Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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Circulação de bens culturais: perspectiva jurídica

6ª Webconferência – 16/05/2018

Marisa:

Eu gostaria de desejar uma ótima noite a todos. Estamos mais uma vez reunidos, hoje para a 6ª Webconferência do nosso III Ciclo de Webconferências Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania. O ciclo é um projeto de extensão que decorre das atividades da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania e é desenvolvido em parceria entre a Universidade Federal de Goiás, por meio do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos, e a Universidade de Fortaleza - UNIFOR, por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Eu sou Marisa Damas, coordeno o projeto pela UFG, e o Prof. Humberto Cunha, que é da UNIFOR, coordena o projeto por lá. Nossa expectativa é que vocês possam ouvir pesquisadores que estão mais vinculados à área jurídica, por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais, e pesquisadores de áreas diversas, que estão vinculados às atividades da UFG e às atividades Da nossa especialização. Hoje nós vamos ouvir a Cecília Nunes Rabelo, que é do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR, e ela vai nos falar sobre "Circulação de bens culturais: perspectiva jurídica". De antemão, eu já agradeço à Cecília por estar conosco hoje e ter aceitado o nosso convite. Agradeço a todo o pessoal do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR e também a todos aqui da UFG, que estão nos apoiando nesse projeto. Toda a equipe que tem nos ajudado cotidianamente para possibilitar levar até vocês essas discussões sobre direitos culturais, patrimônio e cidadania, de uma forma mais ampla, possibilitando às pessoas que não estão na especialização ou não estão vinculadas a nenhum curso da UFG, poder também assistir a essas discussões e, melhor ainda, estando cada qual nos seus Estados, nas suas cidades, o que é o principal, porque dificilmente nós conseguiríamos fazer um ciclo tão extenso, com 10 Webconferências, trazendo as pessoas até Goiânia ou levando-as até a UNIFOR. Então foi muito boa essa possibilidade das Webconferências, que têm sido viabilizadas através do nosso Centro Integrado de Aprendizagem em Rede - CIAR. Não vou me delongar mais, eu repasso para a Cecília e deixo ela a vontade para se apresentar e também iniciar a fala de hoje, e desejo uma noite muito produtiva para todos nós.

Cecília:

Boa noite! Obrigada, Marisa! A relação do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais - GEPDC com a Marisa é uma parceria de longa data que já gerou muitos frutos. Eu agradeço a oportunidade de estar aqui falando para vocês sobre um assunto que, na verdade, foi o tema da minha dissertação de mestrado. Eu faço parte do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR - Universidade de Fortaleza, e fiz o meu mestrado nessa mesma universidade, e meu tema foi exatamente "A saída ilícita de bens culturais do Brasil: uma perspectiva jurídica tanto do direito nacional quanto do direito internacional". Então, esse tema da circulação de bens culturais é realmente o meu âmbito de estudo e foi o objeto de estudo da minha dissertação. Além de pesquisadora no grupo, eu faço parte da Assessoria Jurídica da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, e também sou coordenadora administrativa-financeira do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais - IBDCult. Bom, começando nosso tema, eu vou falar um pouquinho para vocês como se deu, na verdade, essa pesquisa nos dois anos de mestrado. O assunto da nossa fala de hoje é a "Circulação de bens culturais: perspectiva jurídica dessa análise", analisando a saída desses bens do território nacional. Eu começo a minha fala colocando essa imagem (Foto de esculturas de mármore que foram tiradas do Pathernon na Grécia) que eu acho muito interessante e que tem a ver com esse tema, que é muito instigante. Quando eu comecei a pesquisar, o meu orientador, o Prof. Humberto Cunha, sempre me instigou muito a pesquisar sobre esse tema, sabe Marisa, e eu acabei realmente me apaixonando pelo assunto e trago para vocês algumas imagens que ajudam a compreender o que vamos falar aqui. Essa imagem é um dos casos em discussão acerca da posse de um bem cultural. Ela mostra uma parte dos mármores, esculturas de mármore que foram tiradas do Pathernon na Grécia por volta de 1801-1806, e foram levadas para o Museu Britânico em Londres. Essas peças estão no Museu de Londres e elas (são várias peças) são objetos de litígio entre a Grécia e a Inglaterra para que essas peças retornem ao seu lugar de origem. Esse é um dos casos muito instigantes sobre o tráfico de bens culturais, a saída ilícita desses bens e o possível retorno deles ao país de origem. A justificativa para pesquisar o tema da circulação de bens culturais, o motivo pelo qual é interessante sabermos mais sobre essa temática, é que a saída ilícita de bens culturais é uma prática que ocorre desde a Antiguidade, desde os povos antigos há essa perspectiva de tomar os bens culturais dos povos como uma forma de dominação. Então, desde a Antiguidade, o saque de bens culturais é uma prática recorrente, principalmente em tempos de guerra, como forma de uma civilização dominar outra. Essa prática, portanto, não é recente, é antiga e vem ocorrendo até hoje. Na atualidade, a UNESCO, principalmente, faz muitas pesquisas sobre o tema juntamente com a Interpol, e essas pesquisas mostram que o mercado ilícito de bens culturais movimenta cerca de 2 milhões de dólares por ano. O mercado ilícito de bens culturais é muito promissor e muito atuante. O problema da saída ilícita de um bem cultural de seu país de origem é que ele abrange o mundo inteiro. Não é um problema só de países como, por exemplo, o Egito, que é um dos países de onde mais saem bens culturais de forma ilícita, ou do Peru, que também é um dos países de onde mais saem esses bens. É um problema mundial, vários países fazem parte desse mercado ilícito, seja como países fonte, no qual esses bens são retirados, ou como países de destino, para onde esses bens vão. Os demais países ficam, muitas vezes, como rota do tráfico, pois neste caso o país não é de origem nem de destino, mas ele está ali na rota do tráfico desses bens culturais. É sabido que a proteção do patrimônio cultural é um direito cultural e, portanto, um direito humano já protegido em diversos documentos internacionais e também, no caso do Brasil, na Constituição Federal. Então, a importância jurídica de estudar esse tema está exatamente na relevância do patrimônio cultural como direito humano. Se o patrimônio cultural deve ser protegido por ser um direito humano, faz-se necessário analisar de que forma o direito vai regular a saída e a entrada desses bens nos países. No momento da elaboração da minha dissertação, percebi que a pesquisa é escassa sobre o tema, pois não encontramos pesquisas na área aqui no Brasil, na perspectiva jurídica. As pesquisas existentes são dos Estados Unidos, da Europa. Aqui no Brasil ainda é muito pouco e por isso a importância de estudar mais sobre esse tema.

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Durante a pesquisa, eu busquei analisar, em um primeiro momento, as teorias que estavam por trás dessa retenção desses bens culturais. A gente fala em repatriação no sentido lato, em um sentido genérico, repatriar pela possibilidade de trazer de volta esses bens ao país de origem. Essa é a temática. Dentro dessa perspectiva, existem teorias que estudam se esse bem deve ou não voltar e de que forma ele deve voltar. No primeiro momento, a pesquisa foi sobre as teorias que tratam do tema, logo depois, eu fiz uma análise da legislação, tanto nacional quanto internacional, que tratam do tema, e a partir dessa análise, eu pude verificar alguns aspectos extrajurídicos que estão por trás dessa questão da repatriação desses bens culturais, da circulação desses bens entre esses países. No primeiro momento, esse foi o foco principal.

Na primeira parte, falando um pouco das teorias sobre a repatriação de bens culturais, ou seja, sobre a possibilidade de trazer de volta esses bens que saíram ilicitamente, eu fiz uma análise, na verdade, a partir de como surgiu essa ideia de que os bens poderiam voltar a seu país de origem. Como eu falei o saque do patrimônio cultural, a saída ilícita desses bens é uma prática muito antiga, pois é uma forma de dominação de um povo sobre o outro. Então, o patrimônio cultural era visto como um troféu de guerra, muitas vezes civilizações inteiras eram dominadas por outra e os seus bens, que representavam a sua cultura, eram dilapidados ou mesmo tomados como um troféu de guerra, um símbolo da superioridade de uma civilização sobre a outra. Isso existe desde a Antiguidade, mas a questão da possibilidade de repatriá-los, ou seja, de trazer esse bem de volta só surgiu a partir do século XVIII, com um documento chamado Paz de Vestfália, que foi de extrema importância para o Direito Internacional. A partir desse documento, houve uma mudança nessa perspectiva - de retirar o patrimônio cultural como um simples troféu de guerra entre as civilizações - trazendo a questão do patrimônio cultural mais para a alçada do Estado. A partir desse documento internacional, há uma mudança de perspectiva sobre a organização do poder com o surgimento do Estado Moderno, que é uma nova forma de organização do poder, antes centralizado nos feudos e, agora, centralizado num reino único. Essa concepção de Estado Moderno vai trazer uma nova percepção também acerca da saída desses bens culturais, porque agora há um poder central, que exerce seu poder tanto sobre determinado território quanto sobre aqueles bens que estão ali. O patrimônio cultural deixa de ser uma relação entre as civilizações, entre os povos, e passa a ser uma relação entre Estados. A partir dessa perspectiva, a questão do retorno desses bens, passa a fazer parte do discurso de Direito Internacional. Lógico que não dá para falar de Direito Internacional em si nessa época, mas essa perspectiva da repatriação passa a fazer parte da lógica das relações entre os Estados.

A partir da Revolução Francesa, há um giro ideológico. Na verdade, na Revolução Francesa, é que os bens culturais passaram a ter uma nova concepção, e foi daí que surgiu a compreensão do patrimônio cultural da forma como ele é compreendido hoje. Na Revolução Francesa houve uma grande discussão sobre o que fazer com aqueles bens do Antigo Regime. Alguns pleiteavam que os bens do Antigo Regime deveriam ser destruídos, que deveriam ser suprimidos porque lembravam o que não se gostaria de ser. Por outro lado, outra parte dos revolucionários dizia que não, que na verdade, esses bens do Antigo Regime deveriam ser preservados, exatamente porque aquilo representava o que não se desejava voltar a ser, representava um passado para o qual não se gostaria de voltar. Nessa perspectiva, o patrimônio cultural deixou de ser um troféu de guerra e passou a ser o símbolo de uma superioridade de uma civilização sobre outra, mas no sentido de uma construção de uma herança comum, de uma identidade. É a partir da Revolução Francesa que a concepção do patrimônio é relacionada com a identidade de um determinado povo. O patrimônio vai servir para construir um passado em comum, garantindo a legitimidade desse novo poder que está surgindo. No caso da Revolução Francesa, o poder emergente - a burguesia - precisava se fundamentar na construção de uma identidade comum e é aí que o patrimônio cultural vai surgir, exatamente para garantir essa construção. Então, nessa perspectiva, sendo a identidade a pedra angular do Estado-nação que estava surgindo naquele momento, a questão da repatriação dos bens culturais passa a fazer muito sentido. Identidade e patrimônio são elementos unificadores, ou seja, que trazem unidade para o Estado recém-formado, unidade esta essencial para a própria existência desse mesmo Estado, na concepção que nós entendemos a partir da Revolução Francesa: o Estado-nação. A partir dessa perspectiva, então, o patrimônio cultural é entendido como um suporte necessário à construção da identidade e é claro que essa construção não é nem um pouco pacífica. A construção da identidade de um Estado é violenta, porque ela passa necessariamente por uma supressão de identidades menores. A identidade nacional tem como suporte o patrimônio cultural, é ele que dá seu suporte material de existência, e a identidade nacional pressupõe o sufocamento de identidades minoritárias. Nesse contexto, o patrimônio cultural surge como um importantíssimo elemento unificador do Estado e isso tem total relação com o nosso tema da circulação de bens culturais. Ora, se o patrimônio cultural é tão importante assim para o Estado, o Estado vai brigar por ele. Essa questão da posse sobre esses bens culturais é ponto relevantíssimo para os Estados. A partir da Revolução Francesa, houve essa mudança de entendimento do patrimônio cultural não mais como um troféu de guerra, mas como algo que afirma e reafirma o próprio Estado na sua legitimidade. Então, nesse primeiro momento, é importante compreender essa mudança de perspectiva.

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Bom, passando para o segundo momento da pesquisa, é importante falar sobre as teorias que tratam da repatriação. Ora, o ponto principal aqui é o bem sair de seu país de origem de forma ilícita, seja roubado ou ilicitamente exportado. O que vai acontecer? O que se deve fazer? Basicamente, existem duas teorias que tratam do tema: a teoria do nacionalismo cultural e a teoria do internacionalismo cultural. A teoria do nacionalismo afirma simplesmente que o bem é sim do país de origem, independentemente dele ter saído do seu território, pois o vínculo não seria interrompido pela distância física. Por quê? Baseado em dois fundamentos principais: soberania e identidade. O Estado é soberano, ou seja, ele exerce o seu poder de forma ilimitada sobre o seu povo, seu território e, necessariamente, sobre os bens que estão ali. O Estado é soberano, ele não se submete a outros países e esse é um dos fundamentos para que o bem não seja devolvido. O outro fundamento é a identidade. Ora, o patrimônio cultural só faz sentido, de acordo com essa teoria, dentro do seu país de origem, porque ele representa a identidade daquele determinado povo. Quando você retira um bem cultural do Estado de origem, ele perde o seu contexto e, uma vez saindo do seu contexto, ele perde o seu sentido de ser. Então, de acordo com essa teoria, o bem, ainda que tenha passado anos fora do seu território de origem, ele deve sim, caso tenha saído ilicitamente, retornar ao seu país de origem. Bom, na perspectiva do nacionalismo cultural, que diversos países defendem e que prevalece nos organismos internacionais, tais como a UNESCO, é levada em consideração a questão econômica, da desigualdade econômica entre os países. Ora, vários países de onde são tirados esses bens são economicamente mais frágeis e muitas vezes, a própria retirada desses bens do território os fragilizam ainda mais. São países que, muitas vezes, sobrevivem do turismo em relação a esse patrimônio cultural. Esses países alegam que já se encontram em uma situação de desigualdade e pleiteiam que esses bens retornem ao seu território, ao seu lugar de origem, pois ele representa a identidade de um povo. Quem vai de encontro a essa teoria defende que, se for entendido que o patrimônio cultural é de um determinado Estado, se estaria dando a esse Estado um poder ilimitado, o poder, por exemplo, de dizer: "O patrimônio é meu e eu faço o que eu quiser, inclusive, destruí-lo". Os que são contra a teoria do nacionalismo cultural falam que, ora, se o país exerce esse poder de forma tão ilimitada, que pode, inclusive, retirar esse bem cultural de um outro país, ele pode fazer, em tese, o que ele quiser. Ele poderia restringir o acesso àquele bem, não preservá-lo e até mesmo destruí-lo, pois teria um poder ilimitado. Essas possíveis arbitrariedades que poderiam ser cometidas pelo país de origem são utilizadas como argumento pelos que são contra a teoria do nacionalismo, utilizando-os para dizer que não, que os bens não devem necessariamente retornar ao seu país de origem, ainda que tenham saído ilicitamente. Os países e autores que defendem essa teoria são adeptos da corrente do internacionalismo cultural. O internacionalismo defende que o bem não pertence a um determinado país, ainda que tenha surgido naquele local ou que tenha relação com a identidade daquele local, mas ele pertence a humanidade. Eles defendem, portanto, a ideia de que o patrimônio cultural é da humanidade e, por isso, ele deve ficar no local que melhor possa protegê-lo. Essa compreensão pode ser entendida como uma mitigação da soberania estatal, porque o Estado, no caso, não teria uma soberania ilimitada, ele estaria limitado justamente porque existe um direito maior, um direito que está acima dos Estados, que é o direito ao patrimônio cultural. Uma vez compreendido o patrimônio cultural como patrimônio da humanidade, o argumento seria de que ele não necessariamente deveria voltar ao seu país de origem, mas sim que ele deveria ficar no lugar onde ele está sendo melhor resguardado. Os defensores do internacionalismo cultural se fundamentam basicamente em três princípios: os princípios da preservação, o da integridade e o do acesso. Eles entendem que o bem deve ficar no lugar que melhor preserve sua integridade e que garanta o acesso das pessoas a esse bem. No caso de um país, por exemplo, ter tido um bem cultural espoliado, mas não tenha condições de preservá-lo ou mesmo de deixá-lo à disposição de um público em um museu, ele não teria direito de levar esse bem de volta ao seu território de origem. No caso, ele deveria ficar no lugar onde está melhor resguardado. Em contraposição a essa ideia, os defensores do nacionalismo cultural afirmam que, não coincidentemente, os países onde os bens são mais preservados ou que têm mais condições de resguardá-los são os países mais ricos. A partir dessa lógica, os bens que estão nesses países, que têm mais condições econômicas de resguardá-los, nunca sairiam do seu local de destino, posto que esse argumento - o da melhor preservação - praticamente não tem contra-argumentos. Ora, vejamos um país que tem dificuldades econômicas até mesmo para questões básicas de subsistência. Como que ele vai argumentar com um país “de primeiro mundo” que vai cuidar muito melhor daquele bem se o local de destino, muitas vezes, tem um museu que recebe milhões de dólares por ano somente para cuidar do seu acervo, incluído aquele bem? Esse é, de fato, um argumento muito baseado na questão econômica, que não leva em consideração a questão da desigualdade das relações entre esses países. No caso do internacionalismo cultural, os defensores entendem, inclusive, que essa regulação deve ser feita pelo mercado, levando em consideração o local onde ele seja melhor preservado e onde seja garantido o maior acesso à população. É dentro dessa perspectiva que surge a ideia do museu universal. Muitos defensores da ideia de que os bens não devem voltar ao seu país de origem alegam a importância dos ditos museus universais, como, por exemplo, o Museu do Louvre, que tem em seu acervo bens do mundo inteiro. Os museus universais possuem bens que representam diversas civilizações e lá, em tese, ele possibilita o acesso das pessoas a uma variedade imensa de cultura do mundo inteiro. Então, como esse museu tem o caráter de universal, ele, em tese, garante que todas as culturas “importantes” do mundo sejam ali representadas e que qualquer pessoa tenha acesso a um bem, por exemplo, de um país africano ou de um país que está no extremo oriente sem nunca ter estado nos países de origem. O museu universal seria o lugar no qual ele teria acesso a esses bens. O argumento de manutenção desses bens culturais ilicitamente exportados, ou mesmo roubados, nos lugares onde eles estão se fundamenta muito nessa ideia do museu universal. Um ponto relevante a ser discutido é a questão da propriedade desses bens. O internacionalismo defende exatamente que os bens culturais são de propriedade da humanidade, e daí vai cuidar deles, estará na posse deles aquele que melhor o preserve.

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Você pode até entender, no caso, que a propriedade seria comum, de toda a humanidade, mas é certo que a posse é do país que melhor cuide do bem, ou seja, não interessa que, na prática, a propriedade seja do Brasil, dos Estados Unidos, do Peru ou do Egito, porque todos eles têm um dever geral de cautela sobre esses bens. O que interessa na prática é quem detém a posse sobre esses bens. A posse é um direito de estar com o bem, é o direito de estar com ele em seu território de origem. Me parece um argumento frágil dizer que a propriedade é comum, porque você pode até entender de forma teórica que seja, já que é um dever geral de cautela, mas, na prática, isso tem poucos efeitos. Na prática, o bem acaba ficando no local onde ele será melhor preservado, que não coincidentemente, é o local que tem mais condições econômicas de mantê-lo.

Dentro dessa perspectiva, outras teorias tentam compreender a questão da repatriação, tentando trazer soluções. Ora, o bem vai voltar para o país de origem ou vai ficar no país de destino? O Prof. Túlio Scovazzi, pesquisador italiano, tem uma compreensão sobre o tema, que é uma percepção cosmopolita de patrimônio. Patrimônio cosmopolita seria exatamente um patrimônio que é sim, claro, da humanidade, porque existe um dever geral de cautela, mas que, no caso do bem cultural ter saído de forma ilícita do seu país de origem, devem ser observados quatro princípios para saber se esse bem vai voltar ou não. O primeiro desses princípios seria o da não-exploração da fraqueza. De acordo com o Prof. Túlio Scovazzi, o Estado não pode se aproveitar da fraqueza do outro e isso é muito forte no sentido de que, de acordo com pesquisa feita pela Universidade da Suíça, pela Universidade de Genebra, grande parte dos países de onde saíram os bens culturais eram colonizados, eram países que estavam submetidos a algum processo de colonização, estando, portanto submetidos a outro país. Durante esse processo de submissão, os bens culturais foram retirados em proveito dessa situação. É uma forma, portanto, de exploração da fraqueza, fraqueza no sentido de que o país não tinha autonomia sobre si mesmo, não era um país independente. Então, nesses casos, o bem retornaria sim ao seu país de origem.

O segundo princípio é o da cooperação internacional contra o tráfico. Esse princípio deve ser observado quando, por exemplo, há uma disputa entre dois países e um dos países mostra que coopera com a repressão ao tráfico desses bens culturais. Isso deve ser levado em consideração no momento da decisão acerca da disputa de bens culturais.

O terceiro princípio é o da preservação in situ, que é o da preservação no local de origem. A preservação in situ é um princípio que, inclusive, está previsto em diversos documentos de direito internacional sobre patrimônio cultural. Esse princípio fala que o bem deve ficar no seu local de origem, exatamente porque é no local de origem que ele tem o seu contexto, no qual ele faz sentido. É um princípio, por exemplo, utilizado nos documentos internacionais sobre patrimônio subaquático, que é a espécie de patrimônio cultural que se encontra submerso em oceanos e mares e que, muitas vezes, é retirado de seu local de origem. O documento internacional sobre patrimônio subaquático diz que ele deve ficar submerso porque é lá que ele tem seu sentido de ser. No caso dos bens culturais ilicitamente exportados ou roubados, a partir desse princípio, ele deveria ficar no seu contexto de origem.

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O quarto princípio é o da cooperação internacional para a resolução de conflitos. A maioria dos casos de litígio sobre bens culturais são resolvidos de forma diplomática ou, pelo menos, a resolução é tentada por essa via. A cooperação internacional para resolver esses conflitos é fundamental nessa prática da repatriação de bens culturais. Vários casos de litígios entre países, por exemplo, foram resolvidos com o bem cultural ficando tantos meses do ano no país de origem e tantos meses no museu do país de destino ou, então, é feita uma cópia que fica tantos meses no país de origem, tantos meses no país de destino. Essa diplomacia, o acordo por meio dessa cooperação internacional, é fundamental na resolução desses conflitos.

Bom, sobre a normativa de Direito Internacional acerca do tema da repatriação de bens culturais, eu gostaria de falar basicamente sobre três documentos: a Convenção de Haia de 1954, a Convenção da UNESCO de 1970 e o Convênio da UNIDROIT de 1995. Esse são os três principais documentos internacionais sobre a temática da repatriação de bens culturais. Mas, antes disso, é importante dizer, como eu falei no começo, que a proteção do patrimônio cultural é um direito humano. O patrimônio cultural é previsto como direito humano em diversos documentos internacionais e os primeiros documentos a tratar do tema da repatriação foram, exatamente, o Código de Liebe de 1863 e as Convenções da Paz de 1899 e 1907. Esses foram os primeiros documentos internacionais que trataram, de alguma forma, sobre o retorno desses bens aos países de origem. Esses documentos demonstram os primeiros traços de que a comunidade internacional estava se preocupando com o tema. E, mais especificamente em 1954, foi criado o primeiro documento, aí sim, que especificamente tratou sobre a questão da repatriação de bens culturais, mas no período de guerra. A Convenção de Haia de 1954 proíbe o troféu de guerra, ou seja, ela veda que os Estados que estão em estado de guerra entre si saqueiem o patrimônio cultural do outro país como forma de dominação sobre aquele povo. Pelo documento, é proibido que os Estados que estejam em guerra tomem o patrimônio cultural do outro. A partir desse documento foi estabelecida essa regra, mas é uma regra que só vale para os tempos de guerra, pois em tempos de paz ainda não havia um documento internacional sobre o tema da repatriação de bens culturais. A Convenção de Haia de 1954 é clara ao afirmar e defender que o bem deve ficar no seu país de origem, que não deve sair de lá, ainda que o Estado esteja em guerra.

Em 1970, foi elaborado o primeiro documento internacional que realmente trata da repatriação. A Convenção da UNESCO foi um documento fruto de intensos debates entre os países fonte, que são os países de onde saem os bens culturais, e os países de destino, que são os países para onde vão esses bens. Essa convenção reflete muito a dicotomia que existe entre esses Estados, que defendem posições antagônicas entre si. A UNESCO, em um trabalho árduo, tentando conciliar essas duas percepções, construiu esse documento que, justamente por tentar conciliar posições tão antagônicas, acabou sendo um documento muito genérico e pouco objetivo. A Convenção da UNESCO, a qual o Brasil ratificou (tanto a Convenção da UNESCO quanto a Convenção de Haia e a da UNIDROIT foram ratificadas pelo Brasil) tem um conceito muito amplo de patrimônio cultural, que permite que diversos bens sejam considerados patrimônio cultural, em uma tentativa de proteger ao máximo esses bens. No entanto, o problema é que se você coloca um conceito tão amplo você acaba não protegendo nada. Tendo em vista a utilização desse conceito amplo, a Convenção determina que os Estados partes façam inventário sobre os seus bens. O patrimônio cultural que será protegido da saída ilícita, de acordo com a Convenção da UNESCO, é o patrimônio inventariado. O Estado, uma vez ratificando a Convenção da UNESCO, tem a obrigação de inventariar os seus bens, os bens que compõem o seu patrimônio cultural, e, a partir daí, determinar quais são aqueles que estarão proibidos de sair e aqueles nos quais haverá algum tipo de regulação mais restrita. O Estado vai a partir do inventário para determinar quais os bens que podem ou não sair do seu território. A Convenção necessita, portanto, para sua própria aplicação, que o Estado faça a sua parte, cumpra o seu papel inventariando os seus bens.

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A Convenção também tem uma abrangência restrita, já que ela somente se aplica à saída ilícita que tenha ocorrido após 1970, o que, na verdade, restringe muito sua aplicação, pois a grande maioria das saídas ilícitas ocorreu antes dessa data. Ela acaba sendo de pouca aplicação nesse sentido (no sentido da repatriação), mas ela tenta ser uma convenção, na verdade, muito mais principiológica, de diretriz a partir da qual os Estados devem criar a sua legislação nacional. Então, depende muito de como o Estado irá regular essa saída dentro do seu território, a partir da sua legislação, para saber qual será a eficácia da Convenção.

A Convenção da Unesco prevê também que o possuidor de boa-fé de um bem cultural, roubado ou exportado ilicitamente, deve ser indenizado, caso esse bem retorne ao país de origem. Ora, o possuidor, no caso, estando com o bem de boa-fé, e esse bem tendo que retornar ao seu país de origem, ele será, pelo país de origem, indenizado por essa perda. Essa boa-fé, no entanto, não é objetivada na convenção. Ela não fala, não explica o que seria esse possuidor de boa-fé. É claro que, no Brasil, por exemplo, nós temos definições de Direito Civil, enfim, definições jurídicas do que seria um possuidor de boa-fé. Mas a própria convenção relegou aos países, à legislação nacional, o papel de definir o que seria esse possuidor de boa-fé, como ele se caracterizaria.

A Convenção da Unesco, em suma, é pela repatriação dos bens culturais. Ela é pelo retorno, em regra. Como a Convenção da Unesco foi um documento elaborado, de certa forma, a partir de um discurso muito acirrado entre os países fontes e os de destino, ela ficou muito genérica, um pouco aberta, sem muitos prazos e procedimentos e, desta forma, de pouca aplicação prática. Com a Convenção da Unesco, foi criado o comitê para a resolução de conflitos em relação a bens culturais que saíram ilicitamente. Esse comitê já tratou de diversos casos, mas poucos foram efetivamente resolvidos, o que demonstra sua pouca efetividade. Diante desses fatos, o convênio da Unidroit surgiu como um documento que visa trazer mais objetividade nessa relação entre os Estados. O Convênio da Unidroit tenta trazer aspectos mais objetivos, tais como prazos e procedimentos, para regular como vai se dar essa repatriação dos bens culturais. A Unidroit é uma organização internacional mais voltada ao direito privado que o Brasil faz parte. Um exemplo de como a Convenção da Unidroit trouxe mais objetividade no tema da saída ilícita de bens culturais é que ela dispensa a realização de inventários, por exemplo. O país não teria que fazer um inventário. Sendo aquele bem parte do patrimônio cultural, de acordo com a lei nacional, ele terá sim direito a pleitear esse bem que saiu ilicitamente. Esse documento internacional também faz uma importante diferença entre o procedimento no caso do bem ter sido roubado e no caso dele ter sido exportado ilicitamente. O roubo, no caso, por ser uma ação mais grave, demanda um procedimento diverso em relação ao que se dá quando o bem sai ilicitamente. No caso, para o roubo, o convênio da Unidroit usa o termo “restituição”, e, no caso da exportação ilícita, ele usa o termo retorno. Então, tecnicamente, o termo restituição de bem cultural é utilizado quando o bem foi roubado, e o termo retorno é quando o bem foi exportado ilicitamente. No caso da restituição, ou seja, no caso do roubo, não há restrição de quem vai pleitear a devolução desse bem. Tanto pode ser o Estado quanto uma pessoa física ou uma pessoa jurídica, não há restrição. No caso de um bem exportado ilicitamente, somente os Estados podem pleitear que esse bem retorne. No caso do roubo, é necessário que quem pleiteia comprove que o bem foi roubado e há um prazo de 3 anos para isso, contado a partir do conhecimento sobre o local ou a identidade do possuidor daquele bem. Assim, existe um prazo prescricional de 3 anos, a partir do conhecimento do local ou da identidade do possuidor. E caso esse local e essa identidade nunca venham a ser conhecidas, o prazo prescricional é de 50 anos. No caso de retorno de bens culturais, é necessário que o Estado comprove a saída ilícita desse bem e, ademais, comprove que esse bem não está sendo bem preservado onde ele está.

Então, é interessante perceber que, no caso do bem roubado, eu não preciso provar que o bem está sendo melhor ou pior preservado. Eu tenho simplesmente que provar que ele foi roubado. No caso de um bem exportado ilicitamente, eu tenho tanto que provar a exportação ilícita, quanto provar que, naquele lugar onde ele está, ele não está sendo preservado de forma adequada. E isso é interessante porque dificulta muito o retorno de bens que estão em museus. Muitas vezes os museus têm um programa de preservação voltado a esses bens, ficando muito difícil para o Estado de origem comprovar que esse bem está sendo mal preservado. É realmente uma forma de manter esses bens em seus locais de destino. O convênio da Unidroit traz esses procedimentos, prazos, formas, diz quem são os sujeitos que podem pleitear esse retorno ou restituição, o que deixa a relação um pouco mais objetiva.

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O convênio também prevê que o possuidor de boa-fé deve ser indenizado. No caso, o possuidor de boa-fé tem que comprovar que ele não tinha como saber que aquele bem era roubado. Ele vai ter, portanto, que realmente provar objetivamente isso. E o convênio da Unidroit, como é fácil perceber, é pela repatriação, apesar de trazer procedimentos mais complexos para isso. No entanto, no fim das contas, ele acaba sendo pela repatriação dos bens culturais ao país de origem.

Bom, esses são os documentos internacionais sobre o tema. Nesse terceiro momento, passando pela teoria e depois de passar pelos documentos internacionais, acabei pesquisando um pouco sobre os casos práticos de repatriação de bens culturais e tive como material de estudo uma interessantíssima base de dados chamada Arthemis, que é uma base de dados construída pela universidade de Genebra e que reúne diversos casos, se não me engano são mais de 120 casos, de repatriação de bens culturais. São casos diversos, por exemplo, casos de saque de bens culturais na época do nazismo, casos de saques de bens culturais de comunidades tribais ou de comunidades indígenas, enfim, são muitos os casos relatados nessa base de dados. A partir dessa fonte de pesquisa, eu pude perceber certa desigualdade entre os requerentes, ou seja, aqueles países ou aquelas pessoas que requerem o bem de volta ao seu estado de origem, e os requeridos, ou seja, os países onde esses bens estão. A partir da análise dessa base de dados, eu pude perceber, por exemplo, que os países requerentes são diversos. No gráfico, por exemplo, não aparecem todos os países requerentes, mas é possível notar que o gráfico é muito colorido e cada cor representa um país diferente. Os países que requerem que o bem retorne, portanto, são diversos. Nessa pesquisa, por exemplo, há mais de 46 países diferentes espalhados na América do Sul, África, Oceania, enfim, em todos os continentes. Já em relação aos países requeridos, o gráfico é muito menos colorido. No caso, os Estados onde estão esses bens são bem mais restritos. No caso dessa pesquisa da base de dados da Arthemis, foram, no total, 13 Estados requeridos, enquanto 46 requerem o bem de volta. Os Estados requeridos, em sua grande maioria, como é possível perceber no gráfico, se dividem basicamente entre América do Norte e Europa. É possível concluir, portanto, que os bens são, em sua maioria, levados de países de IDH baixo para os de IDH alto (isso é, inclusive, uma das conclusões da minha pesquisa em relação a essa base de dados). Muitos países da onde saem esses bens são países de IDH baixo ou médio, e esses bens vão para os países de IDH alto, em sua maioria. Então, é notório perceber que existe sim uma saída de bens culturais de países mais pobres para países mais ricos e que, sim, me parece, ao menos na conclusão dessa pesquisa, que isso é uma continuação da dominação de um país sobre o outro. Então, ainda que o país não seja mais colonizado, por exemplo, ainda que seja um país independente, o fato de que os bens culturais desse país estão em um lugar que não é o seu território de origem, também é uma forma de dominação.

Bom, eu queria ressaltar aqui, de forma rápida, que quero disponibilizar a minha dissertação para vocês, caso vocês tenham interesse em analisar esse ponto especificamente, as leis brasileiras sobre a saída dos bens culturais. É claro que, no Brasil, o patrimônio cultural já é definido como direito fundamental previsto na Constituição Federal, mas, infelizmente, nós não temos uma lei própria para tratar da saída ilícita de bens culturais. Apesar de o Brasil ser signatário, ter ratificado os três documentos internacionais que eu falei aqui, Convenção de Haia, Convenção da Unesco e o Convênio da Unidroit, não há uma lei específica que trate da saída ilícita de bens culturais. O que nós temos, na verdade, são leis esparsas, nas quais, a saída ilícita de bens culturais é tratada de forma muito pontual. O Decreto-Lei nº 25 de 1937 é o nosso documento mais relevante sobre patrimônio cultural, instituindo o mecanismo do tombamento. Nele, está previsto, por exemplo, a obrigação dos comerciantes de obras de arte se cadastrarem perante o Iphan, que irá manter esse cadastro e fazer o controle dos bens tombados que saem do território nacional. Também o Iphan tem um banco de dados de bens desaparecidos, no qual ele faz um trabalho permanente, tanto junto à Interpol quanto à Polícia Federal, sobre esses bens, inclusive está no site do Iphan, é possível ver esse banco de dados, no qual estão relatados diversos bens desaparecidos. E Decreto-Lei nº 25 de 1937, apesar de não ser específico sobre isso, tem algumas normas que tratam do tema da saída ilícita de bens culturais. Já a Lei nº 3.924, de 1961, a Lei da Arqueologia, também trata um pouco da questão da circulação desses bens. Não essa lei, mas a Constituição Federal, determina que os bens arqueológicos são de propriedade da União, e isso faz com que seja mais difícil levar esses bens do Brasil para o exterior. Há, portanto, um controle maior sobre esses bens, justamente porque são bens públicos. E para você circular com esse bem, é necessária uma licença do Iphan. Já a Lei nº 4.845/65 fala sobre a circulação de determinados bens que fazem parte do patrimônio cultural brasileiro e que foram construídos até o período monárquico. É a denominada lei de saída de obras de arte, que foram feitas no Brasil até a monarquia. É uma lei que tem um marco cronológico, que só protege bens que foram feitos até o período monárquico, restringindo a circulação desses bens. Ou seja, também é uma lei pontual, não abarcando todo o patrimônio cultural. A Lei nº 5.471/68, que também é uma lei pontual, cuida da proteção dos livros que foram feitos no Brasil do século XVI ao século XIX. De acordo com a norma, esses bens não podem circular livremente. É necessária uma licença especial do Iphan e, no caso dos livros, também do Ibram. É necessário, portanto, que essa licença seja dada para que esses bens possam circular livremente.

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A Lei nº 11.904/2009 é o Estatuto dos Museus, que trata dos bens musealizados e que também tem uma proteção sobre a circulação desses bens, que não podem circular livremente. Os bens que fazem parte do acervo dos museus têm uma proteção específica através dessa lei. Eles não são tombados necessariamente, mas recebem uma proteção específica por causa dessa norma. O que se percebe, infelizmente, é uma insegurança jurídica no tratamento da proteção do patrimônio cultural em relação à sua saída ilícita. É verdade que o patrimônio cultural, pela Constituição Federal, é muito mais do que os bens tombados. O patrimônio cultural é o conjunto de todos aqueles bens culturais que tenham referência à memória, ação e identidade dos diversos povos que formaram a sociedade brasileira. Então, não só os bens tombados que têm que ser regulados em relação à sua circulação, mas todo aquele bem que compõe o patrimônio cultural.

Então, nessa perspectiva, a legislação nacional, infelizmente, ainda é muito escassa sobre esse tema, mas os problemas, pelo contrário, não são escassos. Eles são muito presentes, inclusive aqui no Ceará nós já tivemos alguns casos de bens culturais que foram exportados ilicitamente, muitos foram roubados, inclusive levados até o Japão, e o Ministério Público Federal está com uma ação tentando trazer esses bens de volta. É uma realidade e a legislação nacional infelizmente não traz a proteção e a segurança necessária para esses bens.

No final da minha pesquisa, eu cheguei a essas conclusões que aqui relatei, que o critério econômico, infelizmente, é o mais utilizado para resolver a questão se o bem vai ficar ou não no seu país de origem, ou se ele vai ficar no país de destino, mas é verdade que esse critério econômico não pode ser o único. Não é porque o país de origem não tem as mesmas condições do país de destino de cuidar daquele bem cultural, que aquele bem não pode retornar ao seu país de origem. Isso me parece, na verdade, é uma dupla punição, pois além do país ter sido explorado em seu patrimônio cultural, ele vai ser mais uma vez punido, no sentido de que ele não vai nem poder cuidar do seu próprio bem.

A questão do patrimônio cultural tem total relação com a identidade do povo, motivo pelo qual o contexto no qual ele está inserido é fundamental. Muitos países tiveram seus bens saqueados e não tem mais nenhuma espécie daquele patrimônio cultural no país de origem. Em alguns casos, de acordo com relatório da Unesco, foi possível observar que alguns países não têm sequer um exemplar da sua própria cultura em seu próprio território, pois já estão espalhados nos países do mundo inteiro, em especial nos mais ricos.

Foi possível observar que há uma tendência internacional pela repatriação, de acordo com os documentos internacionais e a legislação nacional. No entanto, as normas ainda não suficientes. É necessária uma legislação muito mais específica em âmbito nacional e que trate o patrimônio cultural a partir da Constituição, que dê um novo marco nessa questão da proteção dos direitos culturais, em especial do patrimônio cultural. É necessário que essa nova percepção da Constituição Federal também vá para a legislação infraconstitucional.

E, para terminar, eu trago de novo outra imagem. Nesse caso, foi um bem cultural que foi devolvido para a Tailândia. Essa obra se chama “Phra Nara Lintel”, é uma obra do século X, na verdade, entre o século X e o século XII, não é muito preciso quando ela foi feita. Ela foi devolvida em 1978 depois de ter passado mais de 30 anos no país de destino, e foi uma grande festa. No caso, o bem foi devolvido pela Inglaterra, se não me engano.

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Então, eu fico aqui à disposição de vocês. Realmente, Marisa, é um tema que eu adoro, então eu tenho a maior vontade de ficar falando sobre ele. E agradeço a atenção de todos, muito obrigada.

Marisa:

A gente agradece demais a Cecília e me coloco à disposição de vocês, caso tenham questionamentos, perguntas. Com certeza, é um tema, de certa forma, novo para muitos de vocês, para muitos de nós, né? A própria Cecília disse, no início, que há poucos trabalhos, poucas pesquisas no Brasil a respeito, e é óbvio que, se há poucas pesquisas, temos poucas informações também. A respeito desse tema, por ocasião de uns dos encontros de direitos culturais que o pessoal do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais realiza, houve um deles que discutiu muito a questão da repatriação. Então é muito interessante nós percebermos como esse assunto vem chegando até nós gradativamente. Nós temos aqui o Denis que está convidando a Cecília para escrever um artigo para a revista cultural que ele possui. Tá aí Cecília, uma boa oportunidade.

Cecília:

Muito legal, com certeza eu vou gostar, porque se for para falar desse tema, eu falo sem parar!

Marisa:

Ótimo. A Meire Quinta está perguntando se você pode falar sobre quando os bens são obras sagradas. Não sei se há algum estudo específico a respeito desse tipo de obra, ou legislação específica.

Cecília:

Sobre obras que são sagradas, não sei se ela está se referindo a sagradas no sentido de que são obras referentes a determinadas religiões, ou para determinadas comunidades que são tidas como sagradas, né? Então, há os movimentos internacionais... a determinadas religiões, né? Pois é. Não existe uma proteção específica para um bem cultural por ele ser representante de uma determinada religião. Não há essa diferença. No caso brasileiro, ele pode ser tombado, por ter referência à identidade, memória ou ação de alguns dos povos formadores da sociedade brasileira, mas não há uma proteção específica. É interessante perceber, no entanto que bens que são sagrados para comunidades autóctones, comunidades tribais ou comunidades indígenas, ou seja, comunidades que são minoritárias, esses bens têm uma proteção diferenciada no âmbito dos documentos internacionais. Muitas vezes, essas comunidades estão em uma posição minoritária dentro do seu país do qual e quando esse bem é sagrado para determinada comunidade, a repatriação se dá de forma muito mais forte. O argumento é muito mais forte quando aquele bem sagrado para determinada comunidade. Um caso interessante que aconteceu, inclusive aqui no Brasil, foi o caso de uma comunidade indígena, na qual foram retiradas das pessoas dessa comunidade indígena amostras de sangue. Cientistas chegaram aqui no Brasil, foram até essa comunidade indígena e retiraram o sangue dessas pessoas para fins de análise científica. Levaram as amostras para os Estados Unidos e lá elas ficaram, eram diversas ampolas de sangue. A comunidade indígena se sentiu extremamente ofendida, pois, para ela, o sangue é sagrado. Então, a comunidade indígena procurou o Ministério Público Federal e ele entrou com um pedido perante a universidade americana para que o sangue fosse devolvido. Foi todo um trabalho de diplomacia, de conversa entre esses dois países, e, finalmente, acredito que foi em 2011, se não me engano, essas ampolas de sangue foram devolvidas pela universidade, e houve toda uma cerimônia, todo um cerimonial para enterrar essas ampolas de sangue na comunidade indígena. Então, para eles, era sagrado que aquele sangue retornasse ao seu lugar de origem, porque, se aquilo lá não acontecesse, é como se a alma daquelas pessoas nunca pudesse descansar. Houve toda uma cerimônia, o sangue foi devolvido, e esse se tornou um emblemático sobre essa questão de como um bem cultural pode ser compreendido como algo sagrado, porque, nesses casos, o que está sendo protegido é a cultura desse povo. Então, se esse bem foi retirado, no caso um sangue, não necessariamente pode ser considerado juridicamente como um patrimônio cultural, mas o que ele representa para a comunidade o torna um patrimônio cultural para aquela comunidade. Então, ele foi devolvido para essa comunidade, e é um caso que ficou muito famoso aqui no Brasil.

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Marisa:

O Denis está pedindo o seu e-mail, para ele enviar detalhes da revista, caso você queira escrever. E Guilliano está dizendo que “O segredo da tribo”, filme documentário, retrata o caso relatado por você, Cecília, sobre a tribo indígena, o caso teve cobertura dos jornais.

Cecília:

É verdade, foi um caso que ficou muito famoso e foi muito interessante não é? “O Segredo da Tribo, vou anotar aqui.

Marisa:

Cecília, eu gostaria de fazer um comentário, nem tanto é uma pergunta. A gente observa que a partir das teorias que você foi pontuando, principalmente as teorias do nacionalismo cultural e internacionalismo, e as normativas, percebe-se uma tendência muito grande pela repatriação, não é? Em todas as normativas e em grande parte das discussões. Eu acho interessante pensarmos o nosso caso brasileiro, porque nós tivemos realmente muitos envios de obras e de objetos indígenas, arqueológicos, que foram para outros países... e eu fico me perguntando se a partir do momento que nós fizemos, essa, digamos, essa mudança de pensamento sobre o patrimônio, a partir da discussão sobre o patrimônio imaterial, se essa necessidade de requerer essas obras, tornou-se ainda maior, pensando a repatriação e pensando as obras. Pensando o patrimônio como algo intrínseco, patrimônio material e imaterial, pensando na simbologia dessas obras também. Então, é uma questão que me veio à medida que você ia falando. Eu ficava pensando: bem, esse momento que nós passamos de uma discussão sobre patrimônio material e imaterial, é na verdade também uma retomada de postura a respeito do nosso patrimônio, na necessária busca de trazer essas obras que estão fora, esses objetos. Inclusive objetos que são sagrados para vários grupos também.

Cecília:

É verdade. Essa compreensão do patrimônio, tanto no seu aspecto material quanto imaterial, é fundamental para essa questão da análise da repatriação, porque, muitas vezes, o bem sai do seu país de origem, mas cria uma relação com o país de destino. Existem casos em que o bem está no país de destino há vários anos. Então, de toda forma, ele criou uma identidade naquele país também, não é? O país de destino acaba criando uma relação com aquele bem. E aí essa questão imaterial é relevantíssima. Na verdade, a nossa própria legislação nacional tem dificuldade de compreender a questão do patrimônio no seu aspecto material e imaterial. Nós ainda temos um pensamento de que “ah, tombamento é material, registro é imaterial”, aquela coisa. E, muitas vezes, isso, na prática, dá um problema imenso porque o bem material não é só a casinha ali, não é só o prédio. Ele tem toda uma percepção imaterial que, se não existir, não faz o menor sentido ele ser cuidado, ser preservado. É assim tanto com os bens móveis, que são esses bens que podem ser deslocados, quanto com os bens culturais imóveis, eles também têm esse aspecto imaterial. O caso não é simplesmente um bem que vai ter que ser protegido pela sua beleza, ou pela sua estética, pela sua forma, mas pelo que ele representa para aquela comunidade de origem. Então, se ele sai do seu contexto, de onde ele está, do seu contexto de origem, então fica muito complicado você compreender esse aspecto imaterial. Então, muitas vezes, ele está num país de destino, num museu muito bem cuidado, muito bem preservado, mas aquela comunidade de origem perdeu aquele significado, perdeu aquele bem que era referência para ela. Então, realmente essa percepção do imaterial muda a forma como a gente vê o patrimônio cultural, com certeza.

Marisa:

Nós temos uma pergunta do Daniel. Ele pergunta se o exercício do direito de preempção por parte de instituições públicas quando relacionado a obras de arte no nosso próprio país não ajudaria a filtrar determinadas obras roubadas?

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Cecília:

É, com certeza. O direito de preempção, no caso, ajuda a controlar essa saída desses bens. Mas, no caso, somente de bens que sejam de propriedade pública, né? Ou então bens que estejam de alguma forma protegidas pelo tombamento, por exemplo. Não são todas as obras, não são todos os bens que, apesar de ser patrimônio cultural, estão protegidos por um instrumento jurídico. Isso é um grande problema do Brasil, de como proteger o patrimônio cultural. A Constituição Federal previu que o patrimônio cultural é tanto material quanto imaterial, que é aquele referente à identidade, memória ou ação dos diversos povos, que são saberes, fazeres, todo aquele conceito amplo. Mas, como é que eu vou fazer com que esses tantos de bens sejam protegidos? Se o bem for público, se o bem for de propriedade do Estado, e aí, para ser de propriedade do Estado, teria que ser desapropriado, ou então teria que ser propriedade do Estado mediante lei, uma lei que determinasse, no caso, por exemplo, dos bens arqueológicos. Aí fica mais fácil, controlar a saída desses bens. Se forem tombados, aí sim, tem uma restrição maior. Um bem que esteja a serviço do museu, também facilita mais. Agora, um bem que é patrimônio cultural, mas que não está protegido por nenhum instrumento jurídico, aí como é que faz? Aí fica muito difícil você controlar a saída desse bem. Mas, sim, o direito de preempção é uma possibilidade que o próprio Estado pode se utilizar, no caso, requisitando esses bens para si. É uma possibilidade.

Marisa:

Tem uma pergunta do Wilson: parabéns pela exposição. Eu fico pensando no caso de devolução de bens a países com risco de grupos radicais, como o ISIS, que destroem peças de arte milenares. Nesse caso, o protetorado internacional é a UNESCO?

Cecília:

Então... é... Nesses casos, é interessante, né? Porque são países que estão dominados por grupos terroristas ou grupos radicais que, principalmente o estado islâmico, vêm destruindo vários sítios arqueológicos, inclusive sítios que são patrimônio da humanidade pela Unesco. A Unesco, inclusive, teve reuniões em 2017 sobre a proteção desses bens, reuniões de urgência, para tratar como é que faria para tentar proteger esses bens, porque, realmente, a forma como o estado islâmico, por exemplo, se utiliza do patrimônio cultural para dominação é a forma mais antiga possível, ou seja, saqueando bens culturais, destruindo o patrimônio cultural da civilização dominada, que, para eles, é a civilização que deve ser destruída. O que eles fazem não é nada novo, é um procedimento já bastante utilizado antigamente. Infelizmente, eles vêm se utilizando muito disso. No caso, sim, a proteção é da Unesco, principalmente porque vários desses sítios são patrimônio da humanidade, título concedido pela Unesco. Então, sim, seria inclusive obrigação da ONU, não só da Unesco, que é um braço da ONU, mas da própria ONU, do Conselho de Segurança da ONU, que está  muito próximo desse conflito nesses países. Com certeza eles têm uma obrigação de conter esses danos, que já são imensuráveis ao patrimônio cultural.

Marisa:

Eu quero agradecer demais a Cecília por trazer todas essas informações para nós. E gostaria também de convidar a todos para a próxima webconferência, que vai acontecer no dia 29 de maio. Vai ser numa terça-feira, dessa vez, tá pessoal? E nós vamos ter o tema “Interculturalidade transdisciplinaridade e patrimônio cultural”. Será com a professora Luciana de Oliveira Dias, que é daqui da UFG. Ela atua no Núcleo Takinahaky e também no Núcleo de Direitos Humanos conosco. Temos outra pergunta aqui, mas eu já finalizo então e repasso para a Cecília com a pergunta. Finalizo reforçando que no dia 29 teremos a próxima, agradecendo a Cecília e reforçando a questão dos certificados. Porque as pessoas têm mandado e-mail perguntando, então sempre é bom em cada encontro informar. Os certificados serão emitidos ao final de todo o ciclo. São 10 webconferências que vão até o dia 3 de julho. Após o dia 3 de julho nós começaremos a emitir os certificados, porque vão ser contados a partir da quantidade de webconferências que cada pessoa assistiu. Se você assistiu a uma, você vai ter um certificado de duas horas. Se você assistiu as 10, vai ter um certificado de 20 horas. Ok, pessoal? E nós encaminharemos isso assim que terminarmos todo o ciclo. A última pergunta para a Cecília: “Professora, quando um bem patrimonial artístico pertencente ao município e Estado, com obras de Frei Cafaloni, está em total abandono na estação ferroviária em Goiânia, qual o procedimento?” Acho que é isso que a Solange gostaria de saber.

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Cecília:

Bom, no caso de um bem que é um patrimônio cultural, que é um bem representante da cultura de um determinado povo, é possível que, caso ele esteja abandonado, é possível tanto ações judiciais quanto administrativas. Administrativamente, perante o Estado, é possível requerer o tombamento desse bem. O tombamento vai fazer com que esse bem seja protegido legalmente, por exemplo. Sendo o caso de um bem que já está em um grande processo de deterioração, já está bem deteriorado, o que eu imagino que é a ação mais rápida é a própria ação civil pública. A ação civil pública pelo Ministério Público ou mesmo uma ação popular. A ação popular é uma espécie da ação judicial que pode ser pleiteada por qualquer pessoa, qualquer cidadão e, dentre os objetos da ação popular, um deles é a proteção do patrimônio cultural. A ação popular pode ser proposta por qualquer pessoa e, no caso, da pessoa não ter condições de contratar um advogado, é melhor a defensoria pública. No caso da ação civil pública, ela é uma ação que somente determinados entes podem pleitear, e um deles é o Ministério Público, né? Então, seria possível também uma denúncia perante o Ministério Público da cidade pleiteando ação, pleiteando um processo judicial para a proteção desse bem. Então é importante, inclusive, que a sociedade se aproprie desses mecanismos de proteção ao patrimônio cultural, no caso de um bem estar sendo deteriorado pelo próprio Estado.

Marisa:

Bem pessoal, chegamos ao final por hoje. Mais uma vez nossos agradecimentos a todos vocês que participam desse ciclo, os conferencistas e os que assistem, porque sem todos vocês nós não conseguiríamos desenvolver esse projeto, que nos é muito caro, porque nós ficamos felizes quando podemos compartilhar tantas informações que nem sempre chegam através de outras vias. Nós nos encontramos no dia 29 de maio para mais uma webconferência. Abraço a todos, e ótima noite para nós.