Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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Interculturalidade, Transdisciplinaridade e Patrimônio Cultural

7ª Webconferência – 29/05/2018

Eu começo agradecendo pelo convite para falar sobre interculturalidade, transdisciplinaridade e patrimônio cultural e espero que a gente realmente consiga ter momentos de muito aprendizado, de muita discussão e de troca de algumas ideias diante desse tema que é tão é desafiador. Falar de interculturalidade, transdisciplinaridade e patrimônio cultural implica aceitar o desafio de aproximar três grandes temas, sendo que cada um por si só poderia resultar em palestras e conferências muito extensas, devido à sua complexidade. Contudo, a partir das pesquisas que venho desenvolvendo na Universidade Federal de Goiás e a partir também da experiência que tenho como docente da instituição, ouso, nesta conferência, articular minimamente esses três temas, lançando-os neste fórum para que juntos a gente consiga uma aproximação de concepções acerca desses três temas e uma ampliação de compreensões e entendimentos.

Como sou professora, eu sempre parto em busca de um pouco de clareza conceitual, de precisão quanto às categorias conceituais que são tematizadas e trabalhadas. Considero que a clareza conceitual é capaz de conferir aos temas que estão sendo trabalhados, uma capacidade reflexiva e analítica mais ampliada. Além de uma capacidade de aplicabilidade desses conceitos a realidades que nos interessam e que muitas vezes precisam ser alteradas pelo fato de estarem assentadas em injustiças variadas. Nesse sentido, eu preparei a minha fala partindo dos três pontos que dão título à conferência: quais sejam: primeiro discutirei sobre a interculturalidade, depois sobre a transdisciplinaridade e, por último, a gente fecha com discussões sobre patrimônio cultural.

Começando então com interculturalidade, eu gostaria de chamar a atenção para o fato de que a interculturalidade pode ser entendida como um ponto de conexão no qual várias culturas se encontram e várias perspectivas culturais são trocadas. Para além dessa perspectiva conceitual é também importante entender a interculturalidade na prática. É fundamental também entender como se dá a interculturalidade na prática. E, na prática, a interculturalidade deve ser crítica, isso por apontar para dispositivos de poder institucional e estrutural responsável pela manutenção das desigualdades, estas que estão sustentadas sobre privilégios e não sobre direitos.

Tem uma pensadora norte-americana, que hoje vive no Equador e que é muito interessante, Catherine Walsh chama a atenção para o ponto importante de que a interculturalidade deve ser assumida de maneira crítica e radical, ou seja, como uma ação. A interculturalidade deve converter-se em um projeto de ação, textualmente a autora diz que: “a interculturalidade somente terá significação, impacto e valor quando assumida de maneira crítica, como ação, projeto e processo que procura intervir na reestruturação e reordenamento dos fundamentos sociais”. Esses fundamentos sociais foram historicamente racionalizados e responsáveis por despertar um processo de internalização nos indivíduos, provocando até mesmo situações de desumanização do humano. Esses fundamentos sociais internalizados fizeram gerar o cenário sociocultural que temos hoje. Um cenário que guarda heranças de um projeto de colonização e que pode ser chamado de colonialidade. Essa colonialidade é resultado de um processo de colonização que atingiu não somente as economias e as culturas, mas também profundos processos de produção de saberes.

A interculturalidade tem o poder de desestruturar ou desestabilizar minimamente essas matrizes de colonialidade que ainda vigoram e para que a interculturalidade provoque essa desestabilização é fundamental que ela seja realizada de maneira prática, como ação, como intervenção, como projeto político que pode transformar uma realidade que ainda hoje, em pleno século 21, segue hierarquizando culturas e grupos humanos e desumanizando humanos. Vale enfatizar que sujeitos desumanizados são sujeitos que têm a sua dignidade quitada e a partir do momento que essa dignidade é perdida, a efetivação de direitos humanos, os mais elementares, fica inviabilizada.

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Destaco, com muita ênfase, que interculturalidade é necessária porque ela pode provocar profundos processos de reumanização do humano, uma urgência contemporânea. A perspectiva teórica é expandida por Catherine Wash, que insere a dimensão da prática. E, atenta a esta abordagem, eu gostaria de falar para vocês nesta noite, um pouco da experiência de interculturalidade que a equipe da Educação Intercultural, aqui na Universidade Federal de Goiás, tem vivenciado. Na UFG temos, desde o ano de 2007, o Núcleo Takinahaky de Formação Superior de professores indígenas.

No Núcleo Takinahaky funciona um curso de graduação, no formato de licenciatura, em Educação Intercultural. Essa licenciatura tem duração de cinco anos e adquiriu um molde muito interessante porque nessa licenciatura os nossos alunos não têm disciplinas. São ofertados a eles temas contextuais, ou seja, as aulas se realizam a partir de temas gerados por meio de demandas decorrentes das próprias realidades e vivências desses alunos. Hoje temos 281 alunos no curso, todos indígenas, e temos 24 etnias representadas no Núcleo Takinahaky. Esses 281 alunos recebem ou realizam aulas com seus professores e professoras, neste formato de temas contextuais. O curso de Educação Intercultural é regular e presencial. Considerando que os estudantes são professores em suas aldeias, o calendário do curso assumiu um caráter especial, desta forma nossos estudantes têm aulas na UFG em seu intervalo de férias nas escolas das aldeias. Assim sendo, durante os meses de janeiro e fevereiro, agosto e julho, eles têm aulas aqui na UFG e no restante do tempo eles têm aulas nas aldeias, sendo que neste período são os professores da UFG que se deslocam para as aldeias. É exatamente esse trabalho que eu estava desenvolvendo no Maranhão até hoje, por exemplo. É um trabalho de orientação e acompanhamento dos estudantes da Educação Intercultural Indígena.

A Educação Intercultural, da UFG, é muito interessante, sobretudo pelo desenvolvimento dos temas contextuais, que se parecem muito com aquela ideia de tema gerador do Paulo Freire. E a experiência dessa licenciatura na UFG faz com que a gente se aproxime consideravelmente de uma interculturalidade na prática. A interculturalidade que a gente tem experimentado na Educação Intercultural Indígena nos coloca diante de uma realidade que provoca encontros profundos e cria pontos de conexão efetivos entre múltiplas culturas. Imaginem, 24 culturas indígenas, mais a cultura nacional aqui na Universidade Federal de Goiás interagindo, isso faz com que a interculturalidade que a gente quer, a interculturalidade necessária, verdadeiramente se realize.

Vejamos como são construídos esses temas contextuais: Os temas contextuais são aulas oferecidas aos nossos alunos e são muito dinâmicas. O que se faz quando se cria uma proposta de tema contextual é permitir que dúvidas recaiam sobre certezas. Neste sentido, diante de um quadro que aparentemente a gente explicaria sem grandes dificuldades, como, por exemplo, a definição de uma língua como o português, a gente simplesmente faz perguntas que são simples, como: o que é língua? Diante de uma percepção de qualquer situação para a qual se busca conhecimento é importante fazer perguntas simples, como: o que é isso? O que é importante? O que é justiça? O que é belo? O que é saúde?... Nós, docentes, nos deparamos com respostas construídas conjuntamente com os discentes que problematizam certezas, certezas essas apontadas por uma ciência mais clássica que prevalece ainda nas universidades. Essas respostas tendem a ser mais elásticas e mais plurais, portanto mais representativas de sociedades mais pluriétnicas, multirraciais e interculturais.

Esse movimento é possível porque a gente se depara com processos de construção de conhecimentos que são consolidados em contextos de forte vinculação cultural, considerando sempre as múltiplas culturas diferenciadas entre si. É a interculturalidade que se faz presente. É como se nas fronteiras entre as culturas, nesses encontros culturais que acontecem, como, por exemplo, entre uma professora não indígena e um estudante indígena, nessas fronteiras das interações, a interculturalidade se fizesse presente e provocasse desestabilizações em certezas que na maioria das vezes sequer percebemos, muito menos questionamos.

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Isso faz com que a gente se aproxime de uma interculturalidade possível, uma interculturalidade que não se dá sozinha. Na verdade, ela precisa de algumas outras alianças como com a transdisciplinaridade, que a gente vai falar sobre ela daqui a pouco, pra que ela se torne ainda mais ampla, plural e com uma capacidade explicativa e compreensiva do real muito mais próxima das vivências e interações socioculturais. No âmbito da Educação Intercultural Indígena, a gente tem alcançado a interculturalidade e a transdisciplinaridade a partir de ações como: o questionamento de um saber único; o questionamento de um saber disciplinar. Até mesmo as disciplinas que são instituídas na academia, por meio de uma consolidação científica mais cartesiana, são questionadas. É questionado também o saber hegemônico, que, como sabemos, é representativo somente de um segmento, ou de uma parte da sociedade humana e não de todas as humanidades possíveis. Os saberes interculturais e transdisciplinares podem ser alcançados também a partir do reconhecimento da horizontalidade e do caráter colaborativo entre os saberes.

Para quebrar a hierarquização entre saberes, a interculturalidade e a transdisciplinaridade forçam os limites do próprio conhecimento e estabelecem-se outras formas de aprender, por exemplo, a matemática, a língua, a cultura, os saberes e os fazeres humanos. Há que se considerar que existe uma diversidade de línguas faladas nesse país e elas precisam ser reconhecidas como línguas, há também uma diversidade de pensamentos lógicos que precisam ser reconhecidos como lógicos, de maneira horizontalizada e não inferiorizada diante do padrão hegemônico de produção do conhecimento. O saber intercultural e transdisciplinar é também alcançado no âmbito da Educação Intercultural Indígena a partir de uma organização curricular coletiva. O próprio fato de construirmos juntos os temas contextuais indica uma forte necessidade de construir de maneira coletiva o currículo que está sendo desenvolvido.

A construção coletiva das ações de pesquisa também é imprescindível nesses momentos. As pesquisas que são desenvolvidas devem ser desenvolvidas coletivamente, porque um sujeito, isoladamente, individualmente, precisaria de um estoque de conhecimentos e de culturas e de processos de produção de saberes muito mais ampliado do que um grupo de indivíduos. Assim sendo, uma pesquisa coletivamente desenvolvida tem a probabilidade de apresentar resultados mais abrangentes, ampliados e colaborativos com o avanço do conhecimento como um todo.

Sintetizando, a interculturalidade possível permite que dúvidas recaiam sobre certezas, o que temos alcançado por meio dos temas contextuais. Outro ponto importante é o de que a interculturalidade não deve ser entendida de maneira isolada, mas de maneira combinada e colaborativa. Neste sentido, a interculturalidade deve ser pensada, por exemplo, a partir, e em interação com a transdisciplinaridade. A gente tem alguns caminhos abertos que ajudam a entender a interculturalidade de maneira mais ampliada. Vejamos...

Historicamente temos três grandes momentos que permitiram questionar as disciplinas dentro da academia, das universidades. Olga Pombo, uma professora portuguesa, trabalha com três perspectivas bastante interessantes, que podem ser entendidas como esses três grandes momentos que falo: a multidisciplinaridade, que também pode ser chamada de pluridisciplinaridade; a interdisciplinaridade; e a transdisciplinaridade. São três formas de lidar com as disciplinas relativamente recentes no mundo da produção de conhecimentos e de desenvolvimento de pesquisas. São categorias muito recentes, ainda não são muito estáveis e já experimentam algum desgaste porque são utilizados de maneira pouco refletiva, fazendo com que, antes de serem plenamente entendidas, são apropriadas e vastamente utilizadas e, portanto, são desgastadas.

A multidisciplinaridade tem como pressuposto a multiplicidade de conhecimentos e a interdisciplinaridade tem como pressuposto a complementaridade entre os saberes, enquanto a transdisciplinaridade leva em consideração uma espécie de mistura mais homogênea de saberes o que conduz a uma maior abrangência sobre determinado tema. Para entender um pouco melhor cada uma das três propostas aqui apresentadas, eu explicarei cada uma delas separadamente.

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As universidades contemporâneas são extremamente multidisciplinares, temos hoje uma pluralidade de saberes sendo produzidos a partir da academia. E é importante destacar que essas disciplinas pouco dialogam entre si. O que a gente tem na verdade é uma espécie de paralelismo entre campos de produção do conhecimento, entre áreas do conhecimento, o que faz com que haja o reconhecimento da pluralidade, da diferença e da diversidade, mas não um diálogo profícuo entre essas áreas. Nesse sentido, antropologia é diferente de história, que é diferente de matemática, que é diferente de geografia, de direito, de medicina etc. A gente tem campos de produção do conhecimento múltiplos e plurais, mas também tem um paralelismo que não viabiliza a perspectiva dialógica.

Em um contexto multidisciplinar, o diálogo entre essas disciplinas é extremamente dificultado e algumas vezes inviabilizado por conta da especialização extrema. O que se tem é uma coordenação na realização dessas disciplinas que acabam pouco dialogando ou nada dialogando entre si, fazendo com que essa pluralidade caminhe como se fossem linhas paralelas justapostas e que não se tocam. A especialização extrema, disciplinar, tem feito com que indivíduos pertencentes a uma área participem de conferências promovidas por indivíduos de outra área e saiam dessa conferência sem entender o que foi colocado para a discussão. O que estamos chamando aqui de paralelismo entre disciplinas faz com que quem pertença a uma área não compartilhe plenamente dos signos e significados que circulam vastamente por outra área.

Já a interdisciplinaridade, de acordo com a mesma professora Olga Pombo, pressupõem uma convergência de saberes de forma que o perspectivismo e a convergência se tornam mais presentes em uma perspectiva interdisciplinar. Há uma complementaridade e uma combinação de saberes, que faz com que se reconheça, assim como na perspectiva multidisciplinar, a pluralidade e a diversidade. Todavia, o diálogo está pressuposto. Aqui na Universidade Federal de Goiás temos como exemplo de exercício da interdisciplinaridade o programa no qual atuo, que é o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos. No mestrado interdisciplinar em direitos humanos há um diálogo colocado, há a aproximação de pesquisadores e pesquisadoras de variadas áreas de conhecimento que ensaiam diálogos, fazendo emergir um resultado em suas pesquisas, que poderia ter várias áreas de alocação, com conteúdos disciplinares diferenciados. É bastante interessante a perspectiva interdisciplinar que fazermos no mestrado interdisciplinar em direitos humanos porque ela provoca uma espécie de movimento centrípeto que puxa para um centro imaginado a conversação, os debates, as trocas de conhecimento, fazendo emergir, de uma maneira particular, a interdisciplinaridade.

Uma das limitações da interdisciplinaridade é que ela pode tender a converter-se em um modelo, ou como uma nova disciplina. Olga Pombo salienta que a interdisciplinaridade é a única possibilidade de alargamento compreensivo nas disciplinas que estão postas nas universidades. Ainda assim, a autora portuguesa se empenha em explicar a transdisciplinaridade que atuaria a partir de um holismo, de uma unificação, uma fusão, uma mistura de perspectivas disciplinares diferenciadas, o que, por sua vez, admitira o novo e o diálogo.

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A transdisciplinaridade aqui na Universidade Federal de Goiás tem sido alcançada no âmbito da Educação Intercultural Indígena por meio dos temas contextuais, sobre os quais já me referi anteriormente. Os estudantes das mais variadas etnias chegam à UFG com a sua proposta singular de conhecimento de ordenamento jurídico, por exemplo, que pouco toca no direito como área disciplinar, com concepções clássicas e ortodoxas. Por este exemplo indica que compreensões diferenciadas de uma mesma dimensão se encontram, se mesclam e, por meio de um movimento centrífugo, admite um novo conhecimento. É um movimento que afasta do centro as possibilidades de áreas disciplinares. A compreensão é alargada e não conta com um centro disciplinar, mas revela múltiplas fronteiras disciplinares porosas e transitáveis.

Eu defendo a ideia de que a transdisciplinaridade é possível de ser realizada, inclusive no universo das pesquisas. O que eu tenho presenciado na Educação Intercultural Indígena, essa licenciatura que conta com 11 anos de existência nesta universidade e que já conta com uma centena de egressos, evidencia cotidianamente que a transdisciplinaridade é possível. É possível questionar matrizes epistêmicas instituídas como verdadeiras, apresentando outras possibilidades epistêmicas que foram violentadas por um processo de colonização, experimentando epistemicídios que recaíram sobre essas propostas de produção do conhecimento

 A Educação Intercultural Indígena tem mostrado que a educação intercultural aliada à transdisciplinaridade pode ser melhorada a partir de uma educação patrimonial, por exemplo. Eu sou antropóloga de formação e o que eu tenho discutido basicamente na Educação Intercultural Indígena gravita em torno dos efeitos de uma educação patrimonial que é oferecida a povos indígenas neste século 21. E o que a gente tem visto é que propostas decoloniais de produção do conhecimento tem se materializado nos instantes de interculturalidade e transdisciplinaridade, sendo que a educação tem feito a mediação nesse complexo campo. Na Educação Intercultural Indígena, a educação, além de ser intercultural tem sido também transdisciplinar e, complementarmente, patrimonial. Sustentada nestes três pilares, a educação que ali se efetiva tem conseguido ser também uma educação para a cidadania e para os direitos humanos

 Neste ponto desta conferência podemos entender que o estudo do patrimônio cultural pode ser abordado a partir de diversas perspectivas, revelando uma fantástica complexidade, sobremaneira porque apresenta uma relação direta com temas como: identidade e cidadania, diversidade cultural, memória e direitos humanos. O que a gente entende aqui é que há uma ponte que pode ser feita entre educação patrimonial e educação para os direitos humanos a partir do momento em que se consegue articular temáticas diversas relacionadas a questões de cidadania, direitos humanos e realização do justo e do bom.

A educação patrimonial, sendo pensada e refletida a partir da Educação Intercultural Indígena da UFG, articula temáticas como cidadania, diversidade cultural, direitos humanos, memória etc. Essas temáticas resultam por conferir cidadania e efetivação de direitos para os próprios povos indígenas que buscam esse conhecimento. Nesta discussão trago uma experiência que tivemos na Educação Intercultural Indígena neste primeiro semestre 2018.  Foi uma experiência muito interessante, no âmbito de um tema contextual que ofereci sobre Patrimônio Cultural. Nesse tema contextual sobre patrimônio cultural o que eu pude observar é que há uma ligação entre reconhecimento e valorização de bens culturais indígenas e elevação de uma cidadania por esses mesmos indígenas

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 A partir do momento que o sujeito indígena identifica um bem cultural no âmbito da sua cultura como patrimônio, esse sujeito tem a sua identidade afirmada de maneira extremamente positivada, o que confere, em alguma medida, cidadania para esse indígena. Durante a realização das aulas sobre Patrimônio Cultural, fizemos uma visita técnica à Cidade de Goiás e ao IPHAN.  Esse tema contextual sobre Patrimônio Cultural, pontualmente no momento da visita técnica que colocou os estudantes em contato direto com lugares e instituições muito relevantes para pensar questões de patrimônio cultural, levou essa turma a fortalecer a sua própria identidade cultural. Nos debates que aconteceram em momentos pós-visita técnica pode ser observado também um movimento de revalorização de bens culturais de seus povos, destacando que na turma havia 10 povos indígenas representados. Bens culturais de seus povos foram revalorizados, ressignificados e até processos de patrimonialização foram destacados a partir do momento que esses alunos tiveram acesso à educação patrimonial

 Essa educação patrimonial aconteceu por meio da realização de um tema contextual. Essa foi uma experiência tão exitosa que já se tornou um capítulo de livro, a ser publicado nos próximos dias pela editora da UFG. Eu e minha orientanda e monitora nesse tema contextual sobre Patrimônio Cultural escrevemos a experiência e buscamos realizar reflexões sobre como a educação patrimonial, aliada à interculturalidade e transdisciplinaridade pode colaborar para a realização de direitos humanos e cidadania a indígenas. Em nossas escritas, buscamos alcançar pelo menos três perspectivas de patrimônio que eu revelo a seguir

 A primeira permite compreender que a perspectiva indígena é marcada pela interculturalidade. Pensemos na complexa interculturalidade que caracteriza o fato de termos em uma sala de aula, em uma turma de 25 estudantes, dez etnias representadas. Ou seja, contar com dez povos representados fez com que pelo menos dez perspectivas culturais estivessem postas ali, naqueles instantes de aulas. Isso além da perspectiva institucional que é posta no contexto, para o diálogo, pela professora. O que se delineia é uma aproximação extremamente profícua de saberes, aproximação esta que leva ao exercício da interculturalidade. E a interculturalidade associada ao patrimônio cultural é discutida de maneira fortemente profunda e dialogada. O resultado foi bastante interessante, marcante para aqueles que estavam presentes e merece ser socializado mais amplamente

 Nós conseguimos também sistematizar e pensar criticamente sobre a perspectiva institucional. Há que se trabalhar com os processos institucionais de patrimonialização com os nossos estudantes indígenas, sendo que eles, ao observarem os seus bens culturais como potentes patrimônios culturais suscetíveis a processos de patrimonialização querem e têm o direito de saber todos os percursos que devem ser feitos para o reconhecimento e valorização desse bem reconhecido e ao qual se está buscando a patrimonialização.

Em um segundo instante, a perspectiva institucional esteve presente também, mas é importante chamar a atenção para o fato de que até mesmo a perspectiva institucional fora questionada. Os estudantes indígenas do início ao fim do tema contextual sobre Patrimônio Cultural questionaram de maneira muito convincente essa divisão extremamente marcada e separatista que se faz entre objetos materiais e imateriais. Isso porque na concepção daqueles estudantes indígenas o material não se separa do imaterial e aquilo que, desde um olhar preconceituoso, primeiramente é entendido como uma dificuldade do aluno em compreender o que é material e separar do que é imaterial, vai sendo refinado. Esse refinamento permite a revelação de um conhecimento profundo que a academia perdeu ao separar material de imaterial. Conhecimento este ainda presente entre os povos indígenas, que concebem o material e imaterial como indissociáveis. Da perspectiva daqueles estudantes da Educação Intercultural Indígena, ainda não contaminada pela disciplinarização do conhecimento, a indissociabilidade entre material e imaterial foi demonstrada dialogicamente em um contexto de transdisciplinaridade e interculturalidade

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 Uma terceira perspectiva sistematizada sobre patrimônio é a perspectiva crítica. Nos momentos das aulas conseguirmos acionar e analisar processos de tensão que marcam questões de patrimônio cultural. Destacamos aqui o exemplo bastante conhecido dos Wajãpi, do Amapá, quanto trataram processo de patrimonialização da pintura corporal e da arte gráfica Wajãpi. Esse processo de patrimonialização dos Wajãpi foi revelado a tensão que há nos processos de patrimonialização. Os indígenas Wajãpi, naquele momento, entendiam que o grafismo é Wajãpi, mas não é somente Wajãpi, porque é também de propriedade de outros povos que tem outras existências, em outros tempos passados e outros lugares. Além do fato de que o grafismo Wajãpi que tem animais representados é também de propriedade desses animais. Neste sentido a compreensão daquele povo passa pela seguinte lógica: “esse grafismo é Wajãpi, mas não é somente Wajãpi, a cobra também é dona desse grafismo”. Como equacionar a questão do patrimônio? Fica a questão que revela a perspectiva crítica e a coloca para dialogar com a perspectiva institucional e com as perspectivas de mais indígenas. Finalmente, destaco que a busca por respostas a questões como esta é tornada possível em ambientes de ensino e aprendizagem pautados pela interculturalidade e pela transdisciplinaridade

Por fim, destaco que a interculturalidade e a transdisciplinaridade operam como instauradoras de uma educação patrimonial crítica e decolonial. Não há como a perspectiva crítica e decolonial, ou seja, questionadora até mesmo dos epistemicídios decorrentes do processo de colonização, não se apresentar. Ações de educação patrimonial aliadas a uma perspectiva intercultural e transdisciplinar favorecem processos de decolonialidade, estes que instituem outras narrativas, não hegemônicas, e estampam outros modos de vida, que demandam por cidadanias diferenciadas e efetivação de direitos humanos provocadores uma espécie de reumanização de humanidades perdidas. Agradeço pela escuta e vamos ao debate...

Perguntas

“Professora... é muito lindo”, a Meire esta falando que se encantou com o universo indígena... O universo indígena ele é encantador.

Resposta: Mais do que encantador, o que os saberes indígenas apresentados pra Universidade Federal de Goiás tem revelado, além de encantador é que eles têm uma potência transformadora de preconceitos e discriminações históricas e isso é fantástico. Tem muita gente que pensa que ao receber estudantes indígenas na universidade o que a universidade vai fazer é conferir títulos a esses alunos e ampliar horizontes cognitivos, epistêmicos desses alunos ao ponto de transformar a própria comunidade desses alunos. E isso é fato e é verdadeiro. O que nem todo mundo discute é que a presença de indígenas - assim como de quilombolas, de mulheres, de pessoas negras, de pessoas com deficiência... - na universidade tem transformado também a universidade, tem humanizado a universidade.

A sociedade brasileira como um todo tem ganhado muito com essa diversidade étnica e racial, presente na universidade. Essa diversidade tem forçado limites compreensivos e explicativos da realidade vivida. A presença das alteridades, das diferenças, permite questionar saberes hegemônicos instituídos como únicos, apresentando outras possibilidades de explicação das interações socioculturais e das vivências.

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A pergunta da Karina é a seguinte: “a abordagem interdisciplinar não elimina por completo a existência das disciplinas?” - Correto, embora ela institua o diálogo. “É uma abordagem da parte para o todo? E também o caminho de volta do todo para a parte?”.

Resposta: É, se você partir de uma perspectiva cartesiana, é isso... O Descartes propõe é exatamente a compartimentação do todo, depois sua recomposição, para explicar o todo a partir do estudo da parte. Como falei anteriormente, a perspectiva interdisciplinar corre o risco de se converter em um novo modelo, porque mesmo esse caminho de ir e vir do todo à parte e da parte ao todo, pode, em algum momento, se converter em um novo modelo, em uma nova disciplina. Tanto que é comum encontrarmos trabalhos de dissertações e teses que apresentam a perspectiva interdisciplinar como um método, ela vira um método, quando na verdade ela é uma perspectiva.

A gente recebeu uma educação e uma formação disciplinares e romper com essa perspectiva disciplinar não é um trabalho simples, na verdade é muito complexo porque implica questionar as bases que nos formam, sendo que as bases que nos formam são disciplinares. A interdisciplinaridade permite fazer um trabalho fantástico, a multidisciplinaridade também. A interdisciplinaridade quando promove esse movimento que vai do todo pra parte também avança muito e o maior avanço da interdisciplinaridade é favorecer o diálogo. Todavia, a interdisciplinaridade tem acontecido em nossas universidades de maneira um pouco problemática porque tem levado a um reforço de áreas disciplinares diferenciadas que ensaiam um diálogo, mas que não conduz a uma redação de um artigo, por exemplo, com resultados de pesquisa que assegurem as possibilidades dialógicas. Estas que poderiam ser alcançadas se outros saberes fossem colocados na cena da produção do conhecimento. Neste sentido: Que tal trazer pra debater com os cientistas, os saberes indígenas? Os saberes quilombolas? Os especialistas ribeirinhos?  Por que não trazer as benzedeiras pra debater com os médicos ou psicólogos? Aí sim nos aproximaríamos daquilo que poderia ser uma transdisciplinaridade e o novo que nem nomeado está.

A pergunta do Marden é a seguinte: “o tema apresenta questões muito interessantes sobre transdisciplinaridade na atualidade. Aproveito para abrir um questionamento a respeito da teoria epistemológica ambiental de Enrique Leff. Segundo o autor propõe discutir as possibilidades de articulação disciplinar para a resolução dos desafios ambientais e das possibilidades de incorporação do conhecimento sobre a racionalidade ambiental e do saber epistemológico. Dentro dessa perspectiva, em sua opinião, qual seria o caminho para suplantar a crise ambiental resultante da racionalidade econômica e promotora da destruição do planeta?”.

Resposta: O Marden chamou uma nova palestra aqui (risos). A professora Olga Pombo, sobre a qual me referi anteriormente, coloca essa questão ambiental e de sustentabilidade na perspectiva interdisciplinar. Eu penso a questão ambiental e da sustentabilidade no âmbito da transdisciplinaridade. Assim como Enrique Leff, entendo que precisamos promover essa articulação entre disciplinas. Se há alguma com possibilidade de transformação das mazelas e dos processos de destruição ambiental que vivemos contemporaneamente, ela se dá a partir da articulação inter-trans-disciplinar

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Essa crise ambiental que a gente vive hoje resulta de uma necessidade que temos de racionalizar questões que nem sempre são racionalizáveis e, mais, de uma necessidade de alocação dessa racionalização em um único campo de conhecimento. A questão ambiental é uma questão econômica, deve ser respondida a partir da economia, mas há outras dimensões disciplinares, como por exemplo, a antropologia, a geografia, a saúde, dentre outras, que devem que ser consideradas também. E há ainda questões não disciplinares, como a questão espiritual, que precisam ser consideradas pra que cheguemos mais próximos de respostas e soluções para os desastres que enfrentamos hoje

Vandana Shiva, uma pensadora indiana, tem uma proposta de ecofeminismo que me encanta. Ela fala que a sustentabilidade, a evitação da destruição do planeta, é possível a partir de uma tomada de consciência da nossa capacidade de agência sobre o planeta. Ela afirma ainda que a matriz primeira que compõem uma persona masculina é extremamente destrutiva e nos convida a pensar que, por exemplo, as guerras são promovidas pelos homens e, ainda, são os homens que estão à frente de processos de violação de direitos humanos. Assim sendo, a energia masculina, segundo Vandana Shiva, é destrutiva, já a energia feminina é reparadora, é cuidadora. A autora recorre à semente e ao útero para entender a energia que as mulheres emprestam ao trabalho. Enquanto as grandes lavouras são comandadas e controladas pelos homens, as hortas que abastecem as feiras orgânicas têm sido comandadas pelas mulheres. A energia fe minina é reparadora do próprio planeta, daí a autora forjar o conceito de ecofeminismo

No momento em que temos visto diversos atos de racismo nas universidades contra alunos e professores negros, qual a aceitação em relação aos alunos indígenas?”.

Resposta: A aceitação dos indígenas na universidade é equivalente à aceitação de alunos negros... Se não, pior. Eu fiquei sabendo porque meus alunos indígenas relataram a mim que em 2015, quando um estudante indígena se dirigia ao centro de aulas, recebeu uma pedrada de um outro estudante não indígena que também chegava ao campus.  Este exemplo nos ajuda a perceber o nível de tolerância aos alunos indígenas. É uma intolerância e é uma perversidade tremenda que atingem os corpos desses sujeitos indígenas, mas também seus saberes, suas cosmologias. Temos no país uma diversidade de pertencimentos étnico-raciais, que traz consigo uma diversidade de culturas e de propostas epistemológicas. Toda essa diversidade deve ser colocada em relação dialógica e não ser violentamente repelida como ainda tem acontecido

/ A Rosana fez a seguinte pergunta: “Quais seriam os caminhos para trazer essa discussão para além da universidade? Para a sala de aula, por exemplo? Como fazer valer a efetivação dessa abordagem na sala de aula?".

Resposta: Além do ambiente da universidade é necessário alcançar outras dimensões da sociedade que são fundamentais para a promoção de qualquer transformação de situações violentas de intolerância, racismo, machismo, homofobia etc, que vivemos hoje e que somente uma perspectiva intercultural e transdisciplinar pode realizar. A missão da universidade é realizar, além do ensino, a pesquisa e a extensão. Por meio da extensão a gente tem conseguido alcançar lugares bastante interessantes, inclusive a sala de aula. A educação básica tem estado presente na universidade e temos conseguido socializar conhecimentos. Aqui na Universidade Federal de Goiás a gente tem vários núcleos de pesquisa e de extensão que fazem esse trabalho. Eu coordeno o Coletivo Rosa Parks, um coletivo de feminismo negro, que é cadastrado como projeto de ensino, mas que é também um projeto de ensino e extensão. Na extensão nós temos visitado escolas de Goiânia e até de fora de Goiânia, levando essa proposta de questionamento de um saber único, de trazer outras energias para o processo do conhecimento, inclusive a energia feminina, negra, indígena etc. No ano passado, no Dia C da Ciência, levamos para as escolas de ensino básico de Goiânia a discussão da ciência como possibilidade de transformação do mundo. Este ano já temos uma série de ações sendo desenvolvidas junto às escolas com o objetivo de promover essa aproximação com a universidade. Hoje a UFG conta com uma quantidade significativa de alunos negros e negras, indígenas, ciganos, esses alunos têm levado para os lugares onde eles vivem esse diálogo, que ecoa longe.

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A Fernanda faz a seguinte pergunta: “Você pode explicar melhor a perspectiva decolonial em relação ao patrimônio cultural dos povos indígenas?”.

Resposta: Há uma compreensão muito recente que vem sendo realizada por pensadores e pensadoras latino americanistas, como a Catherine Wash, além de vários outros latino americanos, como Valter Mignolo, Aníbal Quijano, Henrique Dussel, dentre vários outros pensadores que compreendem que o processo de colonização das Américas, e estão pensando especificamente as Américas e a América Latina de maneira muito pontual, causou um grande trauma na humanidade. Esse processo de colonização foi responsável pela matança de milhares, milhões, de indivíduos. A colonização exterminou milhares de culturas humanas nesta parte do mundo e impediu, por meio do epstemicídio, centenas de saberes de se revelarem como saberes. O processo de colonização foi a fase mais violenta que já se viveu nas Américas, não há registro histórico de um processo mais violento do que a colonização que aconteceu a partir do século XVI. Embora esse processo de colonização tenha terminado em 1888 quando se liberta a escravatura, o trauma profundo que ele provocou segue fazendo novas vítimas e está refletido hoje nas instituições, na família, na universidade e nos indivíduos. Todavia, hoje ele não aparece como colonização, mas como colonialidade. E é uma colonialidade que está além da economia, mas invade o campo do saber e do poder, que recai sobre os indivíduos e sobre todos os bens (materiais e simbólicos) que esses indivíduos produzem

Uma perspectiva decolonial é aquela que considera esse complexo descrito até aqui. A decolonialidade considera que somos herdeiros de uma violenta colonização que se operou sobre as Américas; reconhece que a experiência de dominação colonial deixou um trauma, não curado, com capacidade de impulsionar ações e reações ainda contemporaneamente; e que uma energia decolonial deve ser empreendida para que haja uma reparação das violências perpetradas no passado colonial. Os povos indígenas foram absurdamente afetados por esse movimento histórico e ideológico e todo um patrimônio cultural relativo a esses povos foi cruelmente desacreditado, deslegitimado, quando não eliminado. Por exemplo, na sociedade brasileira se acredita que se fala um único idioma, o português, desconsiderando que neste país nós temos quase 200 idiomas sendo falados. O preconceito linguístico parece fazer parte de um projeto de dominação colonial ainda sendo executado. Os povos indígenas que são falantes desses idiomas foram perversamente ensinados que o que falam não é um idioma. Eu ouço em aldeias indígenas hoje, pedidos de desculpas por falarem “na gíria”. Eles chamam de gíria aquilo o imenso patrimônio linguístico que têm, e que, de fato é um idioma. A partir desse exemplo podemos entender que a violência linguística vigorante é também uma violência cultural e fortemente epistêmica que atinge em cheio o patrimônio cultural dos povos indígenas. Emergencial é o desenvolvimento de um processo de educação patrimonial.

O Marco Aurélio pergunta: “Professora, você afirmou há pouco que a interdisciplinaridade forma um novo modelo metodológico, contudo, a fundação desse novo modelo cumpre um rigor científico para ser assumido como produtor de conhecimento científico. Ao assumir a interdisciplinaridade como método, o objeto da pesquisa não fica difuso?”

Resposta: Na verdade eu afirmei que a interdisciplinaridade tende a se converter em um modelo, não são todas as vezes que isso acontece. Aqui no Brasil, por exemplo, lá no Mestrado Interdisciplinar em Direitos Humanos nós temos buscado evitar que isso aconteça, mesmo que eu não esteja segura de que temos conseguido. Mas temos tentado evitar que a interdisciplinaridade se converta num novo modelo, como se fosse o surgimento de uma nova disciplina. Quando ela se converte em um novo modelo científico mesmo a interdisciplinaridade acaba buscando cumprir esse rigor científico que é exigido nos modelos tradicionais. Pensemos em como uma disciplina se institui, que é basicamente pela afirmação do método e quando se afirma o método se afirma uma nova disciplina, que para ser aceita deve estar dentro dos rigores, sobretudo metódicos, exigidos. Desta forma, quando a interdisciplinaridade se converte em um modelo o objeto fica sim difuso e a apreensão desse objeto fica muito dificultada também.

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A próxima pergunta é do Cláudio: “Como o ensino de geografia pode colaborar de forma inovadora com o patrimônio cultural, com a educação patrimonial?”

Resposta: Eu dialogo com a geografia a partir da concepção de espaço e de território, porque como trabalho com povos indígenas, eu trabalho muito com os conceitos de espaço e território e quando penso espaço, não consigo pensá-lo como não sendo um lugar de produção de bens. O espaço, assim como o território, é um locus privilegiado de produção de bens, o que a gente precisa é reconhecer esse espaço como produtor de bens, reconhecer esses bens e interagir com os sujeitos que ocupam esses espaços no sentido de evidenciar que é produzido nesse espaço e que de fato é um patrimônio cultural, portanto pode ser submetido a um processo de patrimonialização. Você esgotou as minhas possibilidades de resposta para essa pergunta, eu trabalho pouco com a geografia, embora tenha escrito, em 2017, em coautoria com os meus alunos do Povo Gavião um livro que é sobre território Gavião. Sugiro que você leia. Depois vou disponibilizar todo esse material para vocês.

O Cláudio pergunta: “Me explica melhor essa homogeneização na perspectiva da transdisciplinaridade. A transdisciplinaridade não elimina as particularidades da disciplina?”.

Resposta: Sim, a transdisciplinaridade elimina as particularidades das disciplinas e a homogeneização de que se fala é relativa aos saberes, aos conhecimentos e não necessariamente às disciplinas. É no âmbito dos relatórios que são apresentados como resultados de pesquisa que acontece uma reconexão, ou religação, bem como um ajuste às demandas mais disciplinares. A transdisciplinaridade acontece quando são colocados em situação dialógica um detentor de saberes tradicionais quilombola, por exemplo, para dialogar com uma antropóloga. E fato aqui de diálogo de fato, profundo e horizontalizado, com o objetivo de alargar horizontes epistêmicos. Nesses instantes dialógicos entre alteridades se elimina as particularidades, inclusive metódicas, da disciplina. Se os saberes que se apresentam ao diálogo forem tomados de maneira horizontalizada e crítica se exercita a interculturalidade, esta que aproxima-nos às possibilidades transdisciplinares.

A Meire faz a seguinte pergunta: “Como esse material chegará às salas de aula?”.

Resposta: A gente precisa difundir todo esse material. Em agosto, o Coletivo Rosa Parks estará levando para as escolas um kit sobre direitos humanos e homicídio da juventude negra. No âmbito da Educação Intercultural Indígena, nossos estudantes têm produzido material didático a partir dos temas contextuais. A gente tem produzido muito, inclusive, material bilíngue que está nas escolas indígenas desses povos que estão representados no Núcleo Takinahaky. Por exemplo, o livro sobre o qual falei agora a pouco que trata do território Gavião, que é bilíngue, que é ilustrado e que se chama: Pycop Cati Ji Jõ Pji: Território Gavião do Maranhão está sendo usado em várias escolas indígenas de ensino básico como material didático.Eu acho que a melhor forma de se levar todo esse material para a sala de aula é converter esses artigos científicos lidos, essas pesquisas desenvolvidas, essas aulas que fervilham conhecimentos e possibilidades transdisciplinares, em material didático e levar para a sala de aula. No âmbito desta especialização que estão fazendo, sei que estão desenvolvendo um projeto de intervenção, o que é uma oportunidade fantástica de levar todas essas reflexões para a sala de aula.

A Juliana pergunta: “Com relação ao tema da educação básica, ainda há um predomínio da ideia de que ensinar é o ensino formal dividido em disciplinas. Trabalho com educação infantil e percebo que há uma barreira maior com relação à transdisciplinaridade. Como trabalhar com temas considerados menos importantes ou com menor valor, por exemplo, com os pais de alunos?”.

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Resposta: Você está absolutamente correta, Juliana e não é somente na educação básica que essa fronteira é muito marcada, aqui na universidade também hierarquizamos saberes e alguns são relegados ao esquecimento por serem considerados menos importantes. Eu, por exemplo, me apresento como antropóloga muito pra me proteger de alguns ataques que eu sofreria se me apresentasse, em alguns ambientes como cientista social, porque eu seria acusada já de ser interdisciplinar e esse negócio é muito difícil, não se realiza concretamente. Para romper essas barreiras é necessário: a) reconhecer que essa barreira existe, porque tem muitos docentes inclusive na educação infantil que se sentem mais à vontade em sala de aula depois que a matemática se faz presente, o português se faz presente, as ciências se fazem presentes como disciplinas.  Constrói-se uma zona de segurança na disciplina. b) reconhecer que essa barreira é muito mais porosa do que se imagina em um primeiro momento. Uma barreira disciplinar de fato é uma artificialidade que fora consolidada na modernidade e, hoje, todos nós já podemos perceber que ela é totalmente transponível. Eu não posso ensinar para os meus alunos, por exemplo, português intercultural sem falar de ciências da natureza, ou mesmo de lógica. Não tem como eu falar de biologia com os meus alunos, sem falar de antropologia ou da intervenção do ser humano na natureza para a realização da própria vida. É possível fazer esse trânsito interdisciplinar e até mesmo transdisciplinar

A gente tem um exemplo que funcionou razoavelmente bem no Brasil que é a Lei 10.639 de 2003, ela institui a obrigatoriedade do ensino de história da África e de cultura afro-brasileira na educação em todos os seus níveis e muitos professores, até mesmo pela formação insuficiente, já que mesmo historiadores não tem uma formação em história da África, ou de elementos de África no Brasil. A transversalidade foi uma ferramenta muito utilizada e, de fato, uma forma de executar o ensino de história da África e de cultura afro-brasileira é pela transversalidade. E a transversalidade pressupõe um trânsito pelas fronteiras disciplinares. Entendemos também que sala de aula é importante, mas é fundamental que a aula transcenda o espaço da sala e, muitas vezes transcenda, inclusive, o espaço da escola. Se a aula consegue sair da escola em atividades culturais, por exemplo, ela alcança toda a comunidade, inclusive os pais, as mães e os familiares de alunos.

Finalmente, a última pergunta é da Valéria e ela pergunta assim: “Poderia falar um pouco mais sobre a construção coletiva dos temas contextuais?”.

Resposta: Claro... Eu sempre trabalhei em lugares em que as disciplinas eram oferecidas de maneira muito demarcada, com ementas e bibliografias muito fechadas e disciplinarizadas, até chegar na Educação Intercultural Indígena. E neste curso de licenciatura o que fazemos é construir coletivamente as aulas que queremos. Para que essas aulas sejam realizadas discutirmos questões simples, tais como: o que é importante discutir? sobre o que queremos saber? Queremos entender melhor o que? Queremos estudar o quê? O que nos aflige e precisa ser melhor conhecido?... A partir desses questionamentos ampliados, polifônicos e dialógicos são propostas aulas sobre "Direitos sobre conhecimentos tradicionais", "Terra e território", "Grafismos e outras linguagens", "Corpo e alimentação", "Ambiente e transformação", etc. etc. etc. Enfim, o que podemos extrair deste exercício é que um tema contextual só se dá a partir do diálogo, da troca, da interculturalidade e do questionamento das fronteiras disciplinares.

Marcos, você fez uma pergunta e a gente não a encontrou, mas a Marisa, que a leu, a traduziu mais ou menos da seguinte forma: "Você pede pra eu falar um pouco mais sobre os Wajãpi e essa questão dos grafismos.".

Resposta: A Arte Kusiwa é um sistema de representação gráfica muito característico dos povos indígenas Wajãpi, do Amapá, e esse sistema foi submetido a um processo de patrimonialização. O que se sucedeu foi que esse processo durou mais de uma década para se efetivar, muito por conta de uma compreensão ampliada do que seja posse, do que seja propriedade, do que seja patrimônio. Um importante questionamento que se fez entre o povo foi se o grafismo é um patrimônio Wajãpi. Os Wajãpi, depois de muitas discussões, entenderam que sim, mas não somente. Durante o processo de patrimonialização a ideia prevalecente era de que os grafismos são dos Wajãpi, mas não são somente dos Wajãpi, são de outros povos, outros seres e outros tempos... Isso rende uma discussão fantástica. A pesquisadora Dominique Gallois tem um trabalho muito interessante sobre os grafismos Wajãpi e eu recomendo que você leia porque pode ajudar bastante a aprofundar neste tema. A Marisa está falando que é hora de encerrar e eu vou passar o fone para ela. Todavia, antes preciso agradecer a escuta e o diálogo sobre tema que tanto aprecio que é a relação entre interculturalidade, transdisciplinaridade e patrimônio cultural.