Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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Movimento Negro no Brasil: história e memória

9ª Webconferência – 29/05/2018

Marisa:

Olá pessoal, boa noite. Todos escutando perfeitamente? Ótimo. Bem, então, vamos dar início à nossa 9º webconferência do 3º Ciclo de Webconferências Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania. É sempre importante reforçar que este terceiro ciclo é um projeto de extensão vinculado à Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania. Realizado em parceria entre o Núcleo de Direitos Humanos da UFG e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza. Hoje, estamos recebendo a professora Maurides, que é do nosso quadro da UFG, inclusive do mestrado interdisciplinar em Direitos Humanos. E a professora Maurides vai nos falar hoje sobre o Movimento Negro no Brasil: história e memória.  Eu gostaria de ressaltar a importância de nós fazermos o link com todas as outras webconferências já ocorridas, porque é possível perceber que nós passamos ou repassamos por diversas áreas do patrimônio, trabalhando as discussões de patrimônio mais relacionadas às questões jurídicas, aos direitos culturais propriamente ditos, mas também trabalhando as discussões sobre interculturalidade, que são muito importantes para se discutir patrimônio. E todas essas discussões, com certeza, vão ser muito úteis não só para os nossos alunos da especialização, que estão nos assistindo constantemente, mas para todos vocês interessados nesses temas. Nas suas práticas diárias, nas suas práticas acadêmicas, e nas suas práticas profissionais. Eu não vou me delongar muito. Só volto a informar que os certificados referentes às dez webconferências serão emitidos em julho, após a última webconferência, que ocorre no dia 3 de julho. Eu passo a palavra para a Professora Maurides, já agradecendo de antemão ela ter aceito tão prontamente nosso convite, porque é um tema que eu considero de extrema importância, pois se nós vamos discutir o patrimônio, temos que pensar na memória e temos que pensar na memória das várias etnias, dos vários grupos que compõem o nosso país.

Maurides:

Boa noite a todos. Estão me ouvindo bem? Ok. Bom, primeiro eu agradeço, Marisa, enormemente o convite. É um privilégio estar aqui falando com vocês hoje, discutindo um pouquinho sobre essa temática que é tão cara para mim, tão importante, para todos nós. Ah, Marisa, obrigada pela confiança depositada em mim. Bom, o nosso tema é Movimento Negro no Brasil: história e memória. E eu vou iniciar falando um pouquinho com vocês sobre memória, depois eu vou falar sobre o movimento negro, volto na memória e faço o fechamento. Então, vou em duas direções: a memória e depois propriamente o Movimento Negro no Brasil.

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Vou fazer a introdução falando do meu contato, do meu convívio com essa temática. Eu dou aula no mestrado em Direitos Humanos aqui, o nosso programa é interdisciplinar. Sou historiadora, sou advogada, então, o meu lugar de fala é da História e do Direito, é com esse olhar que eu vou dialogar com vocês hoje. Eu tenho trabalhado com grupos sobre essa temática aqui no programa. Bom, como historiadora, eu vou estar discutindo a memória e suas relações com a história. E vou focar no uso político do passado destacando o Movimento Negro no Brasil, e os silêncios/ausências dentro da historiografia brasileira, dessa temática, ao mesmo tempo vou tentar mostrar como foi se constituindo a história, a memória desse movimento em nosso país. Então, inicialmente eu coloco aí uma sugestão para vocês discutirem memória, que tá aí no primeiro slide que é o livro do Halbwachs, “Memória Coletiva”. Apenas como uma sugestão se vocês me perguntarem da bibliografia. É um clássico, eu sei que vocês já tiveram uma discussão sobre memória. Mas, está aí uma sugestão para vocês, aí na primeira linha.

Eu inicio fazendo uma reflexão sobre o documento, que é a matéria-prima para nós que trabalharmos a história.  O documento é composto por dois elementos: o suporte e o conteúdo informacional. O suporte pode ser o papel, pode ser a mídia, um computador, o celular, iconografia. E o conteúdo informacional é a informação que vem contida no documento. Desse modo, a memória seja a de “cal e pedra”, que começa lá no mármore branco da Grécia, passando pelo monumento em uma praça, de uma pequena ou de uma grande cidade. Ou, então, a memória oral, aquela que está na lembrança, e fica guardada de geração para geração, se torna documento para o historiador.

Essa memória lembrança é a que Halbwachs estudou, o autor que eu estou sugerindo para vocês trabalharem, e que é parte hoje da minha discussão, do meu debate com vocês.  Halbwachs foi contemporâneo do Durkheim, foi aluno dele, e depois foi colega. Ele partiu de dois estudos. Um do Henri Bergson e outro do Durkheim. O Bergson vai trabalhar a memória hábito, que é a memória lembrança. Ele vai trabalhar esse momento único da vida de uma pessoa, singular, que não é repetido. Mas, ele vai trabalhar a memória sem preocupar em fazer qualquer relação com os grupos sociais e muito menos se tem alguma mudança em relação à releitura do passado. Ele vai perceber a memória como algo congelado e fixo, e como uma conservação do passado inteiro, sem nenhuma modificação.

Já Halbwachs, muda esse olhar, ele vai trabalhar dentro da psicologia social, e vai associar a memória ao inconsciente e à questão dele se opõe à tese central do Bergson. A tese central do Bergson foi provar a espontaneidade e a liberdade da memória. Para o Halbwachs não. Para o Bergson, a memória conserva o passado na sua inteireza. Halbwachs vai dizer que não. Ele vai entender a memória como um fenômeno social. E aí percebe-se a influência do Durkheim em seus estudos. Ele prolongou os estudos do Durkheim, também prolonga os estudos do Bergson. Por isso, aí no slide eu coloquei o Bergson e o Durkheim como os dois suportes, as duas pedras angulares do Halbwachs. E ele desenvolveu, então, uma teoria psicossocial, podemos dizer assim, nos seus estudos sobre a memória. E faz uma relação entre memória e história, principalmente de memória e história pública. E ele fez um estudo que ficou intitulado depois “Os quadros sociais da memória”. Não estudou memória como tal, individualizada, mas estudou um sujeito que tem memória, mas que lembra e que tem memória porque é social, é parte de um grupo. Então, pra ele, a memória de um indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com o grupo social, com a profissão. Enfim, o que ele chama de grupos de convívio e de referências peculiares a cada indivíduo, a cada sujeito. Quando ele faz isso, ele já relativiza um princípio do Bergson, que é aquele que o passado vai conservar a sua inteireza e autonomia. Ele vai dizer que não. Ele disse também que o momento presente, a identidade dos sujeitos no presente, é que vai fazer com que o sujeito tenha a sua memória desencadeada. Então, ele está a todo tempo fazendo uma relação entre memória individual e memória coletiva. Que é o livro que eu sugeri aí pra vocês. É o título do livro dele. A memória coletiva. Justamente por isso. Então, ele vai dizer o seguinte: “Se lembramos é porque os outros nos fazem lembrar e porque a situação presente nos faz lembrar”. Assim, a memória para ele tem uma mediação, do grupo social e da identidade do sujeito no presente. Para ele, um caráter livre e espontâneo da memória não existe. Ele diz que nós, quando lembramos, reconstruímos o passado. Logo, ele vai construir um conceito, dele, que é a “reconstrução do passado”. Ele vai dizer que nós não revivemos quando lembramos. Nós reconstruímos um passado quando lembramos. Vou exemplificar: Você não lê um livro do mesmo modo, aos 20, aos 30, aos 40, aos 50 anos. Cada vez que você ler este mesmo livro, você vai ler ele diferente. O livro não mudou, mas você mudou. Portanto, uma coisa é você ler o Machado de Assis aos 30 anos. A outra é aos 40, a outra é aos 50. Você vai achar, encontrar outro Machado de Assis. Mas o livro não mudou. É você que mudou. E ele diz que quando você trabalha com memória, é do mesmo modo. Pois, você revisita o passado a partir das referências do presente. Ele diz, olha, o simples fato de você lembrar o passado no presente já é antagônico com a ideia de reviver. Você não revive. Você reconstrói.

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Por que que eu estou falando isso? Porque daqui a pouco eu vou falar de movimento negro e eu vou remetê-los a essa introdução que eu fiz agora sobre memória, tá? Então, essa é a ideia inicial. Isso posto, um conceito que eu estou ressaltando aí no próximo slide para vocês é o de memória coletiva, quando Halbwachs amarra a memória da pessoa à memória do grupo, a memória coletiva de cada grupo social de pertencimento do sujeito. E o outro conceito é o que eu já falei, a reconstrução, a releitura do passado, do passado, tá? Assim, vamos ficar com isso aí por agora. E vou falar um pouquinho sobre o movimento negro, mas só uma referência ainda sobre a história e a memória. Quando Halbwachs escreveu “A memória coletiva, os quadros sociais da memória” foi no final do século XIX e início do século XX. Logo, nessa época, tínhamos uma história, em grande parte, numa perspectiva bem positivista. E ele tenta falar da diferença entre história e memória no seu tempo onde a história se apresentava de forma bem positivista. Por isso, para ele a memória tem um movimento, ela é quente, ela existe enquanto o sujeito esta vivo, no tempo presente, tem pessoas que guardam essas memórias e elas podem ser utilizadas para a refacção do passado, por exemplo, por um historiador. E aí eu estou falando da memória lembrança. Não estou falando da memória de cal e pedra, não estou falando dos lugares de memória, como um museu ou um monumento. Estou falando daquela que está na mente das pessoas individuais, ou de um ente coletivo, ou de um grupo. Tanto é que ele fala de quadros sociais da memória. E a história, para ele, era algo esquemático, que se aproximava, muitas vezes, da memória, inclusive escrita. E é interessante que ele diz assim: “A história se assemelha a um cemitério, frio, duro, enrijecido, onde a cada dia há espaço para mais uma sepultura”. E a memória, ela é quente, ela tem um movimento. E ele diz: a história tem um tempo, que é cronológico, onde você divide em fases. No caso a Europa, que é o lugar de fala dele, é antiga, medieval, moderna, contemporânea. Ou no caso do Brasil, esquematicamente, didaticamente, dividindo-se em Colônia, Império, República. Ele vai dizer que a memória não é assim. O tempo da memória, o lugar da memória, é outro. Qual é o tempo da memória? É o tempo em que os fatos têm importância para o grupo. Então, a memória da família talvez tenha um outro marco cronológico, casamento de alguém, a morte de um ente querido. Talvez em um grupo da universidade, tem um outro sentido: a mudança de um reitorado, a mudança de um diretor de departamento, de uma política educacional de governo. Logo, a memória tem um outro tempo e outros suportes cronológicos, diferentes da história. E o espaço da memória é um espaço do grupo social. Ao passo que o espaço da história está associado também a um espaço local que ele chama de externo, que é um espaço geográfico maior. Por exemplo: a história você adjetiva ela a partir do Brasil, então, você está associando a um lugar. E se você adiciona o Brasil Colonial está associando a história ao tempo e espaço externo. O tempo da memória o sujeito faz de um outro modo. Tá bom?

Eu acho que vou ficar por aqui, depois eu retomo. Vou tentar falar agora sobre Movimento Negro no Brasil após essa introdução. Vou pedir um pouquinho de paciência pra vocês, eu deixei aí esse slide, fica para vocês, e vou mudar agora de slides. Qual foi o meu contato com o movimento negro? Como eu trabalhei esse tema? Eu trabalhei ele no Pós-doutorado, quando fiz um estudo comparativo entre o Movimento Negro e o sistema de cotas no Brasil e no Estados Unidos. Foi em 2008 e 2009, aqui na Universidade Federal de Goiás.  O sistema de cotas estava se iniciando. E assim eu fiz um estudo comparado, entre o Movimento Negro no Brasil e nos EUA. Eu acho que no senso comum, muitas vezes, as pessoas falam de Movimento Negro no Brasil e têm como marco cronológico os anos 1980, alguns, anos 1990, outros, as últimas duas décadas que estamos vivendo. Eu acho que esse não é um marco cronológico muito adequado. Eu acredito que o marco cronológico para a história desse movimento é o início mesmo da escravidão no Brasil e a forma como o negro reage às condições mais adversas de escravidão aqui e já no século XVI e XVII, criando os Quilombos. O mais famoso, todos nós sabemos, aqui no Brasil, foi o de Palmares. Eu acho que essa é a primeira forma de resistência, que acompanha todo o período colonial. Olha que eu estou usando uma cronologia política, estou usando uma cronologia da história. No Período Imperial nós tivemos uma Constituição feita dentro dos limites do liberalismo no Brasil, o nosso liberalismo à moda da casa que levou à independência. Nós tivemos uma Constituição em 1824, todos nós sabemos, com o poder moderador, e nós tivemos também um direito oitocentista no Brasil envergonhado, principalmente o Direito Civil. Eu vou destacar as leis abolicionistas que vieram “a conta gotas”, sob a égide da economia mundial, orquestrada pela Inglaterra no Brasil a partir de 1850, gestada pelos interesses da economia cafeeira. Dentro desse cenário, nós tivemos leis abolicionistas em drops, “a conta gotas”, que permitiram estender a escravidão no País até 1888. Assim, nós tivemos a Lei Euzébio de Queiroz, em 1850, A Lei do Ventre Livre, em 1871, dos Sexagenários, em 1885, e somente em 1888, a Lei Áurea. Várias nações do mundo, inclusive na América Latina, começaram a fazer suas independências, suas Constituições, elaborar seus códigos, inclusive seus códigos civis antes do Brasil. Nosso país foi um dos últimos a fazer isso. Mas nós tivemos projetos de código civil em plena escravidão. Um primeiro projeto, em 1860, que é o Teixeira de Freitas. Outro em 1872, de autoria do Senador Nabuco de Araújo. Em 1881, o de Felício dos Santos e, em 1890, o de Coelho Rodrigues. Finalmente, em 1899, o do Clóvis de Beviláqua, que foi aprovado, e nós sabemos muito bem, só entrou em vigor em 1916, não é? Pois é, esses projetos de legislação, para muitos, não evoluíram por vários motivos e aqui cito um: como falar em direitos civis, liberdades individuais em um país onde e quando alguns seres humanos tinham status de bens, de coisa? No Código Civil está muito clara a diferença entre pessoa, coisa, bem. O que era o negro no Brasil no século XIX? Era um bem semovente, era mercadoria, ele não era pessoa. E no Código Civil, ainda mais o nosso que foi inspirado naquele debate do século XIX no Código Civil Alemão, pessoa e bem são diferentes. E como discutir isso num Brasil escravocrata onde e quando se tem todos os limites do liberalismo? Onde estava se falando no pensamento liberal de cidadania, de liberdade, e ainda tinha escravidão? E estava se discutindo o Código Civil? Eu acho que foi vergonhoso mesmo.

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A Primeira República foi proclamada um ano após a Abolição da Escravidão. Mas e o Movimento Negro, objeto dessa discussão hoje aqui nessa sala? Nós tivemos Movimento Negro no Império e na Primeira República. Agora, o curioso é que ainda não são muito estudados os períodos anteriores à década de 1980. Hoje de manhã, uma pessoa conversou comigo da rádio universitária e ela disse: olha, mas quando começa o movimento negro? Eu respondi: olha, a resistência, eu tenho como marco o quilombo, mas nós tivemos durante o Império, tivemos durante a Primeira República. Ela: como assim? Bem, no Movimento Negro, a Primeira República é conhecida como a Era da Imprensa. Eu listei aí para vocês vários jornais ligados ao movimento negro no Império e na Primeira República, que na história, só recentemente são visibilizados ou são discutidos. E eu começo com o primeiro jornal negro, de 1833, o “Homem de Cor”. É o primeiro jornal que luta contra o racismo no Brasil, estou falando de um período anterior à abolição da escravatura. Outro ainda do período Imperial, em 1888, ano da abolição da escravatura, o “Treze de Maio”. Em 1892, “O Exemplo”. Em 1899, “A Pátria”. Em 1902, o “Clube 13 de Maio”. E aí vai até 1829, “O Quilombo”. Não vou listar todos na minha fala, mas como vocês podem ver aí nos slides foram vários. Então, esse período da Primeira República, para quem trabalha a história do Movimento Negro 1889 até 1937, é conhecido como a primeira fase. O que é a primeira fase? Conhecida como Era da Imprensa e vai da Primeira República até o final da década de 1930. Depois, a partir do final da década de 1930, na Era Vargas, o Movimento Negro se organizou mais e foi tomando corpo. Com efeito, o marco mais importante foi a criação, em 1931, da Frente Negra Brasileira. A Frente Negra Brasileira vai se transformar em partido político depois, já no final da década de 1930. Um pouquinho antes do golpe do Getúlio Vargas em 1937. Portanto, ela se torna um partido político em 1936. Partido da Frente Negra Brasileira. Então, às vezes discutimos muito a Primeira República e depois a Era Vargas, sem visibilizar esse movimento negro. Assim, a história, por muito tempo, silenciou isso. Porém, nos últimos 20 anos, são muitos os estudos que fazem esse resgate. E eu gostaria de dar um destaque interessante, que a década de 1930 no Brasil não é marcada só por um movimento negro, mas por estudos acadêmicos. Eu acho que poderíamos trabalhar isso, de um lado, o movimento negro, do outro o debate acadêmico. Em termos de academia, de discussão teórica no Brasil, a década de 1930 é marcada, sobretudo, pelos estudos do Gilberto Freire, que é autor do livro famoso “Casa Grande e Senzala”, que cria no Brasil um mito das 3 raças e da igualdade racial.

E em pleno país da igualdade racial, é criado um partido da Frente Negra Brasileira. Por que você tem um partido da Frente Negra Brasileira, se você vive em um paraíso da igualdade racial? A contradição está posta, está colocada, logo, é uma reflexão interessante para fazer. Nós tivemos, em 1932, a Frente Negra Socialista do Brasil e várias outras associações, uniões. Eu coloquei aí pra vocês nesse slide só para exemplo e para refletirmos um pouquinho.

Quando chega-se a ditadura de Vargas, em 1937, a Frente Negra Brasileira não vai ter candidatos, porque não só esse partido, como todos os outros, são extintos. A ditadura de Vargas talvez foi pior que a militar, que tinha bipartidarismo, a do Vargas não tinha partido nenhum. Mas com a queda do Vargas, em 1945, e a reabertura política em 1946, há uma reorganização dos movimentos sociais e do movimento negro. Veja só, eu coloquei de 1945 a 1960, fui colocando para vocês vários eventos apenas para exemplificar a mobilização do movimento. Em 1945 mesmo tem a Convenção do Negro Brasileiro. Vários jornais são criados, a Frente Negra Brasileira volta ao cenário. Em 1948, é criada, no Brasil, a Frente Negra Trabalhista, não é? Vamos lembrar que foi criado o Partido Trabalhista no Brasil nessa ocasião, então, tá ali, articulado. E o que eu acho interessante destacar na década de 1950 são dois aspectos importantes: primeiro, o debate acadêmico, segundo o ativismo político do Movimento Negro. É justamente na década de 1950 que os estudos, principalmente de Florestan Fernandes e outros estudiosos da escola paulista, contestam o livro e a obra de Gilberto Freire. Essa contestação, no entanto, vai numa direção, num vento de um pensamento de esquerda, e acaba desfocando o eixo do racial para o social. Um deslocamento da discussão racial para os problemas sociais, em que argumentavam que não havia realmente um paraíso de igualdade racial como Gilberto Freire coloca no livro dele, mas, o nosso principal problema era social, tá? Agora, ao mesmo tempo que há esse debate na academia, a prática, a luta do movimento negro, está presente e vai mostrando todas as contradições desses discursos no Brasil. Primeiro, eu estou dizendo que é criado a Frente Negra, a Frente Trabalhista Brasileira, a Frente Negra Trabalhista Brasileira. A antiga Frente Negra volta à legalidade e, curioso, em 1951 nós temos a primeira lei antirracismo no Brasil. Porque você tem uma lei antirracismo? Por que o racismo existe. Por que senão, você não precisa de uma lei antirracismo.

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Então, não é a Lei Caó, não são os anos 1980, não são os anos 1990 os marcos do nascimento do Movimento Negro e o nascimento da primeira Lei de combate ao racismo no Brasil. Assim, quando você vai falar de legislação e de lei antirracismo, você tem que voltar ao ano de 1951. Esse é o marco inicial da legislação no Brasil, o que, claramente, vai mostrar para nós que havia sim racismo no nosso país. Não é? Logo, é a primeira lei que criminaliza o racismo no Brasil. É a Lei n.º 1.390, de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos. Bom, as décadas de 1950 e 1960 são marcadas pelo ativismo do movimento negro e também por uma discussão acadêmica. E a década de 1960? Nós temos um marco aí, que foi a Ditadura Militar, não é? O golpe de 1964, onde todos os movimentos sociais vão sofrer repressão, e o Movimento Negro também. Em 1969, inclusive, o presidente Médici vai proibir qualquer jornal de comentários sobre racismo no Brasil. Eu coloquei para vocês os arquivos da Fundação Getúlio Vargas, vocês têm um material vasto sobre isso.

E a década de 1970? Do mesmo modo que a anterior foi um período muito difícil para todos os movimentos sociais e também para o movimento negro. Mas, mesmo assim, é bom estar destacando, que foi possível perceber, talvez ao longe, o som do batuque, e da reação ao movimento. Em 1971 foi criado o Grupo Palmares, em 1972 um grupo de artistas e de estudantes formaram o grupo Centro de Cultura e Arte Negra, CECAN. Nós temos em 1974 vários jornais que circulam, não vão trazer em seu texto explicitamente, até porque o Médici já tinha proibido isso, textos antirracismo, mas tem estudos que tratam da questão do negro no Brasil. Em 1974 foi criado o Bloco Afro Ilê Aiyê. Aí eu fiz uma relação para vocês.

Mas o que marcou a década de 1970, de forma importante para o Movimento Negro, foi o ano de 1977, quando foi criado o Movimento Negro Unificado, no bojo de todos aqueles movimentos contra a ditadura, liderado pelos sindicatos em 1977, naquele movimento lá no Anhangabaú em São Paulo. Fazendo parte de todo aquele movimento, estão também os militantes ativistas do movimento negro que criam nesse mesmo ano de 1977 o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial no Brasil. Aí volta a imprensa do Movimento Negro, e eu coloquei uma relação grande de jornais, de periódicos, para você desse período, de 1979 até 1980, são vários.

Bom... já que falei de fases lá atrás, então, outra fase de 1978 a 2000, o Movimento Negro entra em  uma terceira fase. O que marcou esse período de 1978 a 2000? A reconstrução do movimento negro e a atuação forte do Movimento Negro Unificado. E em 1984, no governo Montoro, em São Paulo, se abriu espaço para participação dos negros. Isso talvez tenha possibilitado a abertura para atuação efetiva do movimento negro na Constituinte de 1988. Em 1988 não só foi promulgada uma nova Constituição, exatamente quando se celebra os 100 anos da abolição da escravatura. E no artigo 5º da Constituição, vamos ver contempladas várias reivindicações do movimento negro no Brasil. A Constituição de 1988 e a atuação do movimento negro abriram espaço para várias outras leis, para uma legislação que vai tratar do direito de igualdade racial no Brasil. São várias, como a Lei n.º 7.668, que eu dou destaque, a n.º 7.716, que é conhecida como a Lei Caó. Em 1997, a Lei Caó ganha um outro artigo, com a Lei n.º 9.459, que vai falar do crime de injúria real, no caso de utilização de elementos referidos à raça, cor, etnia, religião, origem, uma pena de 3 anos de reclusão. E, em 1997, também a Lei n.º 9.455. Em 1995, aconteceu o Encontro de Comunidades Negras Rurais e Quilombolas. E, daí pra frente nós vamos tendo outras conquistas, mas eu vou para um outro marco, que seria uma quarta fase. Para muitos que estudam essa temática, nós estamos em uma quarta fase, que é de 2000 para cá. O que marcou esse período? Acho que o marco desse período é a preparação para a Conferência de Durban na África do Sul e, depois, a participação do Brasil nessa Conferência Mundial contra o Racismo (WCAR). O resultado mais direto disso são as ações afirmativas no Brasil. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi a pioneira nas ações afirmativas. Depois nós vamos ter uma legislação, e, ao longo de todo esse processo, a abertura de vários núcleos de estudos em todo o Brasil. Eu listei alguns aí para vocês e as universidades que foram criando as cotas. Cotas não só para negros, mas para indígenas, para escola pública, mas presente aí o protagonismo do movimento negro, na luta por essas cotas nas universidades públicas no Brasil. E claro, no bojo de toda essa luta, o Estatuto da Igualdade Racial, e uma série de outras leis que vêm a partir daí. Além disso, a Conferência levou também a discussões de debates que culminaram com aprovação de novas leis antirracismo. Destaco para vocês a Lei n.º10.639/03 que propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da história e cultura afro-brasileira eafricana, inclusive, a obrigatoriedade do ensino de história da África nas escolas.

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E eu volto ao nosso tema inicial, que é a História, a Memória e o Movimento Negro. Eu penso que durante muito tempo no estudo da história do Brasil esse movimento, como eu disse antes e vou reafirmar, ficou silenciado. Nós temos hoje o estudo da África, seja nos cursos de história seja no ensino fundamental e médio, mas é recente. Nós tivemos uma história eurocêntrica, com cânones acadêmicos voltados e baseados nos cânones acadêmicos europeus. Não se tem trabalhado muito nas escolas e universidades brasileiras com uma perspectiva intercultural ou mesmo multiculturalismo. Logo, estudar negro, indígena na nossa escola, é recente. E aí, vou falar de uma memória silenciada, de uma história que silencia um grupo, ou grupos. Quando nós falamos de memória, nós vamos falar de eleger determinados conteúdos, determinados grupos, que vão construir seus monumentos, suas histórias, que vai afirmar um grupo em detrimento do outro. Eu penso que negros e indígenas tiveram uma história silenciada durante muitos anos no Brasil. E isso é fácil de verificar. E nessa noite estou tentando argumentar justamente para mostrar isso. Veja quem estudou história até a década de 1990. Eu sou graduada em história, me formei em 1983. Eu não estudei história da África. Eu não estudei Movimento Negro no Brasil. Estudei muito pouco os indígenas também. E isso não é um acaso, isso é sintomático. Isso não é uma ausência de política. A ausência de política já é uma política. Então, hoje eu penso que houve e ainda está sendo feito um resgate histórico desses grupos, seja dos negros seja dos indígenas no Brasil. E muitos estão sendo escritos com base na memória. É um caminho longo a percorrer. Fazer a escritura da história desses grupos, a história do Movimento Negro, resgatando a história do negro no Brasil. E eu agora vou abrir espaço para o debate, já estou vendo vários textos escritos ali, e vamos discutindo então.

A Taísa... é... vamos ver. A Simone Sales. “Meu avô era negro, meu bisavô também, nossas raízes são negras com certeza.” Aí a Simone ainda responde: “Porém, penso que ainda carecemos de muito trabalho no aspecto no ambiente escolar, apesar do avanço que já tivemos”. Sim, eu concordo. 

Marisa:

Bem, gente, vamos abrindo para as pessoas fazerem seus comentários, fazerem perguntas, mas eu queria começar. A Maurinha falou de memória e falou de invisibilidade. E quando tratamos a questão do negro percebemos essa invisibilidade, porém, ao mesmo tempo, a manutenção da existência de diversos movimentos que a Maurinha apresentou aqui pra gente. Então, eu gostaria que ela fizesse um link com essa invisibilidade; como isso também se processa na construção do nosso patrimônio? Como podemos pensar os patrimônios culturais brasileiros nessa perspectiva da invisibilização?

Maurides:

Bom, ótimo porque aí vai puxando, vai dando uma centralidade na nossa discussão, Marisa. Eu fico pensando a minha cidade, Goiânia. Pois é, Goiânia tem uma estátua de 1942 do Bandeirante. Bandeirante, imagina. E é um estado que começou com a mineração, com o trabalho escravo e já existiam várias etnias indígenas aqui. E o monumento mais importante quando Goiânia começou a ser construída foi do colonizador. E assim, eu fico pensando, nossa, vamos pensar aqui no outro monumento, qual o monumento do negro e do indígena em Goiânia da década de 1940? Ah tá, tem um monumento das três raças na praça cívica, que é de 1968. E claro que o monumento e outros lugares de memória são forma de reforçar a história de um grupo. E, é para isso que ele serve. Não é?  Eu vou pensando no que é patrimônio, o que nós temos resgatado. Hoje eu estou vendo dissertações, teses, pesquisas e estudos que estão tratando dos quilombolas, dos indígenas. Aqui, no Jalapão, em vários lugares, seja no Tocantins, seja em Goiás, seja em outros estados. Aqui na UFG, e em várias outras universidades, os alunos que vêm também para a nossa instituição e que, de um modo ou de outro, tentam resgatar uma memória, construir uma história, patrimonializar, trazendo uma outra imagem, trazendo um outro valor. Que outro valor? Valorizando um patrimônio que é de um grupo marginalizado. Porque assim como a história, assim como a memória, nós vamos ter um patrimônio que registrou, e que foi registando valores e canonizando aquilo que era muito de uma cultura branca eurocêntrica no Brasil. E muito pouco da cultura indígena, da cultura negra.

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Eu estou convidando para participar do nosso debate o professor Antônio Carrillo, que é da Universidade Autônoma do México, e ele está aqui participando com a gente e também o Mayos, que é doutorando do México, que é indígena Maia. Estou apresentando os dois para vocês.

Comentários e perguntas:

A Stefany está dizendo: “acredita que já trabalhei com uma coordenadora que não me permitiu trabalhar o dia da consciência negra, alegando que não tem dia da consciência branca”. A Rosana Freitas comenta: “Acho que é um compromisso que nós professores devemos firmar.” E a outra colega pergunta se as cotas favoreceram o negro.

Resposta: Olha... eu sou a favor das cotas e vou responder para você o seguinte. Eu aposentei esse ano na universidade. Eu dei aula 28 anos na Universidade Federal de Goiás. Fui ter alunos negros recentemente. O primeiro aluno indígena que eu tive foi há 4 anos atrás. Eu não tinha alunos negros ou alunos indígenas na minha sala de aula antes. Um ou outro pardo eu tive. Mas aluno negro mesmo eu não tive não. Então, eu acredito que sim, eu acho que nós podemos partir do princípio que nós temos uma perda acumulada de 3 séculos, ou mais. A nossa escola já nasceu excludente. A escola no Brasil foi tardia, a educação escolar foi tardia. Nós tivemos um período com os Jesuítas, que vai até 1759, eles foram expulsos, mas já faziam uma educação escolar excludente. Após a expulsão dos Jesuítas, a educação se reconstituiu só em 1808, mas continuou sendo uma educação para brancos, e para uma minoria de brancos, porque nem todos os brancos também estavam na escola. E no bojo de tudo isso, menos ainda os negros ou os indígenas. E tem vários estudos e estatísticas de que os negros não estavam na escola, mas eu nem usei aqui o argumento da estatística. Usei da minha própria experiência, como uma professora em uma universidade pública e federal por 28 anos. Eu praticamente não tive alunos negros. Eu fui ter alunos negros nos últimos 10 anos, e indígena, como eu disse, nos últimos 4 anos, porque mesmo com a abertura para as cotas eu não tive. Não sei se eu te respondi.

Pergunta: “O que você acha que falta na realidade negra para ser mais valorizada e conscientizada na mente e no social dos brasileiros?”

Resposta: Eu acho que é o que está sendo feito hoje. Eu acho que não está sendo silenciado mais. Às vezes, as pessoas reagem com uma certa perplexidade, como a sua coordenadora falou, não há dia do negro, porque não há dia do branco. Mas é porque antes não havia nada. E as mudanças chocam mesmo. Antes, havia uma história do branco, e não havia do negro, muito menos do indígena. O indígena vivia nas memórias só para ser lembrado no dia do índio. Não raro, com uma veste de índio da América do Norte. Bom, mas sobre cotas, deixa eu te falar... a primeira cota na Universidade Federal de Goiás, o primeiro sistema de cotas foi 1968. Sabe cotas para quê? Para os filhos de fazendeiros fazerem veterinária e agronomia. E não houve nenhum movimento contra. Tudo bem, que era Ditadura Militar, e ninguém podia falar nada sobre isso. Essas cotas ficaram até recentemente. Por que a cota para negro e para indígena, e para aluno de escola pública levanta tantas paixões, heim? Isso que é curioso, e mais, quando começaram as leis falando de cotas, e quando se começou a discutir cotas, também inclusive no serviço público, isso, eu acho que chocou mais do que quando se criminalizou o racismo no Brasil. E aí eu vou falar para alguns colegas advogados, inclusive tem um aqui. Enquanto criminalizou, e você tem uma dificuldade de ter efetividade da norma jurídica no Brasil, não chocou muito. Mas quando tirou uma vaga do filho da classe média alta, porque era ele que estava nas universidades federais, chocou, porque aí mexeu com o patrimônio, mexeu com o dinheiro. Aí choca. Você sai de uma esfera criminal e você vai para uma outra esfera, uma outra perspectiva. E você vai falar de uma compensação, e ela é sempre monetária. Por quê? Porque a cota pressupõe compensação e reparação. Mas o que nós estamos compensando e reparando com as cotas? Uma perda acumulada de mais de três séculos em que os negros e indígenas estiveram fora da escola. E esse princípio é o mesmo para o aluno da escola pública, que estava fora da universidade. E aí eu desafio qualquer um me dizer que ele não estava fora da universidade há mais de três séculos. Eu acho que democratizou sim. Hoje eu os vejo aqui na minha universidade. E eu acho que é uma forma de democratizar, e tem que democratizar, porque isso aqui é uma universidade pública gratuita. Então, seria um desfavor à sociedade se ela não abrisse as portas para esses grupos que estiveram fora dos muros da universidade sim, por tantos anos.

Marisa:

Bem, tem uma questão aqui: Ela pergunta se a memória indígena foi ainda menos valorizada? Se os indígenas não buscaram seu lugar na memória ou a sua memória foi mais silenciada ainda que o negro no Brasil?

Página 137

Maurides:

Sim, eu acho que foi bastante silenciada. As duas, não é? Eu acho que as duas memórias foram silenciadas igualmente. Agora, eu acho que o Movimento Negro se organizou de uma forma mais racional. Não é?... Eu não sei se mais racional é a expressão correta, mas, eles são mais politicamente organizados que os indígenas. Eles antecederam a organização política do indígena a partir da década de 1980, pelo menos eu vejo assim. Eu queria voltar numa pergunta. Ela me diz assim: “Olha, eu trabalho em uma comunidade quilombola e eu queria que você falasse um pouco mais do distanciamento da memória com a historiografia, quando se refere ao silenciamento do negro”. Olha, primeiro, trabalhar com memória já foi durante muito tempo, um tabu para o historiador. Por isso, quando eu voltei, a primeira coisa que eu fiz foi falar de documento. Porque documento é composto de suporte e de conteúdo informacional. Então, quando você trabalha com a memória, para fazer história, você está trabalhando com outro suporte, que é oralidade, que não é o documento escrito tradicional. Isso já gerou, durante muito tempo, um preconceito, porque esse tipo de fonte para trabalhar história, que é a memória, é muito utilizada para você trabalhar história do tempo presente ou a história mais recente, porque a memória, como os estudos mostram, tem também uma longevidade. Depois ela vai se perdendo. O que acontece? Já havia uma reação à utilização da memória lembrança, da memória e da tradição oral para se trabalhar com história. E tanto no caso do negro quanto do indígena, e dos quilombolas principalmente, são sociedades tradicionais onde você tem os guardiões da tradição, que são os dizedores do passado, dizedores da tradição, os dizedores do direito. Principalmente até em povos Ágrafos, essa memória vai passando de geração para geração. Assim, quando você vai trabalhar com esses povos, com os negros ou com os indígenas, se recorre muito à memória para a escritura do texto histórico. Eu acho que no Brasil, durante longo tempo, a historiografia teve uma certa resistência ao utilizar esse tipo de fonte. Não é assim atualmente. Eu acho que nos últimos 30 anos isso tem mudado no Brasil. A primeira associação de história oral no Brasil, ela foi criada, ela começou a ser discutida no congresso  “América 92”, em 1992. Depois em 1993 teve o encontro na Universidade de São Paulo (USP). E em 1994, 95, de fato, começou uma articulação e criaram, então, uma associação. Aí vários textos foram escritos, acho que a Fundação Getúlio Vargas (FGV) teve um importante papel nisso também, a USP, a PUC-SP, a Unicamp, várias universidades brasileiras. A UFG esteve presente por Goiás. São inúmeras as instituições que participaram do debate, Universidade Federal da Bahia. Enfim, foi criada uma associação e vários estudiosos foram escrevendo sobre isso e fazendo suas dissertações, suas teses, suas pesquisas a partir daí. Logo, houve, eu acho, que a quebra um pouco desse ranço e dessa resistência para se trabalhar com a memória para fazer a história. Isso tudo coincidiu, não é, como eu disse, com o amadurecimento do movimento negro, do debate também sobre a participação indígena, junto com essa nova ferramenta para se escrever a história, que é utilizando a oralidade e a memória. Então, houve sim uma resistência, mas eu penso que hoje não se utiliza mais. Eu acredito que são fatores combinados não é, uma quebra de silenciamento que veio sim. E penso que trabalhar com memória, com oralidade é muito importante para fazer uma produção. A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros é um espaço super importante hoje para a produção acadêmica. Mas assim, tanto a história indígena, e eu concordo, quanto a história dos negros, ainda há muito a ser feito, e há uma resistência sim para se trabalhar com essa fonte, né, que é a história oral. Hoje estamos aqui com outro suporte. Quando você recorre à oralidade, você mudou do suporte papel, mas o conteúdo informacional está ali, e a subjetividade presente numa entrevista, numa documentação oral, é uma subjetividade que está presente em um documento escrito. Se eu vou usar um censo, como que esse censo foi elaborado? Elaborado a partir de um funcionário do IBGE, que chegou lá e fez uma entrevista com um morador de uma casa, não é. Passou pela oralidade, esse senso não tem mais autenticidade que um documento oral. Toda discussão que o historiador faz da crítica ao documento, seja oral ou seja escrita, é pertinente. Então, em qualquer um dos dois documentos, ela será feita.

Página 138

Marisa:

A gente foi buscando as questões anteriores, porque vieram várias de uma só vez. Aqui tem a Marilene e o Josias, ambas acabam se completando. A Marilene pergunta assim: “Você não acha que a cota acaba deixando o negro desvalorizado? Porque ele acaba escutando ‘você só passou por causa da cota’, não é? O que seria um desrespeito. Aí o Josias completa que, no ponto de vista dele, as cotas acabam aumentando o preconceito contra o próprio negro. Então, assim, na sua perspectiva não é.

Maurides:

Bom, nós temos estudos sobre isso, tem um que foi feito na Universidade de Brasília (UnB), e nós fizemos um aqui, eu participei. Nós pegamos a disciplina cálculo, na Engenharia, a anatomia, na Medicina, e a teoria do Processo, no curso de Direito. Por que esses três cursos? São tidos como os cursos da elite. Na UFG nós não vimos muita diferença. Aliás, acho que de um décimo, acho que na Medicina, três décimos no Direito. E na disciplina cálculo, nós nem constatamos diferença entre as notas dos alunos cotistas e do vestibular universal, e dos não cotistas. O que, por si só, desmente esse argumento. E eu volto a ressaltar, interessante que não houve esse debate quando as cotas foram para os filhos dos fazendeiros para o curso de Agronomia e Veterinária. Por que tanta paixão agora? É uma questão. Já pode fazer.

Marisa:

Uma questão anterior aqui, a da Amanda. O que vocês pensam sobre a falta de escolas quilombolas e o trabalho das escolas regulares que atendem alunos oriundos dessas comunidades? Qual o espaço para as memórias quilombolas?

Maurides:

Eu acho que é um espaço que vai sendo conquistado, pouco a pouco. Daí a importância do protagonismo, do movimento, dos professores, de historiadores, antropólogos, linguistas, sociólogos, que vão produzindo e usando materiais didáticos a partir dessas memórias. Nós temos aqui, não só do negro quanto do indígena. Nós temos aqui na UFG um curso de licenciatura intercultural indígena que é pensado por professores que vão para as aldeias. A defesa do TCC tem a participação de um sábio local, quer dizer, são formas de você pensar a interculturalidade mesmo, respeitando a cultura do outro. Então, eu penso que a partir do princípio do respeito à cultura negra, do respeito à cultura indígena, e a partir daí, você fabricar o material didático. Tem sido um passo importante para estar democratizando inclusive o material didático para ser utilizado, pra gente sair de uma centralidade da cultura branca europeia e tentar trabalhar de uma forma multifacetada, com uma policromia. Não é?

Marisa:

De certa maneira, você entrou na questão aqui da Tatiane. Ela pergunta: “Professora, os quilombolas não se reconhecem nas historiografias. Isso é muito desafiador, pois a história não quer trabalhar com a memória, mas os protagonistas da história não se reconhecem nas historiografias. O que fazer diante disso, como produzir materiais didáticos sobre quilombos diante desse impasse?”

Maurides:

Eu penso que é aquilo que eu falei agora. Temos que refletir sobre os nossos cânones acadêmicos, sobre a forma que nós trabalhamos na academia. Nós estamos falando de historiografia, de trabalhar com memória, mas nós nos baseamos ainda nas regras, nos cânones acadêmicos europeus na nossa academia. Eu penso que uma experiência importante é essa que eu acabei de relatar, da licenciatura intercultural onde se trabalha com temas da comunidade, onde em cada TCC você tem na participação na banca do TCC um sábio local, que trabalha outros cânones, outros valores, outra perspectiva, que é a da comunidade. Eu acho que, às vezes, eles não se reconhecem mesmo, porque os cânones que nós utilizamos ainda na nossa academia são eurocêntricos. A nossa academia ainda é assim. A nossa universidade. Eu acho que esse é um grande desafio a ser trabalhado.

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Marisa:

Tem um convite aqui ao professor Carrillo. Na medida do possível, não é? Tem uma das pessoas que pede aqui se o professor Carrillo poderia fazer uma comparação entre as comunidades negras apagadas ou que tentam apagar na história mexicana, na população Oaxaca, por exemplo, e a sua percepção sobre essa questão no Brasil. Aí ele continua. “O México teve um presidente negro, Vicente Guerreiro. Como esse personagem é visto ou percebido pelos jovens que entram na universidade ou na academia geral, no México?”

Quer aproveitar para se apresentar? Se você quiser fazer algum comentário.

Carrillo:

Para mi es una sorpresa...yo no venía a participar, pero es una muy buena pregunta. Siento que el movimiento negro en México és...esta mucho mas silenciado que aquí porque hay menos población, entonces yo siento que eso és una situación de diferencia ...de un país y el otro, no? Sin embargo, el movimiento indígena está visible. Ellos preguntan de un presidente famoso que fue Bento Juárez y que tuvo una proyección fuerte. Sin embargo, su cuestionamiento ha sido...bueno su cuestionamento sino, su postura ha sido en cierta medida muy importante, muy valioso, pero no defendió mucho el movimiento indígena. Eso fue una contradicción muy fuerte hacia allá. Sin embargo, yo estoy de acuerdo que hoy están transformandose...hay cosas sobre... hay cambios y transformaciones muy favorables hacia una apertura más intercultural y creo que movimientos como de Sudafrica, movimientos como ahora en Estados Unidos que estan haciendo una situación de una mayor apertura, no? Y ahora el compromiso es como lograr que esto tenga mayores transcendencias, no? Y creo que esos espasos ... esta forma de dialogar y es una forma de hacer visibles una problematica que ha venido silenciandose y que México, pues si tiene movimiento negro hay sido una situación muy complicada, pero apenas hay allá un centro de investigación sobre movimientos negros...hay este ... hace dos años se hizo un dia nacional sobre...que nosotros llamamos este...movimiento...este...afromexicano que ya nos explicaron que tiene dos conmutaciones, sin embargo viene a tener esa fuerza, no? Y ese respeto hacia la diferencia. Eso es lo que puedo comentar.

Marisa:

Gracias, professor Carrillo.

Maurides:

Tem uma pergunta que eu gostaria de responder. A pessoa diz: “Olha, eu vejo a história oral e a memória como utilizadas por grupos marginalizados”.

Resposta: Olha, eu tenho que discordar de você um pouquinho. A história oral quando ela surge, a primeira forma de uso da memória foi feita nos Estados Unidos, ela começa para reconstituição da elite política dos Estados Unidos. Aqui no Brasil ela começou com um projeto da Fundação Getúlio Vargas para reconstituir a história das elites do Governo Vargas. Elites políticas! Então, não é a fonte que determina o historiador que você é. É o historiador que você é que determina como você vai usar a fonte. Assim, como foi essa passagem do uso da memória da história oral para se trabalhar com outros objetos da história, para trabalhar com grupos marginalizados. Logo, no mundo, de um modo geral, isso se dá, sobretudo, a partir da década de 1960 e de 1970. Quando se vai reconstituir a história do Vietnã, a história do Movimento Negro nos Estados Unidos, a história do feminismo nos Estados Unidos. Então, você tem um grupo de historiadores que se consideram, se intitulam militantes engajados, que passam a trabalhar com esse tipo de história. Outro grupo importante é na Academia Inglesa, nas universidades inglesas, onde grande parte da New Left, da nova esquerda inglesa, eles vão utilizar essa fonte para trabalhar a história do Movimento Operário Inglês. Enquanto você tem o florescimento do movimento negro nos Estados Unidos, o florescimento da história oral nos Estados Unidos na década de 1960 e de 1970, no Brasil nós vivemos a ditadura militar. Portanto, e é justamente na década de 1970, com a FGV, que a história oral vem para o Brasil, mas ela vem filtrada. Ela vai, a partir da década de 1980, sendo trabalhada, mas não com um debate acadêmico sistematizado. Eram dissertações, teses, feitas nas academias, nos mestrados, nos doutorados de História, onde se trabalhavam com essa documentação oral, mas não havia debates mais sistemáticos, mais consistentes. O debate mais sistemático, mais consistente era uma técnica, uma metodologia, a teoria da memória, o que poderia sustentar uma discussão na historiografia com o uso dessa documentação. Ela veio a partir da criação da Associação Nacional de História Oral, no início a década de 1990. Como eu disse, o marco é o primeiro encontro, em 1992. Na verdade é um encontro dentro do Encontro América 92 na USP, depois os encontros de 93, 94, 95, depois o encontro da FGV, aí é criada uma Associação Nacional de História Oral. São convidados para participar desse debate a Mercedes Vilanova, o Philippe Joutard. O Paul Thompson veio ao Brasil antes desse evento. Paul Thompson que escreveu “A voz do passado”. Ele veio ao Brasil, salvo melhor juízo em 1993, depois o Alessandro Portelli, o Alistair Thompson vem na década de 1950. E eles fazem toda uma discussão de memória. E assim, constantemente, vão tendo os congressos. Então, ela passa a ser discutida na historiografia, e passa a ser bastante utilizada como uma fonte para os historiadores, que também trabalham uma história que nós chamamos de mais engajada e que acaba trabalhando com grupos marginalizados. Mas, assim, só para lembrar, ela não é só uma fonte desses grupos. Aliás, ela não nasceu como uma fonte desses grupos. É como eu disse anteriormente: não é a fonte que vai determinar o historiador, que faz a história. É o tipo de historiador que vai utilizar a fonte. Por isso, o historiador pode utilizar ela de uma forma muito tradicional ou conservadora. É o suporte que mudou. Agora é um suporte muito rico para quem não tem letramento, não domina a escrita. Portanto, ele é um suporte muito importante para quem trabalha com grupos marginalizados, não tiveram oportunidade de deixar registros escritos oficiais na sua própria história; se você trabalha com povos tradicionais ágrafos, ou povos que não tiveram oportunidade de ter acesso a uma educação de qualidade, a uma universidade, não tiveram oportunidade de deixar registros escritos. Eu diria que não tiveram acesso ao letramento no Brasil. Se você usa a história oral e ouve e dá voz, eu não gosto é dessa expressão “dar voz”, mas acho que aqui ela vai ser apropriada. Dar voz a excluídos, dar voz à marginalizados, que não tiveram voz antes, que não deixaram esses documentos escritos antes, sem dúvida nenhuma, é uma fonte muito privilegiada. Não sei se eu me fiz entender.

Página 140

Marisa:

Tem uma pergunta aqui do Paulo Henrique: “Professora, como a senhora vê esse movimento da escola sem partido, da apropriação das religiões neopentecostais de nossos patrimônios culturais, descaracterizando-os?”

Maurides:

É... bom.. é... descaracterizando-os, a coisa é complicada, né? É um processo, né? Eu acho que não dá para você falar de grupos indígenas hoje, ou de grupos de negros, ou qualquer grupo, e pensar eles de uma forma romantizada e congelados, como se eles não fizessem parte de todo um movimento, de todo um processo. Eles estão inseridos em todo um movimento e em todo um processo. O que você pode é estar trabalhando com eles, com a cultura deles, inclusive, aí, vamos à outra pergunta, ver como eles se reconhecem, o que eles querem privilegiar, como é que você trabalha isso.

Ele está perguntando é como hoje os movimentos protestantes dentro das comunidades indígenas ou quilombolas têm descaracterizados as comunidades locais.

Carrillo:

Pues...yo considero que estamos en un período de transformación, no? Y esa transformación esta en una actitud de apertura, o sea, los movimientos, no? El problema que yo hoy noto es como hacerlo mas fuerte, mas eficientes y no solamente quedar en una situación de expontanismo, no? Yo considero que las escuelas, las instituciones...tenemos que crear lideres académicos que consoliden el campo y yo creo que se inició...a lo largo de la historia ha habido ciertas decepciones y eso, pero hoy yo considero que en esa epoca tenemos que favorecer la formación de líderes que construyen y desarrolan el campo, no? esto, no? yo creo que estamos neste camino.

Maurides:

É, eu concordo com o Antônio. Em um mundo de tantas mudanças, você conseguir consolidar líderes que vão valorizar a cultura própria do lugar é importante.

Marisa:

Pergunta da Rosana: “Como você vê a continuidade dessas discussões sobre as questões quilombolas, indígenas, etc, no ensino médio, se a área de ciências humanas tende a sofrer restrições como a filosofia, a sociologia, com a implantação do novo ensino médio.”

Maurides:

Olha, ótima questão, não é? Eu acho que nós estamos tendo um retrocesso enorme com essa reforma do ensino médio, eu vejo assim mesmo, com todas as letras. Acho que não voltamos à década de 1970, quando foi feita a reforma do ensino de primeiro e segundo grau, onde se tirou tudo que era considerado perfume. Então, nós tivemos a Reforma Francisco de 1931, depois a Capanema, de 1942 a 1946, tinha na matriz curricular do ensino fundamental e médio no Brasil, que se chamava fundamental e complementar, depois ginásio, básico e científico. Tinha filosofia, tinha sociologia, tinha psicologia, tinha estatística, tinha higiene, tinha música, canto orfeônico. Tinha várias disciplinas que davam formação geral. E tinha o ensino profissionalizante que não dava acesso ao ensino superior. Depois, com a reforma de ensino de primeiro e segundo grau foi obrigatório o ensino profissionalizante para todo mundo, mas você tirou o que foi considerado perfume. Tirou a sociologia, tirou a filosofia, tirou a literatura, tirou a música, não é? E vários outros conteúdos que davam formação mais crítica para o aluno. Isso não funcionou, então, retiraram a obrigatoriedade do ensino profissionalizante. Voltou para o propedêutico. E aos poucos, com a abertura política, com a Constituição de 1988, com várias lutas de entidades, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE), tantas outras entidades educadoras no Brasil, a CBEs, as Conferências Brasileiras de Educação, foram retomados nos currículos conteúdos como filosofia, sociologia, música. Teve uma lei que se tornou obrigatória. Porque hoje se você quiser que seu filho estude música, você paga, não é? Você paga o ballet para ele dançar, paga a escola de música para ele aprender a tocar um instrumento, porque na escola ele não vai aprender. Não é isso? Assim, mais recentemente na história da África, esses conteúdos foram conquistas e que, de uma hora pra outra, nós estamos assistindo, ao vivo e a cores, indo por terra abaixo. Nós estamos sofrendo um refluxo. Acho que é um refluxo em relação a todas as conquistas da matriz curricular, que veio no Brasil a partir da abertura política. Então, nós tivemos um período que recuperamos aquela perda que tivemos com a reforma de ensino de primeiro e segundo grau. Logo, a LDB n.º 9.394/96 dá essa guinada. Foi um período que esses conteúdos foram voltando à matriz curricular, e agora nós vamos ver o quê? Na minha opinião, o refluxo, que é em relação ao estudo da filosofia, da sociologia, da história. E aí vamos falar das mais recentes. Da história do negro, do indígena, quer dizer, é lamentável que isso esteja acontecendo hoje. Estamos retrocedendo uns 40 ou 50 anos mais ou menos.

Página 141

Marisa:

Bem, a Sônia fala, então: “Qual seria a finalidade dessa reforma do ensino médio?”

Maurides:

Eu acho que é a mesma finalidade da reforma de ensino de primeiro e segundo grau, da Lei n.º 5692, de 1971. Ela é despolitizadora, alienadora. Você forma para o mundo do trabalho, é absolutamente necessário. Eu concordo com essa parte da reforma. Então, o que é que tem que ser feito? Adicionar. A conta não é de dividir ou de subtrair. Ela é de adição. Cria a escola integral, e põe o conteúdo profissionalizante à tarde. Permaneça com a matriz propedêutica de qualidade, que nós conquistamos agora pelo período matutino. E coloque no vespertino, ou o contrário. À tarde, profissionalize e dê em parceria um propedêutico. É, por que nós não temos escola integral no Brasil? Por que não pode ter o propedêutico junto com a profissionalização? A c onta está errada, ela não pode ser de subtração, ela não pode ser de divisão, ela tem que ser de adição.

Marisa:

A Tatiane pergunta se você pode passar o seu contato, que ela gostaria de conversar um pouco mais sobre o material didático que está produzindo sobre comunidades quilombolas com fomento do CNPQ.

Maurides:

Ah, só uma... a Rosana está perguntando: “Essa reforma pode aumentar mais ainda a distância entre a escola pública e privada?” Olha, a escola privada é propedêutica à universidade, o que determina o conteúdo dela é o que vai cair no Enem, porque o sonho da classe média, que põe o filho na escola privada é a universidade. E a universidade pública, viu, gratuita. Só para gente reforçar aqui. Então, eu acho que vai aumentar sim, como aconteceu com a reforma de ensino de primeiro e segundo grau, que nós tivemos uma espécie de grife e educação no Brasil, que eram os cursinhos pré-vestibulares, nas décadas de 1970 e 1980, que, depois nas décadas de 1990 e da LDB, se tornaram grandes colégios, não é? Mas nós temos hoje grandes desafios, eu acho que até muito mais terríveis que empresas internacionais, multinacionais, comprando nossos bons colégios privados, as nossas universidades privadas. Tem até outros desafios postos aí. Qual é a outra pergunta? Ah sim, sim, eu vou passar, depois a Marisa passa o contato pra você, claro.  

Marisa:

Outra pergunta: “Professora, qual sua opinião acerca da meritocracia brasileira dentro desse contexto do apagamento...”

Maurides:

“Do apagamento das ditas minorias”. Como que é mesmo a pergunta? O que seria mérito? O que seria meritocracia? E como, se não tem mérito, não entendi bem a pergunta dela. Você entendeu, Marisa? Simone, você pode reformular a sua pergunta? Quando você está falando de meritocracia, você está falando o quê? Que quando você... deixa ela reformular. Vamos para a outra, então, enquanto ela...

Yuri pergunta: “Professora, no passado, a história oral através dos Griots africanos e indígenas, digo, nativos das terras (apesar de todos os esforços para o silenciamento) resistiram (e resistem). Como percebe os novos griots? ‘Griots modernos’ que compartilham passado e presente a partir dos serviços de mensageiro como o whatsapp (e etc.). Será que isso ampliará consideravelmente o alcance de forma horizontal – de todos para todos – e conseguirá romper com os filtros de silenciamentos impostos? Sendo uma importante ferramenta de resgate, busca e (re)construção de diferentes formas de saber? Ou se diluirá?”

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Maurides:

Não estou conseguindo ver, mas eu entendi a sua pergunta. Eu acho que sim, interessante a sua pergunta, não é? Os griots? Griots da África Ocidental foram e continuam sendo importantes. E os modernos Griots usam esse serviço como novo veículo de transmissão do saber. Eu acho que amplia sim. E continuam a romper-se com os filtros o silenciamento impostos. As mídias sociais, de um modo geral, têm rompido com isso. Muitas vezes nós criticamos muito as mídias. Eu não sou daquelas. Eu vejo o lado muito positivo e isso que você abordou é muito interessante, eu acho que sim, que democratiza sim.

Deixa-me falar uma coisa. Acabei lendo e outros que têm estudado a história da África, mostram muito bem, também textos de Beatriz Nascimento, enfim, tem todo um material aí que vai falar do kilombo, não é? Com “k”. Nosso quilombo é com “q”. O kilombo ele já existia na África, é concomitante com o nosso. Quer dizer, os negros africanos também tinham, e aqui também. Eu não sei te dizer com certeza se o Zumbi tinha escravos ou não. Mas é que o Quilombo vem do kilombo africano, aqui eu estou falando do kilombo com “k”, e lá os negros escravizavam outros negros sim. Em Angola, por exemplo. Eu não sei te dizer se o Zumbi tinha ou não outros escravos aqui. Eu não sei te responder isso com propriedade.

Pergunta: “Sou arqueólogo e trabalhei em vários quilombos, inclusive na região dos calungas. E percebi que havia uma certa desconfiança dos próprios calungas em relação a afirmação da sua própria identidade. Em 2002, havia uma comunidade na região do Paranã que poucos tinham conhecimento. Essa desconfiança fez com que a memória destes povos se perdesse no passado. Gostaria que vocês falassem a respeito das políticas públicas para o reconhecimento dos quilombos... e de que maneira esses movimentos podem contribuir na afirmação da memória e identidade destes remanescentes de quilombo?”

É, eu acho que o reconhecimento das comunidades quilombolas ajuda muito. Na medida em que há um reconhecimento eu acho que há uma reafirmação da identidade e da memória dos mesmos. Nós temos aqui uma... hoje mesmo eu estava conversando com uma moça que está trabalhando com uma comunidade Mumbuca, uma comunidade quilombola no Tocantins. Aí ela está mostrando como essas políticas têm influenciado para afirmarem sua identidade. Como eles têm feito enfrentamentos, como eles se reconhecem hoje como quilombolas, como eles recuperam a identidade deles. E como eles têm uma memória, eles preservam uma memória. São quilombolas que trabalham com o capim dourado. Aí como essa memória tem sido preservada a partir mesmo do reconhecimento dessa comunidade lá no Tocantins, no Jalapão. Eu acho que na medida em que você tem políticas públicas para isso, você reafirma sim a memória e a identidade desses quilombos.

Marisa:

Não é a minha área específica, mas, complementando, eu acho o seguinte, que essa certa desconfiança que o Wilderval está falando não é da afirmação da sua própria identidade, ela pode ser, de certa forma, trabalhada pelos próprios membros da comunidade à medida que você propicia uma formação para esses membros, para essas pessoas. A gente está trabalhando uma especialização que discute o patrimônio, direitos culturais e cidadania. Qual é o nosso objetivo maior nessa especialização? É justamente fornecer instrumentos para que essas comunidades possam pensar ações culturais e se apropriar de determinados instrumentos que propiciem a criação de políticas públicas. Então, eu vejo que esse é um movimento necessário a partir dos membros da própria comunidade, porque ao invés de desconfiar, eles vão passar a ter uma confiança maior nas suas possibilidades de atuação. Eles se instrumentalizam.  

O Fernando Soares está pedindo se você pode deixar outros livros sobre a questão da memória, assim como o primeiro que foi exposto no início da palestra.

Página 143

Maurides:

Eu posso sim. Primeiro, eu não sei como você costuma ler os clássicos, Fernando. Você pode ler um clássico, depois o comentador. O comentador, depois do clássico. O clássico da memória é o Halbawachs, esse que eu deixei aí para vocês. Agora uma boa comentadora dele é Ecléa Bosi, que tem um livro que chama “Memória de velhos”. Um outro autor bastante lido, bastante estudado na memória é o Alistair Thompson. E ele está numa revista de História da PUC. É a Revista de História, de 1995. Depois a Marisa pode encaminhar para você. Aí você tem o “Re-construindo história oral no Brasil”. Você tem vários textos e livros que foram publicados nos congressos de história oral feitos aqui no Brasil que discutem tanto a metodologia de história oral como a memória. Aí tem Felipe Joutard, Janaína Amado, Marieta, Verena. Vários autores brasileiros que trabalham isso. E tem o Paul Thompson. Mas aí não é específico de memória. Mas na metodologia de história oral, que tem um livro que se chama “A voz do passado”. Tem muito material. Escrevo para você. A Mercedes Vilanova tem vários textos. Alessandro Portelli e Luisa Passerini, dentre outros. Mas tem uma vasta bibliografia que discute memória, e a utilização da memória como fonte, para estar escrevendo a História. Tem a Beatriz Gordo Lang, também, que é socióloga, tem uma abordagem da sociologia para estar trabalhando com a memória. Enfim, tem toda uma produção já, no Brasil, tá?

Ainda sobre a pergunta anterior, e complementando, dialogando aqui com a Marisa. Foi interessante a sua pergunta. Nesse curso de licenciatura intercultural indígena, que nós temos aqui na UFG, como eu disse para vocês, ele já vem adjetivado. Ele é intercultural. E quando você fala intercultural, está falando, como eu disse, em respeito. E não em tolerância. E com base nisso, o currículo é bem flexível.  Você tem uma parte mais rígida do currículo, e tem uma outra que tem bastante movimento. Eu tive oportunidade de dar aula em uma das turmas, porque os alunos que eram indígenas se reuniram e decidiram que eles queriam discutir memória, porque gostariam de criar lugares de memória na aldeia. E criaram um centro de memória. Não um museu, mas um centro de memória. Então, chamaram uma professora do Museu, a Rosani, e me chamaram, porque eles decidiram que queriam discutir a memória. Assim, quando você pensa interculturalidade, aí nós vamos falar das perguntas anteriores, como da colega que discutiu sobre os cânones da nossa academia, sobre como eles se reconhecem, eles não se reconhecem na historiografia. Eu penso que nós precisamos praticar mais na academia a interculturalidade e olhar o outro, praticar a alteridade, ver o outro. Portanto, achei interessante essa proposta quando eles conseguem nos chamar e assim: olha, queremos discutir a memória porque queremos criar um memorial na aldeia. Então, vamos discutir o que é memória, o que é museu, queremos saber os tipos de museu, se o que nós queremos é um museu, um centro de memória. O que é memória mesmo. E foi interessante, a partir daí, e queria ressaltar que nessa turma, da licenciatura intercultural indígena, nós temos um aluno indígena, que terminou a graduação, depois o mestrado e que agora está indo fazer o doutorado e tem uma produção que é de um lugar de fala dele, da própria aldeia. Então, eu acho que é interessante estar colocando quando você diz: olha, eles não se reconhecem na historiografia, vamos ver se eles vão se reconhecer no trabalho que eles mesmos produzirem. O Ercivaldo Xerente, que é um indígena, terminou o mestrado e tem publicações muito interessantes. Foi muito pertinente essa questão, é desafiador. Eu acho que esse tema desperta muitas paixões, ele instiga, porque nos incomoda muito, não é? Talvez o que incomoda é o que não foi resolvido ainda. Tá aí pra ser resolvido.

Marisa:

Tem uma pergunta aqui da Simone Sales. Ela fala que no ano passado teve uma aluna na região de Paraúna e informou a ela que quando as pessoas encontram artefatos indígenas em suas terras, eles simplesmente jogam fora, com medo de perder as suas terras, alegando que o valor pago pelo governo é muito baixo. Na sua opinião, como esse tipo de problema pode ser resolvido perante a comunidade?

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Maurides:

Essa é uma questão complicada... porque ela... aí nós vamos lá em Maquiavel. Maquiavel fala: Olha, mata a mãe de alguém, mas não toma a propriedade dele não. Vamos voltar lá nas lições do “O Príncipe”. Quando se trata da questão da propriedade, é muito difícil de equacionar. A gente busca soluções, e soluções é como eu disse, as cotas mexem com o quê? Por que que a cota para escola pública, para negro e para indígena tem mexido tanto com a comunidade? Porque ela vai tirar o filho da classe média da universidade, que pagou escola particular, privada, durante todo o ensino fundamental e médio. Então, ela vai mexer com o bolso da família. Vai mexer com o patrimônio. E, nesse caso aí, está mexendo com a propriedade... se acha um artefato. Bom, temos uma política de proteção a esses artefatos, que têm que ser valorizados. Eu acho que nós não temos é uma cultura de valorização desses artefatos. Não são só os indígenas, não. Nenhum outro de museologia no Brasil. Eu acho que falta um respeito em relação a esse e a todos. A um arquivo, a um documento, a um objeto de memória, a um lugar de memória. Nós não temos isso na cultura brasileira. Temos que criar políticas para isso, mas mudar a mentalidade do povo brasileiro despertando para a valorização da cultura material e imaterial também. E eu digo mais pra você: não é só o indígena, não. Acho que é todas as formas de artefato. E eu não sei, eu queria ter soluções. Eu queria mais pessoas para discutir comigo mais soluções para isso.  

Marisa:

Outra pergunta: “Qual a relevância dos negros na Guerra do Paraguai?”

Maurides:

Ah sim, eu acho que foi de suma relevância. Eu acho que eles passaram a se perceber como cidadãos. Eles percebem a importância que eles tinham, e os outros soldados também passaram a respeitá-los. Eles percebem que são brasileiros, eu acho que é fundamental para identidade e importância que o negro vai ter. E eu queria te falar que a Guerra do Paraguai traz para o Brasil uma questão importante, que é sobre a formação do Paraguai e do Brasil. Quando nós tivemos a guerra, o Paraguai tinha 95% da população alfabetizada. E nós tínhamos 96% da nossa população analfabeta, só para estar lembrando. A diferença, eu acho, que a Guerra do Paraguai mexeu com o Brasil em muitos aspectos, mesmo que seja a longo prazo.

Marisa:

Bem pessoal, agora são só alguns comentários, um comentando da pergunta do outro. Não sei se seria o caso de darmos continuidade às perguntas... A Maurides vai responder a essa questão da meritocracia no que se refere às cotas.

Maurides:

Se você estava falando de meritocracia no que se refere às cotas, sim, eu acho que um dos grandes ataques hoje ao sistema de cotas é a questão da meritocracia sim, de uma justiça onde você privilegia a meritocracia. Acontece que as cotas, quando você estuda justiça, não sei se eu estou fazendo uma interlocução com alguém do direito, ou não, você vai ver que tem vários tipos de justiça. E existe uma justiça compensatória, que é isso que é a base das cotas. Você está compensando uma perda acumulada. Uma perda de outras gerações. A criança que estudou na escola pública, depois o adolescente, ele tem a mesma condição daquele que estudou na escola particular? Aquele que foi criado com maçã e pão de ló? É um mérito desse ter chegado até lá? É mérito? Eu brinco com os meus alunos assim. O aluno dos Jardins. Aqui nós temos vários Jardins em Goiás. Nós temos os condomínios horizontais, que você tem o Jardins Viena, o Jardins Paris. E nós temos as invasões, que também tem o nome de Jardins. Jardim Tiradentes, e tal. Ela fala assim: Olha, será que o aluno do Jardins tem a mesma educação? Do Jardim Tiradentes teve a mesma oportunidade e a educação do Jardins Paris? Jardim Tiradentes era uma invasão. Jardins Paris é um condomínio fechado ao lado do Alphaville. Do nível do Alphaville. Não teve. É mérito? O que é meritocracia? Porque ele não teve nem como mostrar se ele tinha mérito, as oportunidades foram todas negadas a ele. Tá, é uma coisa pra gente pensar, tá? A educação no Brasil é universal, laica, gratuita e obrigatória? Se ela fosse universal, laica, gratuita e obrigatória, se fosse a mesma educação, você não precisava de cotas. E aí sim, era fácil falar em mérito, mas não é. Olha, a criança da escola pública no Brasil não teve a mesma oportunidade da criança da escola privada. Não teve, eu sou professora, e eu desafio você a falar pra mim que é igual, e não é. Então, é muito difícil você discutir mérito, porque mérito não pode ser visto só no presente. Eu acho que você tem que ver o que é História. A cota se fundamenta não no que aparece para você aqui no presente, mas é em todo um passado. E no caso das cotas aqui para negros, escola pública e indígena, como eu disse, é uma história de 300, 400 anos passados, onde levou à exclusão de uma grande parcela da população de uma escola de qualidade. Talvez uma solução pra isso, não é discutir mérito, nem cota, é você colocar uma escola pública, universal, laica, gratuita e obrigatória de verdade no Brasil. São os quatro princípios da escola pública. Está lá na Europa, lá na França, desde 1791, que a escola lá é universal, laica, gratuita e obrigatória. Na França, nos Estados Unidos e em vários outros países. Se a criança não vai pra escola, a assistente social tá lá no outro dia. Aqui, desce a principal avenida do centro da cidade, de qualquer cidade no Brasil, que você vai ver menor de rua lá, no horário das aulas. A escola não é gratuita. A escola é até gratuita, mas ela não é obrigatória. Ela não é universal. E obrigatória significa dar o livro didático, o uniforme, a merenda, a alimentação, condições para manter essa criança na escola. Existe isso no Brasil? Existe. Desde 1934, com a Constituição, depois da LDB de 1961, que é a Lei n.º 4024 e na atual, na segunda LDB do Brasil, Lei n.º 9.293/94, mas está presa no texto da lei, não tem efetividade. Isso não tem efetividade.

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Marisa:

Bem, algumas pessoas estão comentando que se não fossem as cotas não teriam tido a oportunidade de fazer seus cursos. Esses depoimentos são muito importantes. E nós vamos fazer uma última pergunta aqui, que é do Marlécio, porque estamos chegando no nosso limite de tempo. E o Marlécio pergunta: “Os negros que lutavam na guerra voltaram livres, mas suas famílias continuaram escravizadas. Como eles lidaram com essa situação?”

Maurides:

Pois é, difícil, não é? Sabe, é aquilo que eu falei das contradições do liberalismo, de tudo à moda da casa no Brasil. Eu acho que é surrealismo puro, né? Eu acho que pintar um quadro sobre o passado no Brasil é uma pintura surrealista. Você sabe que quando criaram, quando fizeram o primeiro Código Criminal no Brasil, tiveram a maior dificuldade, porque você não podia ter pena de morte para um negro, mas podia ter para branco. Isso bem no início, depois mudou. E o negro era só com açoites, porque ele era mercadoria, dava prejuízo matá-lo. Só por isso. Não era porque se tratava de um ser humano e de respeito à vida. Então, são contradições presentes na História do Brasil. Era livre, mas o resto da família não era. A outra criança nasce livre, mas os pais não são, que a Lei do Ventre Livre, no século XIX. A partir da Lei dos Sexagenários, os velhos são livres, mas o restante da família não é. São as contradições presentes nessa loucura que foi o século XIX no Brasil.

Marisa:

Bem, e diante dessas várias contradições, desse paradoxo enorme que é esse nosso país, nós encerramos hoje, pessoal, agradecendo muito à Maurides pela disposição em estar aqui. Agradecendo a presença do Professor Antônio Carrillo, que veio nos assistir e acabou sendo requisitado também para uma fala. E é muito importante isso, a gente poder ter essas trocas com todos. Os participantes estão elogiando, dizendo que gostaram e eu já convido vocês para o próximo encontro, nossa conferência que vai acontecer no dia 3 de julho, que é a última desse terceiro ciclo. Estão todos convidados. Nós vamos encaminhar a divulgação, como sempre fazemos, por e-mail pra vocês, bem como a gravação, o link de gravação desta webconferência e das webs anteriores. A nossa ideia é socializar e disponibilizar ao máximo essas discussões, porque o projeto é de extensão e a ideia é essa mesma, levar a universidade para todos, de forma que todos possam participar dessas discussões. Obrigada a todos vocês, pessoal, e até o nosso próximo encontro.