Estudo e análise sobre identidade de gênero dentro de uma dramaturgia teatral

Resumo Tendo como subsídio a dramaturgia teatral “Avental todo sujo de ovo”, o presente trabalho estuda, analisa e explora questões de gênero e as dificuldades enfrentadas por pessoas transgênero (mulheres e homens trans) frente ao mercado de trabalho e ao preconceito e, principalmente, frente à religiosidade e patriarcado presentes no Brasil e que são ainda mais acentuados em regiões interioranas do país. Explora-se também as distinções entre a sexualidade e identidade gênero, pois são comumente atreladas ao mesmo sentido, bem como explica, a partir de argumentos científicos, a correta identificação da temática, deixando claro o argumento biológico e sociocultural, esclarecendo e desmistificando, assim, o senso comum de que se trata de doença. Expõe-se ainda os índices alarmantes de violência contra pessoas trans no Brasil e evidencia o Estado de Goiás no ranking dos 10 Estados brasileiros que mais cometem violência contra pessoas trans. Fala-se ainda sobre violências sofridas por pessoas LGBTQ’s que ocorrem dentro de seus próprios lares. O projeto também evidencia medidas para se combater a intolerância a pessoas trans e visa ações para esclarecimento acerca do assunto junto à população.

Palavras-chave Identidade de Gênero, Religiosidade, Sexualidade, Violência, LGBTQ’s.

Autoria

  • Natanael Jesaias de Souza

    Anapolino, administrador, empresário, ator, dançarino, escritor, cenógrafo, produtor e gestor cultural.

Orientadora

  • Lílian Ucker

    Licenciada e bacharel em artes visuais pela UFSM. Mestre em Cultura Visual pela Faculdade de Artes Visuais da UFG. Doutora em Arte e Educação pela Universidade de Barcelona, Espanha. É professora efetiva da FAV/UFG onde atua com as disciplinas de pesquisa em ensino de arte, trabalhos de conclusão de curso e estágio supervisionado no curso de licenciatura em artes visuais, modalidade presencial e a distância. Atualmente é coordenadora pedagógica do Centro Integrado de Aprendizagem em Rede da Universidade Federal de Goiás (CIAR/UFG) e coordenadora da licenciatura em artes visuais na modalidade a distancia UAB.

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1. Introdução

O presente trabalho explana a temática da identidade de gênero dentro de um lar tradicionalmente patriarcal, a partir de uma dramaturgia teatral brasileira: Avental todo sujo de ovo, escrita pelo dramaturgo cearense Marcos Barbosa. A partir disso, tem como objetivo geral o estudo e análise da dramaturgia teatral, a fim de buscar entender as lacunas existentes no diálogo das personagens acerca da temática, bem como delinear as nuances e as razões existentes de forma não explícita na escrita, além de propor ações e medidas para diminuir os índices de intolerância à comunidade LGBTQ. Busca-se também, a partir de pesquisa bibliográfica, estabelecer relação e distinção entre sexualidade e identidade de gênero, preconceito, prostituição e mercado de trabalho, a fim de evidenciar a realidade vivida por muitas pessoas transgênero. Com isso, levanta-se o seguinte questionamento: Quais os caminhos possíveis para diminuir a intolerância e violência contra pessoas transgênero? Se trata de um assunto emergente e substancial, visto os altos índices de violência contra pessoas transgênero e, aprofundando ainda mais, muitos desses casos são cometidos dentro dos próprios lares, por familiares. De acordo com Vergara (2010, p. 41-49), o presente artigo pode ser definido quanto aos seus fins e quanto aos seus meios. Quanto aos fins, tratou-se de pesquisa descritiva e explicativa. Descritiva porque expôs características do texto e delineou o ambiente e realidade da trama estudada; e explicativa, pois tentou esclarecer os fatores que contribuíram para a ocorrência de determinados fatos. Quanto aos meios, realizou-se pesquisa bibliográfica, pois utilizou obras literárias e científicas durante o processo, como artigos e livros que abordam questões que envolvem o conceito de gênero.

Para atender os objetivos deste trabalho, o artigo está estruturado em quatro partes: o resumo, com uma breve descrição de todo o trabalho; introdução, na qual se levanta os objetivos, os caminhos percorridos, metodologia e problemática trabalhados no decorrer do trabalho; será falado também sobre a obra e a realização de leitura dramática, onde, a partir disso, surgiu o interesse em trabalhar o tema; logo após aborda o gênero e a religiosidade, onde irá esclarecer e pontuar, a partir de teóricos, assuntos relativos à identidade de gênero, religião e prostituição, correlacionando-os com o contexto da dramaturgia estudada; em seguida, explora-se caminhos possíveis para a continuação do presente trabalho, como: montagem da obra como espetáculo teatral e com rodas de conversas ao final de cada apresentação, a fim de discutir e debater sobre o assunto em questão, e também a realização de uma palestra com a advogada e travesti Márcia Rocha sobre o mercado de trabalho e direitos de pessoas trans, com o propósito de conscientizar e estreitar as distâncias entre empresários e pessoas transgênero. Por fim, realiza-se reflexão e considerações finais acerca de todo o trabalho, onde se explana possíveis iniciativas tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil e, em seguida, tem-se as referências, onde se faz os devidos créditos aos autores e obras utilizadas para subsidiar todo o trabalho.

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2. Avental Todo Sujo de Ovo e a Leitura Dramatizada

O interesse em investigar e estudar a questões que envolvem gênero surgiu a partir de uma oficina ministrada em setembro de 2016, por Gyl Giffony, através do projeto SESC – Dramaturgias, onde foram trabalhadas diversas dramaturgias teatrais que abordam em seu enredo a prostituição infantil, os abusos familiares e a identidade de gênero. Ao final dessa oficina, formaram-se três grupos para realizar a leitura dramatizada e, dentre eles, “Avental todo sujo de ovo”.

Escrito no ano de 2003, pelo dramaturgo cearense Marcos Barbosa, doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, o texto foi redigido muito antes dos debates atuais acerca de gênero e retrata a vida de uma mulher transgênero que volta para casa após ter fugido e ficado cerca 20 anos sem dar nenhuma notícia a seus pais. A mulher, outrora Moacir, agora se apresenta como Indienne du Bois (Índia da Selva), uma performer da cantora Clara Nunes em uma boate de uma cidade grande, e que, por algum motivo não explícito, resolve voltar à casa dos pais para reconstruir sua vida, ali, numa cidade interiorana tradicionalmente religiosa. Contudo, a pretensão de Indienne não é voltar a ser Moacir, ela almeja continuar sendo Indienne, alguém como ela se identifica. O nome do texto se deve a um trecho da música “mamãe”, escrita por Herivelto Martins e David Nasser.

A trama é dividida em dois momentos nítidos e possui quatro personagens: Alzira (mãe), Antero (pai), Indienne ou Moacir e Noélia (vizinha). Tudo acontece, de acordo com a rubrica inicial do texto, ‘num misto de sala de estar e sala de jantar de absoluta modéstia, numa periferia de absoluta simplicidade, e retrata o típico cotidiano de uma cidade do interior, num domingo de maio, sem muito sobre o que falar, a não ser da vida das pessoas.

Noélia, desde sempre vizinha da família e grande amiga de Alzira, surge entrando na casa, com intenção de convidar a amiga para ir à missa, e é recebida por uma mulher que se tornou amarga desde o sumiço do filho e que, desde então, nunca recebeu nenhuma notícia do menino. A amargura de Alzira, ainda mais acentuada, tem um motivo: O dia das mães. Embora tenha dito que não iria à igreja naquele dia, continuou sendo perturbada por Noélia até resolver ir.

O segundo momento da trama se inicia com a chegada de Indienne, a qual percebe que tudo está exatamente conforme se lembrava quando fugiu. Sua mãe, ao vê-la, a reconhece, mas não é capaz de encará-la e ver no que o filho se transformou: uma mulher que ‘se as intervenções feitas em seu corpo (especialmente nos seios, nos lábios e nas maçãs do rosto) não fossem de qualidade tão absurdamente fajuta, talvez tivesse se tornado uma mulher bonita’. Após uma longa conversa em que Alzira quer saber o que o filho andou fazendo durante todo o tempo em que esteve ausente, Indienne, sempre se referindo a si mesma no sexo feminino, responde às perguntas da mãe sobre vícios, prostituição, trabalho e uso de drogas etc.

Um mês após a oficina, no dia 19 de outubro de 2016, o grupo realizou uma leitura dramatizada encenada, ou seja, uma apresentação teatral com o texto na mão e o resultado superou as expectativas de todos.

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Decidiu-se também, que a apresentação seria dentro de uma casa, com o intuito de aproximar o público da trama e, nesse processo, as personagens interagiam com os espectadores. E utilizou-se também, como cenário, uma mobília simples que retratasse de fato a realidade trabalhada na trama e foram feitas colagens de fotos em uma das paredes com fotos de crianças desaparecidas, a fim de expor a situação de diversas famílias acerca do desaparecimento de crianças. Para quebrar ainda mais as barreiras convencionais do teatro, foi servido à plateia, por uma das personagens, comidas típicas, como: arroz doce, pamonha assada e biscoitos, para ressaltar características do Estado de Goiás.

A figura 01 retrata toda a equipe envolvida na montagem e foi composta não somente por pessoas da área teatral, mas também por profissionais formados em direito, ciências da computação, pedagogia, administração e psicologia.

Figura 1. Equipe responsável pela apresentação da leitura do texto “Avental todo sujo de ovo” (usado com permissão do autor).

Após a apresentação, o público estava atônito e revoltado ao mesmo tempo com o desfecho da história e, a partir disso, foi realizado um bate papo entre Gyl Giffony, o elenco e a plateia para discutir sensações e emoções que surgiram e opinar sobre todo o enredo e muitos relatos de experiência surgiram como exposto pela atriz e travesti Alê Alves: “assistir a essa peça e perceber particularidades que tenho dentro de mim foi fundamental[...] Quando vi aquele menino voltando como mulher e sua mãe fingindo que tudo aquilo não acontecia me fez perceber a injustiça que havia ali”.

A partir desta experiência, ficou evidente que é preciso e urgente se falar abertamente sobre questões de gênero. Não se trata apenas de uma história isolada, o texto explora a situação vivida por inúmeras pessoas transgênero e as dificuldades enfrentadas por elas dentro de seus próprios lares. Há também uma lacuna entre a autoaceitação e a vida em sociedade, existe uma barreira de preconceito não somente em relação à família, mas em relação à inserção de pessoas trans no mercado de trabalho, à relacionamentos e à escolaridade.

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3. O Gênero e a Religiosidade Presentes na Trama

Para prosseguir com o presente trabalho, faz-se necessário o esclarecimento acerca do termo ‘identidade de gênero’, bem como sua distinção de ‘orientação sexual’, perpassando de fatores socioculturais a biológicos. Louro (1997, p. 25-26) afirma que “na prática social tais dimensões são, usualmente, articuladas e confundidas”, sendo assuntos correlatos, porém distintos, ou seja, enquanto identidade de gênero trata da maneira como o sujeito vê a si próprio, a orientação sexual está ligada às preferências do indivíduo e como ele se atrai afetivamente. A partir disso, ao utilizar o termo ‘identidade de gênero’ dentro do presente trabalho, será tomado como base tal definição.

Desde modo, para Lima (2011, p.169), ‘nem sempre a identidade de gênero corresponde ao sexo com o qual o indivíduo nasceu’.

Louro aponta ainda que:

O que importa aqui considerar é que — tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade — as identidades são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado momento. Não é possível fixar um momento — seja esse o nascimento, a adolescência, ou a maturidade — que possa ser tomado como aquele em que a identidade sexual e/ou a identidade de gênero seja ‘assentada’ ou estabelecida (LOURO, 1997, p. 27).

Percebe-se, então, que a identidade de gênero pouco tem a ver com a orientação sexual dos indivíduos, embora sejam assuntos que, comumente, caminham lado a lado e, vulgarmente, costumam ser atrelados ao mesmo significado.

A distinção entre sexo e gênero pode ser proposta da seguinte forma: o sexo refere-se à identidade biológico-genética e o gênero à identidade designada e adquirida socialmente, isto é, uma construção cultural que implica certas maneiras de manifestar-se, sentir e atuar de acordo com o sexo (ROCHA, 2008, p. 104).

Lamas (1986 apud Rocha 2008, p. 104-105) faz uma análise categórica, na qual aborda a oposição natureza/cultura e, por fim, define e explora termos distintos a partir do gênero, a qual se segue na tabela 01.

Tabela 1. Designação do gênero.
Termo Definição
A designação (rótulo, atribuição) de gênero Está relacionada com o momento em que nasce o bebê, tomando-se por base a aparência externa dos genitais.
A identidade de gênero A identidade de gênero se estabelece mais ou menos na mesma idade em que o infante adquire a linguagem (entre dois e três anos) e é anterior a um conhecimento sobre a diferença anatômica entre os sexos
O papel (rol de gênero) O papel, ou rol de gênero, forma-se com o conjunto de normas e prescrições que ditam a sociedade e a cultura sobre o comportamento feminino ou masculino. Ainda que existam variações de acordo com a cultura, a classe social, o grupo étnico e até o aspecto geracional das pessoas, pode-se sustentar uma divisão básica que corresponde à divisão sexual do trabalho mais primitiva.
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Vale ressaltar, nesse ponto, que, ao empregar as palavras ‘transgênero’, utilizar-se-á a definição estabelecida por (JESUS, 12, p. 14), que define a palavra como um conceito que abarca um grupo diverso de pessoas ‘que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento’.

Indienne retrata a realidade de boa parte da comunidade LGBTQ, principalmente às transgênero que, pelo preconceito existente no mercado corporativo, acabam se prostituindo para sobreviverem e, em decorrência, expostos a todo e qualquer perigo e doenças das ruas.

A transfobia presente na sociedade brasileira que oprime os transexuais, fazendo com que muitos acabem tendo como única opção de sobrevivência a prostituição de rua, o que os torna mais vulneráveis aos vários tipos de violência, inclusive a sexual. (MINISTÉRIO DAS MULHERES, DA IGUALDADE RACIAL E DOS DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 28).

Não obstante a isso, o Brasil registra um dos maiores índices de violência contra transgênero do mundo, conforme publicado no Jornal Correio Braziliense (2016) ‘é especialmente difícil ser transgênero no Brasil, o país que, em números absolutos, mais registra assassinatos de travestis e transexuais’. Além disso, 60% dos crimes são cometidos por pessoas conhecidas, mais de 30% dos casos de morte ocorrem dentro de casa. Goiás aparece entre os 10 estados que mais comete crimes homofóbicos no país (O POPULAR, 2016).

Ao falar que é performer de Clara Nunes, Alzira convence Indienne a mostrar para ela como são os shows dela na cidade grande, não por querer apreciar uma atividade artística, mas para ver se ela trabalhava de forma lícita. Ela, então, começa a dançar e dublar e é surpreendida ao ver o pai, que acabara de chegar, a encarando na porta da sala.

Antero, um senhor de idade, possui um dos lados do corpo paralisado em decorrência de um derrame sofrido logo após o desaparecimento do filho. O autor da obra define Antero como ‘homem seco de um dos lados do corpo’. Ao ver o filho, não consegue disfarçar seu estranhamento e indignação com aquela mulher que, de imediato reconhecida por ele, vinha em sua direção: ‘a benção, papai’.

Após sucessivas discussões, demonstrações de afeto e momentos nostálgicos, o fim parece premeditado: Indienne é compelida a ir embora por seus pais. Nesse momento, percebe-se latente o orgulho, o amor e a honra na decisão dos pais. Embora sonhassem com a volta do filho, Alzira e Antero o queriam homem, não mulher. Eles sabiam também que, mesmo sendo o desejo de Indienne ficar e morar com eles, a sociedade local não a aceitaria daquela forma e ela sofreria ainda mais. Ressaltado na fala da Alzira: ‘Do mesmo jeito que você disse que foi embora pra não ver seu pai e sua mãe sofrer eu lhe digo que se você voltar quem vai sofrer mais é você. Sua felicidade não está aqui, não’.

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Muito além disso, não é somente a preocupação dos pais em relação ao bem-estar do (a) filho (a), existem razões além que ficam subentendidas no texto. Como, por exemplo, a vergonha de se ter um filho transgênero em casa, bem como a reação da vizinhança ao se depararem com o filho que voltou após 20 anos como uma mulher. Eles querem o filho de volta, mas querem o Moacir, não a Indienne. O texto ressalta um ponto importante na identidade de gênero: Alzira acredita que o filho possui algum problema psicológico e sugere que eles poderiam ter resolvido tudo com um psicólogo.

Nos últimos anos, a ciência avançou muito em estudos sobre gênero e, embora haja controvérsias, alguns estudiosos ressaltam que se trata de um fator biológico, definido ainda durante a gestação, conforme afirma Saadeh (2017), ‘há uma espécie de descompasso entre o cérebro e o sexo durante a formação do feto, o que resulta na disforia de gênero’. A identidade de gênero não deve ser vista como doença ou transtorno, pois não se trata de uma patologia. A Organização das Nações Unidas (2017, p. 2) expõe ainda que:

Crianças e adultos trans são frequentemente diagnosticados como doentes (“patologizados”), com base em sua identidade ou expressão de gênero. Ser trans é parte da rica diversidade da natureza humana. Ser diferente não deve ser compreendido como um transtorno.

Além do supracitado, a ONU esclarece ainda que o diagnóstico da identidade de gênero como doença é uma grave violação dos direitos universais da humanidade.

Outra questão apontada é a necessidade de querer moldar o filho aos padrões sociais ditos corretos. Alzira, em uma de suas falas, afirma que o filho pode voltar uma vez ao ano e trazer consigo a sua esposa e filhos. Contudo, dentro do contexto da trama, Indienne é homossexual e subentende-se que ela tenha se apaixonado pelo filho de Noélia ainda muito jovem e, fica como possibilidade, de que esse deve ter sido o motivo de sua fuga.

Frente a isso, explora-se o tradicionalismo religioso e a heteronormatividade existente, principalmente nas regiões interioranas, bem como a intolerância voltada ao assunto. A questão é que a religião, por vezes, fora usada como instrumento de poder e dominação. Nascimento (2009, p. 121) diz que ‘se compreende o poder como uma relação na qual há um dominante e um dominado, na qual um sujeito pode impor e proibir ações ou práticas a outro sujeito’. Em acréscimo a isso, Rocha (2008) define ainda que:

A religião é uma aposta em algo que não se vê e pode ser considerada a força que faz criar novas opções, mas, por um ato de fé, modifica comportamentos, supera dificuldades de forma inacreditável. Em muitos casos, vira suporte para a vida e a existência. Compõe as experiências vividas que são moldadas pela sociedade e pela cultura. Ela pode ser vista como reforço de normas, impondo controles e formas de viver para homens e mulheres (ROCHA, 2008, p. 103).

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A autora ressalta ainda que a religião vem sendo estudada e pesquisada sempre nos moldes da visão masculina e patriarcal ao longo do tempo, o que remete à simbologias, sistemas e definições moldados a tal visão. ‘O pensamento religioso no Ocidente tem suas raízes na sociedade judaica, que se mescla, a partir do cristianismo, com os valores greco-romanos, formando as bases do imaginário judaico-ocidental-cristão’ (LIMA, 2011, p. 170). Em acréscimo a isso, Sá, Passos e Kalil (2000, p. 119-120) dizem que se deve salientar também ‘o tabu da nudez, o machismo que tem no patriarcado sua legitimação jurídica, a monogamia e indissolubilidade do matrimônio como alicerces da família nuclear’.

Os discursos e práticas teológicas são diversas e se desenvolvem num contexto de disputa pela autoridade de definir verdades e valores. Essas construções são sempre marcadas por questões de poder e as perspectivas que prevalecem excluem um conjunto de experiências e reflexões, que poderiam enriquecer a experiência de fé e a vivência em comunidade. É necessário dizer, portanto, que determinadas perspectivas, [...] sustentadas pela dominação de classe, raça e etnia, assumiram certa hegemonia histórica, e excluíram a perspectiva da diversidade sexual e de gênero [...] que procurou justificar a exclusão da experiência trans (LOPES, 2016).

Em adição ao citado acima, Dias (2017 p. 60) afirma que a todo momento, por parte de alguns grupos/movimentos religiosos, há uma busca pela definição do ‘que é certo e o que é errado e que se empenha em silenciar os novos discursos daqueles que não correspondem à norma e que ameaçam o status quo da heterossexualidade religiosamente legitimada’.

O que se percebe é que os argumentos de certo ou errado, bem como delineadores de condutas socialmente aceitas, tentam legitimar atos para controle social, pautados nos princípios religiosos e nas leis divinas.

Zambrano (2006, p. 125) afirma que a família, em nossa sociedade contemporânea ocidental, ‘é percebida como a mais ‘natural’ das instituições, o núcleo organizador a partir do qual irão estruturar-se e serão transmitidos os valores mais importantes da nossa cultura’.

Dentro da religiosidade patriarcal, percebe-se a questão da honra como força latente desse sistema. A honra, ou valor, diz respeito à conduta imaculada do indivíduo frente às práticas ditas incorretas, ilegítimas. Hobbes (1651, p. 34) define a honra como o ‘valor de um homem, tal como o de todas as outras coisas, é seu preço; isto é, tanto quanto seria dado pelo uso de seu poder, portanto, não absoluto, mas algo que depende da necessidade e julgamento de outrem’.

4. Realização e Desdobramentos do Espetáculo “Avental Todo Sujo de Ovo”

A partir da problemática levantada, caminhos possíveis para sua elucidação é a submissão de um projeto cultural ao Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás e/ou à Lei Goyazes, afim de realizar a montagem do texto enquanto espetáculo teatral e sua circulação regional, nacional ou internacional.

Segundo a Secretaria de Educação, Esporte e Cultura do Estado de Goiás, o Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás, instituído pela Lei n° 15.633, de 30 de março de 2006, e regulamentado pelo Decreto nº 7.610, em 07 de maio de 2012:

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É o principal mecanismo de fomento e difusão da produção cultural do Estado, o que permitiu um grande avanço na política cultural goiana, tornando-a mais democrática e plural [...]. Por meio de editais de seleção pública, lançados anualmente, o Fundo Cultural possibilita que artistas, grupos e coletivos, produtores culturais e prefeituras recebam recursos diretamente do Governo do Estado para realizarem projetos, nas mais diversas linguagens artísticas e áreas culturais (SEDUCE, 2018).

A Lei nº 13.613, mais conhecida como Lei Goyazes, institui o Programa Estadual de Incentivo à Cultura, sendo regulamentada pelo decreto nº 5.362/2001. Possui como pilares princípios que norteiam suas ações, como: Preservar e divulgar o patrimônio cultural, histórico e artístico do Estado; Incentivar e apoiar a produção cultural e artística relevante para o Estado de Goiás; Democratizar o acesso à cultura e o pleno exercício dos direitos culturais, garantindo a diversidade cultural; e, Incentivar e apoiar a formação cultural e artística.

Figura 2. Pilares da Lei Goyazes.

Da mesma forma, possui cinco ações previstas pela Lei n° 13.613, em seu artigo 8° como modalidades de incentivo destinadas ao suporte de projetos, a saber: apoio cultural; crédito cultural; mecenato; benefícios fiscais e participação do Estado [...] consistindo na aplicação de recurso diretamente em projeto cultural aprovado, por empresa contribuinte do ICMS estadual, o que resultar-lhe-á em abatimento no valor devido ao Estado do referido imposto (SEDUCE, 2018).

Com o intuito de elucidar a problemática primeiramente na cidade de Anápolis, será submetido ao Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás, um projeto para a montagem de espetáculo e realização de seis apresentações espalhadas pela cidade e em locais distintos, favorecendo e democratizando o acesso ao bem cultural, bem como rodadas de conversas com o público após cada uma delas, a fim de instigar uma discussão acerca de gênero, religiosidade e o próprio enredo da trama. Visa, também, realizar uma palestra com a advogada e travesti Márcia Rocha, na qual será tratado de um assunto de absoluta relevância à comunidade LGBTQ: o mercado de trabalho e direitos de pessoas transgênero. Nessa palestra, pretende-se convidar profissionais de recrutamento e seleção, recursos humanos e empresários de toda a região e estabelecer um diálogo, estreitando as relações dos mesmos com pessoas LGBTQ’s e favorecer a suas contratações. Assim, espera-se contribuir com a diminuição dos índices locais de prostituição e aumentar a empregabilidade.

Para a Lei Goyazes, já com o espetáculo pronto, será submetido um projeto de circulação pelo interior do Estado de Goiás, levando em consideração cidades que apresentam altos índices de prostituição de pessoas transgênero, bem como cidades pequenas que não têm fácil acesso a produtos culturais. O projeto de circulação terá como objeto apresentações do espetáculo e ações que instigam o pensamento crítico da plateia e também contará com a palestra de Márcia Rocha. Contudo, por causa dos trâmites legais e calendário do Estado, e caso aprovado, tal projeto será realizado somente a partir do primeiro semestre do ano de 2020, pois, irá demandar, além da aprovação e publicação em diário oficial, captação dos recursos financeiros junto às empresas contribuintes com o ICMS.

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5. Reflexões e Considerações Finais

Conclui-se, portanto, que, a partir do estudo e análise da obra teatral “Avental todo sujo de ovo” e material de apoio para fundamentar o trabalho, o processo de conscientização e aceitação social acerca da temática ainda é algo a ser trabalhado arduamente, pois, a religião, bem como outros fatores, podem ser utilizadas para fundamentar e estimular o preconceito, o discurso de ódio e a segregação entre pessoas. Percebeu-se também que a violência contra a população LGBTQ no Brasil é uma triste realidade e precisa ser enfrentada de forma urgente e eficaz. Com isso, sugere-se ações efetivas a fim de buscar diminuir tais índices. Primeiramente, a ação deve partir por parte do governo (federal, estadual e municipal), investindo não somente em campanhas de conscientização da população, mas também em pesquisa e educação e na proposição, regulação/revisão e fiscalização de políticas públicas eficazes e articuladas frente a violências e abusos. Deve-se também investir em segurança pública para a garantia do direito de ir e vir do cidadão transgênero sem medo de não voltar para casa, além de pensar em estratégias que garantam sua inserção ao mercado de trabalho e estudos. Percebe-se que, na realidade, tais investimentos não são necessariamente voltados à população LGBTQ, mas à comunidade em geral, visto que são investimentos mínimos para a qualidade de vida de toda uma sociedade.

A segunda vertente de ação surge a partir da comunidade civil em parceria com instituições de ensino, realizando, por exemplo, debates e palestras em escolas, faculdades, praças etc. sobre gênero, sexualidade e diversidade humana, a fim de diminuir a intolerância e o preconceito dessa geração que está em formação, bem como ações junto à classe artística, tais como: pesquisas, intervenções e espetáculos com a temática, explorando o pensar crítico do público.

Com isso, espera-se que o presente trabalho possa ser subsídio para a realização de estudos mais aprofundados sobre a questão e contribuir também para a melhoria de condições de vida de pessoas transgênero. O trabalho elucida em parte o problema de pesquisa, visto que, para diminuir de fato a intolerância, será preciso um trabalho intensivo a longo prazo.

Referências

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ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, no 12, n. 26, p.123-147, 2006.

Termo inglês usado às vezes para marcar a diferença em relação à palavra ator, considerada muito limitada ao intérprete do teatro falado. O performer, ao contrário, é também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista, ocidental ou oriental, é capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo. O performer realiza sempre uma façanha (uma performance) vocal, gestual ou instrumental, por oposição à interpretação e à representação mimética do papel pelo ator (PAVIS, 1999, p. 284 apud SILVA, 2014, p. 02).

Preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis (JESUS, 2012, p. 16).

Um conjunto de disposições (discursos, valores, práticas) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade ‘natural’ e legítima de expressão (WARNER, 1993 apud JUNQUEIRA, 2015, p. 281).