas e voltam a se encontrar na estrada à frente, em direção a Levantado, poucos quilômetros à frente.

Levantado também tem um cemitério, muito junto à entrada da cidade, porém, após as primeiras casas. A antiga escola, hoje inativa, serve de moradia para uma grandiosa família quilombola. Esta antiga escola fica em frente à igreja e nos conduz a rua de casas. Em Levantado se mantêm mais clara as características quilombolas, até mesmo porque em Extrema já existem moradores de outros estados, ao contrário de Levantado.

Ao final da rua encontramos uma barragem d’água e ruínas de uma casa de adobe, original do início do povoado de Levantado. E hoje em construção, há uma casa de farinha. Que vem sendo construída aos poucos, tijolo por tijolo com os recursos, suor, sonhos e empenho dos próprios moradores.

Figura 1. Cartografia do projeto saia de roda nas comunidades de Extrema e Levantado.
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Nosso primeiro contato com os moradores foi realizado de casa em casa para, além de reconhecer o lugar e construir um mapa, conhecer um pouco sobre cada sujeito, suas histórias, suas marcas, seus sorrisos e sua criatividade frente à vida. Este primeiro contato/visita revelou a receptividade, a simpatia, a amabilidade e o carinho irradiado pelas pessoas das duas comunidades em relação às “forasteiras” que foram levadas, também, a experimentar as delícias de seus quintais: seriguelas, amoras, limões, pinhas, enormes acerolas de um vermelho intenso, romãs, mangas, fruta, pão... Tudo deliciosamente orgânico.

...

Ouvir as histórias de cada morador, dos mais antigos, como Seu Anastácio, que do alto de seus oitenta anos comanda as rezas de Levantado e lidera com sua flauta os outros músicos que tocam para que se dance a sussa (dança local considerada uma das maiores manifestações culturais das comunidades quilombolas, realizada geralmente por mulheres que, vestindo saias de chita, rodopiam e giram com belos movimentos), e Dona Catarina que, com seus oitenta e três anos, vive em Extrema e é referência para todos: já foi benzedeira, parteira, professora, foi essencial e um grande aprendizado. Até as crianças ficaram fascinadas com a possibilidade de vir a criar suas saias para dançarem a sussa.

O interesse e a participação em grande número da comunidade motivou e alinhou nosso trabalho. As oficinas teórico-práticas ofereceram a todos, inclusive a nós, uma visão de cada detalhe das vidas e das vivências dos quilombolas que lá chegaram... se instalaram e lá construíram suas famílias e histórias.

Eles reconheceram sua história, suas tradições e atividades que eram comuns a todos, relembradas com as rodas de conversa das oficinas iniciais, revisitaram assim suas áreas e tradições e como resultado: a Oficina de Mapeamento.

O grupo levou alguns exemplos/modelos de saias confeccionadas a partir de resíduos têxteis para que os membros das comunidades pudessem ter uma referência inicial da proposta. Também foram apresentados os materiais que seriam utilizados para a elaboração coletiva de novas saias, além do cronograma de execução do projeto. Nós, “forasteiras”, fomos brindadas com as rezas, a música e a dança.

Detalhe, os instrumentos musicais são feitos com madeiras da região, que, com o desmatamento, estão cada vez mais escassos.

Praticamente, as oficinas os colocaram em contato com a produção de “bonecos em EVA” que serviriam de modelos bidimensionais para desenhar as saias que seriam produzidas. A ferramenta do “boneco de EVA” foi utilizada para facilitar a assimilação do corpo humano e dos movimentos de corpo, auxiliando-os na execução dos croquis.

A parte criativa foi impactada com a técnica de produzir as saias a partir dos retalhos de tecido. A união de cada pedacinho, assim como a união do grupo, fez muita diferença, uma ajudando a outra na construção de suas saias, algumas doando suas pontas das saias e outras ajudando as colegas a costurarem seus retalhos com as mãos ou com a máquina. Muita colaboração, integração e união!

Máquinas de costura para quem nunca usou uma. Bordados para quem não é dado às linhas. Juntar tudo, aprender, empreender, sonhar, criar e produzir.

O resultado superou as expectativas iniciais, tanto do grupo de “forasteiras” quanto da comunidade local. Saias de vários padrões e diferentes rodas, que foram testadas na Festa de São Sebastião com animação, saias de roda e a dança da sussa com mulheres de todas as idades.

Se por um lado, para nós que viemos de longe, conhecer a história viva destas comunidades, seus hábitos e suas tradições foi fascinante, para eles, houve uma redescoberta de sua origem e suas tradições.

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Figura 2. Cartografia (reconhecimento) do lugar – Extrema.
Figura 3. Cartografia (reconhecimento) do lugar - Levantado.

1.1. Objetivos

O objetivo geral do trabalho foi identificar e analisar os significados das saias de rodas no contexto da sussa e a formulação de conteúdo teórico-prático para auxiliar os moradores no resgate das memórias e tradições da comunidade, para que pudesse ser aplicado no processo de criação das saias de roda identitárias com resíduos têxteis.

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1.2. Metodologia

Utilizou-se no projeto a pesquisa de campo. Segundo José Filho (2006, p. 64), “o ato de pesquisar traz em si a necessidade do diálogo com a realidade a qual se pretende investigar e com o diferente, um diálogo dotado de crítica, canalizador de momentos criativos”. Logo, para a pesquisa de campo, o grupo ficou instalado durante 18 dias numa casa cedida por um dos moradores de Extrema, tendo contato direto com os moradores, conhecendo e vivenciando sua realidade e colhendo informações diretas da fonte.

Para potencializar a pesquisa de campo foi utilizada a metodologia participativa ao longo do projeto, onde todas as escolhas eram votadas entre a comunidade e os membros do projeto ao final de cada dia, de acordo com os acontecimentos e as demandas do dia. Assim, houve a valorização dos conhecimentos e experiência dos participantes, incluindo-os nas discussões, trocas de saberes, escolhas e construção das oficinas teóricas e dos produtos (saias de roda).

2. O Reconhecimento dos Sujeitos - Nós e Eles

Segunda Roda da Saia!

Nove meses antes do evento de abertura do projeto saia de roda deu- se início as primeiras conversas com os membros das comunidades parceiras, iniciação do planejamento de atividades do projeto, arrecadação de retalhos e materiais para as oficinas pelos discentes e lideranças e foi estabelecido um cronograma de atividades (anexo) para que todas as etapas pré-estabelecidas fossem adaptadas se necessário de acordo com a demanda e, posteriormente, concluída.

2.1. Abertura e Breve Apresentação do Projeto para a Comunidade

A abertura do projeto saia de roda ocorreu no dia 12 de janeiro de 2018 (sexta-feira), às 20 horas, na Escola Municipal João Damaceno Rocha, localizada na comunidade quilombola de Extrema, contando com a participação e aceitação popular. Havia cerca de 70 pessoas participando do evento de abertura do projeto, assim como autoridades locais. Dentre as ilustres presenças, destaca-se a ida de Dona Catarina, uma senhora de 83 anos, pioneira da comunidade, com limitações físicas (locomoção e visual), que fez questão de participar da abertura do evento e de ver, sentir e tocar nas saias de amostra. Dona Catarina comentava emocionada que a saia que ela estava tocando lembrava e era muito parecida com uma saia que ela tinha da juventude dela. Todo o esforço de Dona Catarina para deslocar-se de sua casa à escola fez com que a comunidade abraçasse ainda mais o projeto, aumentando o nível de aceitação. A presença da menina Anne Gabriele, de 6 anos, que fez questão de comparecer ao evento vestindo saia fortaleceu a adesão de outras crianças da mesma faixa etária. E a participação e apoio das lideranças jovens quilombolas, representadas por Madalena Sacramento, liderança jovem de Extrema, e Irene Pereira da Silva, liderança jovem de Levantado, aumentaram a receptividade e adesão dos adultos e jovens da comunidade. Assim como a presença de Seu Anastácio, 80 anos, um dos fundadores da comunidade, que mesmo adoentado locomoveu-se de Levantado até Extrema para participar do evento do projeto e brindar a todos com uma apresentação instrumental no encerramento da cerimônia com muita alegria, música, sussa dançada por membros da comunidade. Houve a apresentação da proposta do projeto para as comunidades quilombolas de Extrema e Levantado mostrando seus objetivos e convidando os membros das comunidades a participarem. Houve a apresentação dos membros da equipe (pós-graduandos de Processos e Produtos Criativos FAV/UFG), apresentação cultural musical com voz e violão, com temática afro. Ao final, fez-se uma lista de inscrição para as oficinas que contabilizaram 42 inscritos.

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2.2. Oficina de Introdução ao Projeto e de Apresentação da Comunidade

A oficina de abertura foi realizada no dia 13 de janeiro de 2018, no galpão da Escola Municipal João Damaceno Rocha, localizada na comunidade de Extrema e participaram cerca de 50 pessoas, entre os moradores de ambas as comunidades e a equipe do projeto Saia de Roda. Para a apresentação pessoal foi pedido para que cada um dos integrantes acendesse o palito de fósforo e fossem se apresentando enquanto este estivesse queimando, alguns falaram pouco, outros falaram muito. Porém, ficou perceptível para a equipe do projeto que há uma união e uma força interna entre as pessoas, um reconhecimento da identidade, e um orgulho disso, até mesmo os que não são nascidos ali dizem se reconhecer como quilombolas. Esse reconhecimento foi primordial para o projeto: reconhecer-se como descendente de negros, fez com que a comunidade abraçasse o projeto de criação da saia para a sussa, que é uma tradição entre os quilombos do Brasil.

Figura 4. Dinâmica de apresentação pessoal com o palito de fósforo. Foto: Coletivo Saia de Roda.
Figura 5. Professora Regina Rodrigues se identificando como quilombola, apesar de não ter nascido na comunidade. Foto: Coletivo Saia de Roda.
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2.3. Oficina de Mapeamento Comunitário

A oficina de mapeamento comunitário foi baseada no Diagnóstico Rural Participativo, mais conhecido como DRP. O DRP permite que a própria comunidade realize seu diagnóstico, sendo capaz de se autogerenciar e planejar seu desenvolvimento. Existem várias metodologias que podem ser utilizadas. A metodologia aplicada para as comunidades de Levantado e Extrema foi a de reconhecimento do território. Foram separados dois grupos, cada grupo representado por cursistas de cada comunidade, que em conjunto deveriam interagir e representar o local onde moram.

Antes da realização da atividade, nosso grupo fez pesquisa de campo e entrevistas em ambas as comunidades, realizando um mapeamento à parte, para no final da oficina fazer uma comparação entre as visões das pessoas que são externas à comunidade e aquelas que ali residem.

O resultado final da oficina revelou, nas falas dos moradores locais, histórias de vida que se entrecruzam no território, que estabelecem laços parentais, que descortinam uma vida simples, alegre e festiva. Os diferentes atores contam e recontam as histórias que, novamente, serão recontadas.

A atividade foi desenvolvida por 40 participantes e os mapas construídos por cada comunidade estão na figura 06 (Extrema) e na figura 07 (Levantado).

Figura 6. Mapa comunitário realizado pelo povoado quilombola de Extrema. Foto: Coletivo Saia de Roda.
Figura 7. Mapa comunitário realizado pelo povoado quilombola de Levantado. Foto: coletivo Saia de Roda.
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2.4. Oficina de Confecção dos Protótipos

A oficina de confecção dos protótipos foi realizada no dia 14 de janeiro de 2018. O grupo de trabalho ficou restrito à comunidade de Extrema porque nesse dia choveu muito e o ônibus não conseguiu passar pela estrada para buscar os cursistas de Levantado. Participaram cerca de 20 pessoas. O interessante da atividade é que muitas mães levaram suas crianças, e estas, por observar a construção de um “boneco de EVA”, quiseram produzir o seu.

Figura 8. Mapa comunitário realizado pelo povoado quilombola de Extrema. Foto: Coletivo Saia de Roda.
Figura 9. Mapa comunitário realizado pelo povoado quilombola de Levantado. Foto: coletivo Saia de Roda.
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Seguindo orientações dos instrutores Eduardo e Marta, o grupo finalizou o protótipo no mesmo dia durante o período vespertino para partir para a etapa seguinte: fazer os desenhos de suas saias com o auxílio dos bonecos como dever de casa e trazer nas oficinas seguintes.

2.5. Oficina: a História da Saia pelo Mundo

A oficina realizada nos dias 14 e 15 de janeiro de 2018 foram voltadas para o entendimento da saia: sua história. Apesar de ser incerto a data exata de quando essa vestimenta começou a ser usada, a certeza é que ela é a própria representação da evolução da humanidade. As antigas civilizações: sumérios, gregos, romanos, já utilizavam essa vestimenta padrão, e o mais interessante é que homens utilizavam sempre as saias mais curtas.

O grupo fez o desenho individual da representação da saia no seu imaginário e as ideias foram bem diferenciadas: uns desenharam flores, outros desenharam o povoado, uns fizeram a anágua, que é tipicamente usada pelas mulheres das comunidades, outros fizeram um desenho aproximado da saia que vemos na internet.

Figura 10. Madalena mostrando seu desenho da saia, na sua representação da saia é o local de vivência. Valor iconográfico. Foto: Coletivo Saia de Roda.
Figura 11. Saia desenhada pela Jovelina, na sua concepção a saia parece mais com uma anágua. Foto: Coletivo Saia de Roda.
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2.6. O Conceito do Belo e do Estético

O belo e o estético

Perceber o que é belo para si, para seu entorno, é um exercício de atenção e de certo desprendimento. Os valores próprios de sua visão do belo e do esteticamente interessante podem passar despercebidos a nós. Cada época, cada cultura, cada indivíduo desenvolve seus conceitos, por motivos diversos. Fugir dos padrões pode ser o seu belo.

Incluir-se nos padrões da sua sociedade também.

No universo da moda, a aparência e a imagem pessoal são muito prezadas, pois a beleza e o desejo de ser considerado belo, constitui uma forma de aceitação social. Entretanto, o entendimento do que viria a ser belo subjetivo, pois não existe uma definição que capte inteiramente o significado de belo (ETCOFF, 1999).

Nesse sentido, a dita “moda padrão” imensamente divulgada pelas revistas, redes sociais, mídia, etc, faz com que a diversidade cultural se perca nesse universo de futilidade, sendo assim, o objetivo da oficina foi resgatar os valores culturais das mulheres de ambas as comunidades: de Extrema e Levantado, evidenciando suas raízes negras.

Dialogar sobre seus valores: culturais, ambientais e sociais, que estão inclusos no seu jeito de se vestir, de se portar e de agir, foram decisivos para as pessoas da comunidade trazendo à tona seus valores, seus traços genéticos, culturais e até gestuais. Despertou valores adormecidos, expondo cabelos lindos, escondidos sobre toucas não pensadas; traços familiares de grande beleza, roupas que valorizassem o feminino guardado, inclusive, ampliando o sucesso do nosso objetivo: a Saia de Roda!

3. A Criação da Saia de Roda no Contexto da Manifestação Identitária das Comunidades de Extrema e Levantado

Terceira Roda da Saia!

As saias de roda de se dançar sussa no passado vinham até o tornozelo e eram de godê guarda-chuva, as saias bonitas eram assim, na opinião de Seu Anastácio. Ao rodarem, elas se abriam por completo 360°graus, mostrando toda leveza, beleza, alegria e liberdade. E como Dona Catarina disse: quanto mais colorida mais bonita era a saia ao se lembrar de dançar sussa com uma perna só.

Alvarez et al. (2011) afirmam que as danças podem expressar a memória e a identidade de um povo. Com as lembranças e memórias dos mais antigos há um resgate do passado, das origens e tradições, assim conhece-se, assimila-se e perpetua-se a essência, a matriz cultural e identitária de um povo. Mostrando, então, a importância dos mais velhos no repasse e incentivo das tradições para os mais jovens.

A figura 12 e 13 representam bem esse repasse de tradição, onde os pioneiros das comunidades têm papel fundamental no incentivo e integração de ideais e vontades de um grupo. A interação entre Dona Catarina e a criança acerca da saia de roda faz unir mais a comunidade. Assim como a alegria de Seu Anastácio, puxando os seus músicos com sua flauta, há também o resgate de antigas tradições que, com o passar do tempo, vem enfraquecendo e se perdendo.

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Figura 12. Dona Catarina com grande emoção vendo a saia de roda da criança (bisneta). Foto: Coletivo Saia de Roda.
Figura 13. Seu Anastácio tocando e puxando seus músicos enquanto todos dançam a sussa. Foto: Coletivo Saia de Roda.

4. Os Festejos com Todos os seus Significados

Quarta Roda da Saia!

Dentre os festejos das comunidades de Extrema e Levantado destaca-se a reza de Santa Luzia, realizada no dia 13 de dezembro, a reza do Divino Pai Eterno, realizada no primeiro domingo de julho, e a festividade do Mastro Sagrado Coração de Jesus, realizada no dia 12 junho. Na reza de Santa Luzia faz-se rezas na igreja e ao longo do dia nas casas de outros moradores. Na reza do Divino Pai Eterno os moradores das comunidades se reúnem, é feita a reza na casa de Dona Catarina e, logo após, é realizado o giro dos foliões de casa em casa, alguns batendo seus pandeiros, outros com raminhos da sorte atrás da orelha para afastar “mau olhado”. Na festividade do Mastro Sagrado Coração de Jesus os fiéis rezam a novena, e fazem os festejos no nono dia com a levantada do primeiro Mastro Sagrado Coração de Jesus e no dia seguinte é feito a levantada do segundo Mastro Imaculado Coração de Maria. Ao longo da festividade eram servidas comidas comunitárias que variaram ao longo dos anos como: farofa com galinha caipira, bolo, suco, churrasco, salada, feijão tropeiro, farofa com carne. Segundo os mais antigos, em 1963, serviam as comidas, as pessoas cantavam e dançavam sussa e curraleira a noite toda. Atualmente, nota-se que as danças antigas não atraem mais os jovens, que se interessam mais pela presença do forró e bandas nas festividades.

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5. Resultados Obtidos

Saia Completa!
A Grande Roda de Todas as Saias!

Quanto tempo se leva para abrir uma janela?

Quanto tempo se leva para surgir um brilho no olhar?

Dezoito dias! Esse foi o tempo que o Projeto Saia de Roda se ocupou em abrir janelas para o mundo mesmo sem sair do lugar. O mesmo tempo para cintilar brilhos em dezenas de olhares emocionados em se dar conta da riqueza do próprio quintal; em perceber a extensão do próprio saber, quando despertado; em entender que a mesma tecnologia utilizada somente para contatos virtuais, pode, também, ser um canal infinito de pesquisas e aprendizados.

Idosos, crianças, jovens, mulheres, homens, todos unidos pelo fio da sua memória cultural, sua identidade!

O projeto Saia de Roda foi abraçado desde antes do seu acontecimento. A nossa equipe, acolhida desde antes da sua chegada.

Permitiram-se ser guiados. Acataram cada ensinamento, e também nos ensinaram. Juntaram-se em duplas ou em trios para produzirem mais e melhor. Trabalharam até o último minuto. Ajudaram uns aos outros, doaram tempo, trabalho, retalhos e costuras. Emprestaram máquinas. Dividiram alimentos (não por escassez, mas por pressa em produzir).

E foi assim, entre frases de lamento: “Hoje eu tenho pra onde ir, o que fazer e com quem conversar; o que vai ser da minha vida quando vocês forem embora?” Ou frase de entusiasmo empreendedor: “Até o meio do ano vou ter saia pra alugar pra festa de São João”. Foram ficando prontas. Uma, duas, dez, trinta e quatro! E mais oito saias de chita para as crianças pequenas; e outras quatro para mulheres adultas – duas para autoridades e outras duas para as senhoras mais idosas, uma de cada Comunidade; e ainda uma camisa de chita para o Sr. Anastácio.

Vinte e oito de janeiro de 2018. Dia do encerramento. Convidados, autoridades, e as comunidades inteiras vieram prestigiar o que sequer imaginavam.

Houve apresentação de capoeira, reza e galinhada. E a entrega de cada saia, uma a uma, como um troféu. Palmas, assovios, fotos, filmagens, e de novo aqueles olhos marejados com brilho de um luar africano.

Mas no largo em frente da antiga escola, no mesmo chão de terra onde dançaram os negros fundadores dessas comunidades quilombolas, foi o som e o ritmo da sussa que surgiu majestoso, com tanta intensidade que todas as saias rodaram ao mesmo tempo, e de tal maneira contagiante que corou em cada um ali presente a certeza de pertencer a essa terra e a essa gente.

Sentindo o coração bater neste ritmo dançante, rodopiante... e os pés como que alados... entendemos que naquele momento nada mais importava....

O que fica da comunidade é a certeza de uma integração que vai se perpetuar por outros trabalhos vindouros. Cada etapa das oficinas, apresentação, criação, produção e resultado final estampam a identidade participativa. Obtivemos resultados palpáveis com a produção dos bonecos, dos desenhos, dos moldes; com a seleção dos retalhos e com as diversas etapas da produção em si das saias.

Os resultados imediatos dessa atividade foram da produção das saias que são apenas uma recordação física de muitas que ficaram na memória eterna dos envolvidos no projeto.

Nada mais além da certeza de que...

QUANDO A SAIA RODA, O SORRISO BROTA!

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Figura 14. Finalização do projeto com as saias de roda concluída e festejo. Foto: Coletivo Saia de Roda.

Referências

Artigos em revistas acadêmicas/capítulos de livros

ALVAREZ, Gabriel Omar et al. Tradição cultural e práticas corporais em comunidades quilombolas de Goiás: notas para uma política de esporte e lazer. In: SILVA, Ana Márcia; FALCÃO, José Luiz Cerqueira (Org.). Práticas corporais em comunidades quilombolas de Goiás. Goiânia, Goiás: Ed. da PUC Goiás, 2011. p. 77-91.

SOUZA, R. C.; Gallert, A. Z.; Loureiro, D. G.; Silva, M. R. B. (2012). Subjetividade na pesquisa qualitativa: uma aproximação da produção teórica de González Rey. Recuperado em 10 maio, 2014, em: http://pt.scribd.com/doc/119999696/Pesquisa-Subjetiva.

JOSÉ FILHO, M. Pesquisa: contornos no processo educativo. In: JOSÉ FILHO, M; DALBÉRIO, O. Desafio da pesquisa. Franca: Unesp– FHDSS, 2006. p.63-75.

Textos publicados na internet

ROCHA, M. M. S. 13 de dezembro reza de Santa Luzia. Disponível em: https://culturaquilombolaextrema.wordpress.com/. Acesso em: 11 fev. 2018.

ROCHA, M. M. S. Reza do Divino Pai Eterno. Disponível em: https://culturaquilombolaextrema.wordpress.com/. Acesso em 11 fev. 2018.

ROCHA, M. M. S. Tradição. Disponível em: https://culturaquilombolaextrema.wordpress.com/. Acesso em 11 fev. 2018.

Casa de adobe: forma artesana de alvenaria, feitos com terra crua, água, palha e fibras naturais (esterco, por exemplo).

Casa de farinha: local onde se processa a raiz da mandioca em farinha, geralmente de forma artesanal.