Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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Patrimônio cultural na construção de identidade(s) política(s)

5ª Webconferência – 02/05/2018

Marisa:

Recebemos hoje o Gabriel, que é um dos participantes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR. O terceiro ciclo de webconferências Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania é um projeto de extensão e ele decorre da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania. É um projeto que é desenvolvido em parceria entre a Universidade Federal de Goiás por meio do nosso Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos e a Universidade de Fortaleza por meio do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Hoje, infelizmente, até o momento, a gente não conseguiu contar com o professor Humberto Cunha, que está ausente, está fora do País e mandou uma mensagem desejando uma ótima conferência para todos nós e disse ainda que se conseguisse, ia tentar acessar por lá, tomara que ele consiga.

Algumas informações, pessoal: eu gosto de reforçar sempre em relação aos certificados que serão obtidos somente lá no final, depois da última webconferência, que acontece no dia 3 de julho. Posteriormente a isso, nós vamos organizar todas as frequências para elaborar os certificados de acordo com a frequência de cada um de vocês. Gostaria de antecipar que a nossa próxima webconferência acontece do dia 16 de maio, uma quarta-feira também, e será ministrada pela Cecília Nunes Rabelo, também do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR. A Cecília vai falar sobre circulação de bens culturais - perspectiva jurídica. Eu gostaria que vocês já anotassem nas suas agendas esse próximo encontro e nós encaminharemos em breve o banner de divulgação.

Mas, voltando ao dia de hoje, e já iniciando nossas atividades da conferência, eu gostaria de apresentar o Gabriel Barroso Fortes, que vai falar sobre “Patrimônio cultural na construção de identidade(s) política(s)”. Eu gostaria de passar a palavra ao Gabriel, deixo ele à vontade caso queira se apresentar para o pessoal e iniciar a nossa conferência de hoje, e que seja uma ótima noite para todos nós.

Gabriel:

Boa noite! Obrigado, Marisa. Boa noite a todo mundo que está nos assistindo. Como a Marisa já disse, meu nome é Gabriel, sou mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza, especialista em direito processual pelo Centro Universitário 7 de Setembro e faço parte do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da UNIFOR. Por conta disso, recebi o convite da professora Marisa, minha querida amiga, parceira de outros projetos não só acadêmicos, mas projetos artísticos, vamos dizer assim (risos). Fiquei muito feliz com o convite e muito satisfeito em poder participar e tentar contribuir um pouco com essa discussão sobre patrimônio cultural. Pra gente não demorar mais do que o previsto... Marisa, a gente vai até que horas?

Marisa:

Nós trabalhamos com uma média de 45 minutos a uma hora da sua fala, e depois abriremos o debate na conversa. Nosso limite é entre 86 e 45 minutos, vamos até umas 20h50.

Gabriel:

Tudo bem. Sem muitas delongas, vamos lá.

O título é “patrimônio cultural na construção de identidades políticas”. Acredito que vamos tratar o patrimônio numa perspectiva múltipla, até porque a gente está numa especialização interdisciplinar, ou seja, tem uma gama muito diversificada de alunos, de várias formações. Certamente, esse é um assunto que passeia por todas as áreas do pessoal que está aqui nos assistindo. Eu tenho formação na área jurídica, sou advogado, os estudos que eu faço “fora” do direito – digamos assim – são no âmbito acadêmico de pesquisas específicas que trazem uma confluência de perspectivas sobre essa temática. Vamos tentar conversar um pouquinho sobre o assunto.

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Eu preparei esse material, esses slides, eu não sei se eles vão ser muito esclarecedores ou se serão detalhistas demais, mas eu realmente tentei compor o máximo possível de informações para que a gente conseguisse um raciocínio comum e para que vocês não fiquem entediados aí, acabem dormindo... vocês ficam pelo menos lendo o material (risos). Então, vamos começar.

Vamos falar sobre patrimônio cultural. A primeira coisa que eu queria destacar: a gente vai fazer um estudo meio cíclico, envolvendo alguns pontos centrais naquilo que eu entendi que seria essencial nessa compreensão do patrimônio cultural e a sua influência sobre identidades políticas e vice-versa. Então, a primeira coisa que temos que fazer aqui é um recorte, vamos dizer, um recorte histórico. Pra gente falar de patrimônio cultural ao longo do tempo, mas para o nosso objeto de estudo, no caso do objeto de pesquisa do qual a gente está tratando, eu compreendo o patrimônio cultural nessa leitura a partir, principalmente, da modernidade, da idade moderna como a gente chama politicamente.

O recorte histórico vai ser a partir daí, porque o critério em questão é a relação entre Estado moderno e patrimônio cultural. Por que exatamente isso? Qual a grande questão que eu estou propondo aqui? É o patrimônio cultural como elemento essencial na formação do Estado moderno-contemporâneo, envolvido na perspectiva do nacionalismo.

Em suma, estamos tratando de identidades políticas. E qual o ponto central? O nacionalismo.

Aonde podemos ir com isso? Primeiro ponto: a gente tem que analisar esse recorte nesta perspectiva: identidade a partir do nacionalismo. Porque, certamente, numa perspectiva moderna, e até mesmo atual, é muito difícil que ninguém se identifique como cidadão nacional. Em outras palavras, a identidade com que a gente se identifica até hoje costuma ser atrelada à ideia de nação.

Dificilmente alguém não se identifique dessa forma. Só que essa identificação não tem só uma dimensão cultural. Ela principalmente tem uma dimensão política.

E essa dimensão política afeta a estrutura tanto do sistema internacional, porque, afinal de contas, até hoje nós vivemos num mundo de “nações” unidas, ou seja, o nacionalismo é que dá os contornos da formação política e jurídica do sistema internacional; mas, também, obviamente a estruturação dos sistemas nacionais. A ordenação da vida dentro dos países é calcada dentro de uma perspectiva de nação. Esse é o primeiro ponto que podemos ter em mente.

A perspectiva jurídica que trago pra cá é justamente de Estado, nação e constitucionalismo. São três elementos indissociáveis em nosso estudo, e eu quero destacar, em primeiro lugar, com esse recorte, a transição da modernidade. Vamos falar do Estado que aparece na idade moderna... o que quero trazer à mente de vocês é que há uma evolução na perspectiva da identidade, quando se fala sobre nacionalismo.

Ele aparece como um movimento político, principalmente, a partir do final do século XVIII: o movimento das revoluções liberais, especialmente a revolução francesa e a americana, revolução de independência.

Essas duas revoluções são exemplos de revoluções liberais. O que quero é destacar que o nacionalismo, como a gente conhece até hoje, foi gerado, melhor dizendo, foi gerenciado numa perspectiva liberal. E isso quer dizer o quê? Que ele está intrinsecamente atrelado ao movimento do constitucionalismo.

O movimento de liberalismo iria desaguar no movimento de constitucionalismo, que ao mesmo tempo vai servir de base e, na verdade, vai pressupor um movimento cultural e político chamado nacionalismo.

O constitucionalismo, antes de tudo, é um movimento político e ideológico, que traz o nacionalismo como um discurso, um pressuposto de sua unidade. Em outras palavras, quando a gente fala de constitucionalismo, por detrás dele, na base dele, está a ideia de nação, a ideia de nacionalismo, e, é por isso, que o liberalismo e nacionalismo são coisas indissociáveis. Vamos entender isso melhor um pouquinho mais adiante.

Então, de início, do que estamos tratando? Da nação como comunidade simbólica. Pra compreender a relação entre constitucionalismo, nação e Estado, é necessário entender qual o papel de cada um desses elementos na formação da identidade moderna, da identidade política moderna. Nessa confluência de fatores – vamos dizer assim – a nação nesse tripé funciona como um elemento simbólico. A nação existe como comunidade simbólica, ela exerce uma representatividade, no sentido de que ela provê, do imaginário cultural, o elemento de identificação para que esses outros componentes do tripé possam se fincar. A nação, portanto, aparece como um conjunto de significados políticos.

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O nacionalismo funciona como um sistema de representação cultural, ou seja, ele tem uma função simbólica: firmação do constitucionalismo, a criação do Estado contemporâneo. Como isso funcionou? Qual a grande questão? O nosso foco, aqui, deve ser a formação da identidade: o que devemos fazer é identificar a cultura nacional como uma estruturação de poder. Mas, por quê? O que acontece nesse movimento?

Percebam que o constitucionalismo que vem eclodindo naquela época, o movimento constitucional vem baseado em discursos de unidade de uma comunidade que decide fazer uma Constituição para organizar um Estado... é aí que esses três elementos vão se encontrando. Só que a ação é formada numa perspectiva cultural, que esconde, porém, uma finalidade política. Existe, por trás, um discurso de construção de identidade, no qual o nacionalismo aparece como um grande vetor não só de agregação, mas de disfarce dos fatores políticos e sociais que estão por trás disso tudo.

Como assim? O nacionalismo opera como um discurso que precisa se firmar a partir de instituições e de dispositivos que servem justamente para dar base e transmitir sua lógica discursiva que vai gerar práticas sociais, de aceitação e perpetuação de uma determinada condição, que é montada a partir desse próprio discurso.

Como isso funciona? A gente está tratando de uma época em que revoluções liberais põem abaixo governos anteriores, tentam se afirmar a partir da adoção de dispositivos e instituições que vão firmar uma nova perspectiva comunitária.

O que precisamos destacar aqui? O patrimônio cultural: ele vai ser um grande símbolo de representação dessa passagem de poder.

Quando mais do que um novo grupo, quando um novo discurso, um novo modo de composição social assume as rédeas da comunidade, é necessário criar a simbologia que irá representar esse novo estado-de-coisas. Então, essas instituições e dispositivos vão ajudar a criar um patrimônio cultural oficial, nacional, em detrimento dos outros símbolos, como forma de forjar, reformular e reforçar uma nova identidade política, que também é cultural.

E aqui podemos começar a falar da doutrina do poder constituinte. Em que sentido? O poder constituinte que até hoje a gente trata como uma força política que determina como se organiza uma sociedade... essa doutrina aparece com um discurso de ordenação e reordenação social.

O poder constituinte, como se observa, sempre volta à tona em momentos de crise e, nesse intuito, com seu discurso de reordenar coisas. Se olharmos o Brasil, por exemplo, perceberemos que há ciclos constitucionais na nossa história. Houve reviravoltas sociais, econômicas e políticas, que resultaram em reformulações constitucionais; assim, a cada período, a cada modificação extrema na nossa sociedade, o que se faz geralmente é como apresentar uma nova formulação. Como se fosse pressionar o botão de reset da máquina política.

Mas, enfim, o poder constituinte funciona nessa perspectiva, ele sempre traz esse discurso e parte do pressuposto – é a base da sua doutrina – de que existe uma nação com força de organizar um determinado Estado. E isso culmina no constitucionalismo como uma espécie de pacto social. Então, o nacionalismo – veremos isso ao longo da exposição – funcionaria como um pressuposto dessa unidade constitucional, que vai delimitar todas as formas de fazer e viver dentro do Estado; o que em algum momento só é possível por conta do discurso nacional, que pressupõe uma nação com força capaz de fazer isso.

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Retomando, esse movimento constitucional, o constitucionalismo moderno aparece como um discurso liberal. É da época do liberalismo, das revoluções das quais a gente está falando. De início, o constitucionalismo cresce em duas perspectivas – vamos dizer assim – como uma teoria e ideologia de limitação do poder. E, de fato, a gente fala que o constitucionalismo tem essa vertente mesmo. Tanto que se fala sempre da separação de poderes, limitação de poderes absolutos, enfim, garantias de liberdade como preceitos constitucionais. Ele funciona nessa dimensão de estruturação da sociedade e, ao mesmo tempo, assume uma perspectiva de teoria normativa da política. Ou seja, o constitucionalismo é uma maneira de formular regras para o exercício de poder.

Contudo, além de ser uma teoria de limitação do poder, também aparece como um movimento cultural, sócio político cultural. Ele aparece como uma reformulação das questões postas, das proposições de força que existem na sociedade, enfim, é um movimento que busca novas fundamentações, que busca se refundamentar e confrontar sempre as instituições anteriores. Então, existe essa perspectiva cultural no movimento do constitucionalismo, além da própria questão política em si.

E o que constitucionalismo traz de marcante para a discussão em torno do patrimônio cultural e, consequentemente, das identidades? Ora, ele traz – se a gente fala dos exemplos francês e americano, que são aqueles que fundamentaram e deram as bases para os movimentos constitucionais que até hoje vemos acontecer mundo afora – uma inovação política, que é justamente seu caráter “democrático”.

O constitucionalismo apareceu como discurso democrático, ou seja, uma ordenação das forças políticas legitimada pelo povo, portanto, que tem legitimação popular. O que vai dar força a esse movimento, essa proposição de equilíbrio constitucional, é justamente a ideia de que há legitimidade nele. Assim, o elemento democrático é introduzido no Estado constitucional, e não só trata da limitação do poder por ele vir do povo (com o povo delimitando o exercício do poder), mas acaba legitimando as formas e as normas desse Estado, isto é, a política e o próprio direito.

Já o discurso do Estado-nação vai partir dum pressuposto democrático, que traça um processo de continuidade transpessoal, dinâmico e inerente, no sentido de que há uma massa política maior, em que todos podem participar, numa perspectiva política participativa, que deságua na autodeterminação, ou seja, o próprio povo que decidiria as suas regras de convivência, o modo como se postar politicamente.

O direito, como resultado dessa reformulação, vai aparecer como um elemento que tem o monopólio da própria história, num sentido de que o direito cria, aliás, ele é criado como se fosse uma mera consequência de fatores “naturais”, embora, claro, se atribua o protagonismo à população. E assim o direito é estruturado e repassado pelos teóricos do próprio direito como se ele tivesse uma história sem agentes, sem influências, como se fosse um desígnio comum e consequente do próprio movimento social em si. Tudo isso legitimado abstratamente pela ideia de participação democrática.

Assim, o discurso democrático do nacionalismo aparece como disfarce das relações de poder. Por quê? Porque ele se mostra – numa maneira até simplória de falar – como um movimento social que tenta conter os abusos de um Estado absolutista. Esse é o exemplo francês. Acho que todo mundo tem noção disso. Essa evolução no Estado da França, que foi um grande exemplo político para nossa história... o constitucionalismo é esse movimento, que tenta reformular as bases jurídicas numa sociedade em que o poder é descrito de maneira absoluta. É basicamente isso.

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Mas, voltando para a questão central, o discurso que está por detrás do constitucionalismo é um discurso democrático, que vai abraçar a ideia de nação. Só que é um discurso que vai mais do que legitimar todo um movimento: ele acaba disfarçando as relações de poder que existem nesse próprio movimento.

Na verdade, o constitucionalismo opera como um jogo de dominação. Qual o papel do discurso? É fazer crer que todos os envolvidos fazem parte dessa mesma massa constitucional – o pressuposto de unidade do qual a gente está falando.

No texto constitucional estão inseridas questões, decisões pré-constitucionais, como se todos os cidadãos – vamos dizer assim – tivessem as mesmas aspirações políticas, partissem das mesmas premissas econômicas, sociais, partilhassem essa mesma imagem, essa mesma memória, essa cultura. E assim vemos um movimento uniforme social que desaguou na estruturação da carta constitucional, que, por sua vez, está estruturando o modo de se viver numa sociedade... O que quero dizer? É no constitucionalismo que o nacionalismo e o liberalismo vão se encontrar.

Tanto o nacionalismo quanto o liberalismo vão confluir e se encontrar no constitucionalismo, e somente através dele terão vasão. Sem o constitucionalismo, não conheceríamos esse espectro político do nacionalismo como vemos hoje e nem do liberalismo em si. Só que, mais uma vez, quero pôr em questão que esse constitucionalismo, apesar de todos os discursos democráticos, falseia uma realidade de poder, porque ele parte de pressupostos de consensos nacionais, que tendem a ser improváveis, e é isso que a gente vai tentar verificar mais adiante.

Em resumo, nesta primeira parte vimos que Estado e constitucionalismo aparecem inerentes à lógica de nacionalismo. Ou seja, vimos o Estado como nação constituinte. Pudemos ver toda a confluência.

Agora veremos numa outra perspectiva, isso que vocês estão acompanhando nos slides: a nação como Estado constitucional. Assim, a gente finaliza a primeira parte tendo como entendimento o fato de que esse Estado-nação, que é o Estado que ainda hoje se vê na sociedade internacional, enfim, o que a gente vivencia politicamente, esse Estado-nação só existe a partir de um movimento constitucional. Existia a nação antes? Existia Estado antes? Sim, certamente, isso não pode nos escapar. Não estou dizendo que isso foi inventado, que esses conceitos surgiram a partir desses movimentos liberais. O que eu quero dizer é que só na “constituição” é que foi possível juntar Estado e nação numa coisa só e, a partir daí, produzir uma nova forma de compreender as relações sociais e políticas dentro de toda essa reestruturação, e aí que a gente vai começar a tratar especificamente da problemática da identidade.

Então, entramos na segunda parte, que seria voltada para enxergar a nação como Estado constitucional.

O Estado, numa perspectiva constitucional, aparece como unidade autônoma, ou seja, está acima e abaixo de qualquer outro tipo de unidade, e, por ser autônomo, também é independente dessas outras unidades, as quais também são igualmente autônomas. Isso tem uma dimensão jurídica e política. Por exemplo, o direito internacional até hoje é baseado nessa lógica de autonomia de cada Estado: numa disputa de poder internacional, nenhum Estado pode se sobrepor ao outro. Então, essa é a perspectiva da autonomia do Estado com uma unidade política própria.

Mas qual o problema disso? Voltando à ideia... qual é a lógica do discurso constituinte? Do discurso constitucional de que a gente está falando? É como se fosse uma nação que decide formular uma constituição, ou seja, a nação se organizaria e tentaria se reestruturar politicamente, criaria um Estado constitucionalizado; ela cria um Estado com separação de poderes, que prevê direitos fundamentais etc. Mas podemos analisar isso numa perspectiva crítica?

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Em primeiro lugar, o que se pode ter em conta é que isso é falso. Não é a nação que cria o Estado, mas o contrário.

Como diz o professor Pierre Bourdieu, existe algum fetichismo social no direito constitucional. Essa crença de que o povo criou o Estado é uma perspectiva falsa. Na verdade, Bourdieu até fala, a lógica de Estado, ou melhor, a lógica do Estado tem a finalidade justamente de nos fazer crer que não existe um problema do Estado. O Estado não teria uma problemática na sua concepção, a gente acaba pensando a problemática política como uma coisa à parte, orgânica, erro do próprio funcionamento da política.

Mas o que Bourdieu falava, por exemplo, é que a problemática do Estado era própria da ideia de Estado em si... bom, não vou entrar muito nessa perspectiva agora. O que estou querendo dizer é, como alguns autores explicam, por exemplo, Eric Hobsbawn dizia: as nações não formam os Estados; as nações não formam o movimento nacional, não formam os nacionalismos: é o oposto.

O Estado é que forma a nação. A ordem lógica é essa. E, se o Estado forma a nação, ele vai se desenvolver primeiro, numa perspectiva tal que ele precise buscar elementos de legitimação da sua própria existência, e é aí que o discurso democrático ganha vigor.

No material que apresento aqui, nos slides, eu resumi o pensamento de alguns autores que estudam o assunto, como Hardt e Negri, que falam justamente sobre isso tudo, sobre o desenvolvimento do conceito de nação. Pra eles, a ideia de nação é anterior ao movimento do constitucionalismo; aliás, o conceito de nação se desenvolve, inclusive, na própria perspectiva do Estado absolutista, anterior, portanto, aos movimentos constitucionais; vem do Estado patrimonial, como se diz, no qual até a religião era de propriedade do monarca.

O Estado absolutista vai se montar, vai se estruturar, duma maneira tão forte enquanto nação – digamos assim – que ele exerce um monopólio de poder em todo o território e absorve todas as unidades políticas menores; tudo passa a ser um Estado só, não há fragmentações de poder: esse é o papel do Estado absolutista na formação a ideia de nação, comunidade única.

A identidade da nação é construída, de tal modo, através da figura do monarca. Todavia, o que acontece, quando a gente passa pelo crivo do constitucionalismo? Acontece essa reformulação de poder: o espírito da nação. A identidade imaterial deixa de ser o corpo divino do rei e agora vai ser respaldado pela própria ideia de nação, pela confluência do povo.

O que muda um pouco a figura, mas não muda muito a essência: deixa-se a legitimação divina do poder e passa-se à legitimação, igualmente abstrata, de toda uma comunidade. A diferença, então, é só que o liberalismo vai mudar a fundamentação de poder. Esse é o papel do constitucionalismo: tirar o poder da ordem divina – vamos dizer assim – e atribuir a essa ordem quase-divina, abstrata, que seria o povo, que seria a nação.

Portanto, a identidade nacional funciona como uma identidade cultural, que integra uma população, mas também fundamenta uma lógica de funcionamento estatal. Cria-se, num determinado território, uma comunidade, que tem uma identidade, que tem uma história, que tem uma herança, que tem, enfim, uma forma de autoidentificação e se autolegitima. Há uma essência transcendental na ideia de nação, que se espalha por todo o território e fundamenta o poder que é exercido ali. A imagem, então, é justamente de que o Estado constitucional é formado a partir dessa agregação nacional.

Noutra perspectiva, Jürgen Habermas também fala sobre isso, mas sobre como Estado nacional obteve alguns êxitos históricos, teve méritos para se firmar. O movimento nacionalista não poderia acontecer, afinal, se não tivesse como se perpetuar.

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Então, por um lado, a autoridade estatal institucionalizada serviu para equalizar as disputas de poder: um monopólio do exercício, o monopólio do uso da força, garantindo uma ordenação interna, uma espécie de paz nacional. Nós estamos falando de “pressupostos de consenso”, com a formação desse Estado, pelo menos no discurso.

O outro êxito do nacionalismo foi justamente separar a sociedade do Estado, e é nisso que o constitucionalismo trabalha: nessa sociedade, o povo, através de uma regra jurídica, que seria a constituição, determina qual é o papel do Estado, delimita o poder estatal. A contenção, a separação de poderes é o grande preceito constitucional.

Mas isso traz contrastes. Essa separação (Estado x sociedade) usa um novo modo de legitimação, que vai permitir nova integração social, afastada do Estado; e o corpo estatal burocrático passa a ser uma coisa autônoma, ou seja, não mais o rei a dizer, por exemplo, “a lei sou eu, o Estado sou eu”. Essa separação fica nítida com o movimento constitucional.

Então, o discurso da nação também teria esse mérito, para fazer essa separação. De um lado, um Estado que nada deve produzir – e aqui está a propensão do movimento do liberalismo – e que apenas deve criar infraestruturas para que os processos sociais de produção aconteçam, com base num direito de liberdade, a partir do qual se determina o campo do lícito; e, de outro lado, uma liberdade de atuação da sociedade, dos indivíduos, tendo o Estado apenas que garantir a ordem: não deve intervir, não deve participar, não deve produzir. É assim que se estrutura o nosso Estado constitucional.

Na base disso tudo está o discurso da nação, novamente como Habermas nos fala, e esse discurso ensejará três consequências ao longo da história: ele vai levar à (i) estruturação jurídica dessa coesão social, que agora está baseada na soberania popular; permite, por outro lado, (ii) uma fusão artificial das antigas lealdades, das antigas identidades, das antigas comunidades, uma fusão artificial numa comunidade só, uma comunidade homogênea, que não tem forma e nem microidentidades. Tudo isso calcado na ideia de (iii) formação duma nova consciência nacional. Esse é o discurso do nacionalismo, materializado, ele está embasado nisso; discurso este que vai permitir justamente a fluidez constitucional.

Nessa perspectiva, é possível perceber que a nação aparece não como sujeito, mas como artefato, um objeto de discurso. Isso tudo que estou falando é para provocar a ideia de que a nação é criada dentro do discurso do nacionalismo; ela não aparece como um movimento autônomo. Na verdade, ela é objeto de um discurso, que gera realidades, práticas sociais. Mas como funciona essa dinâmica?

O substrato nacional é pré-político, no sentido de que antes de criarmos um Estado, ou seja, antes de chegar no aspecto político, precisamos de unidade nacional... por isso coloquei até aqui no nosso slide: o nacional é “pré-político”, um substrato justamente para a identidade estatal que é o que a gente chama do “político”.

Quero dizer, o Estado, essa lógica do Estado liberal, precisou criar uma nação e, ao mesmo tempo, parece ser anterior ao próprio Estado. Por isso fazemos essa separação entre o que é político e o que é pré-político.

Mas, para embasar esse movimento, foi necessário criar uma nação, com um sistema de representação, que é aparentemente cultural: ninguém nasce com uma identidade nacional, na verdade, essas identidades são formadas, são transformadas, no interior das representações. Assim, a nação parece não só uma identidade cultural, identidade política, mas ela produz seus próprios sentidos. Ficam embutidos no discurso nacional os sentidos do próprio discurso.

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A nação aparece, portanto, como homogeneidade política e cultural, anulando as microidentidades, e pressupondo um consenso, um acordo geral, uma homogeneidade de perspectivas, de identificação... Como funcionaria esse processo?

Alguns pesquisadores, como Stuart Hall, falam sobre isso: a nação, como processo de homogeneização, é justamente um substrato atemporal; para se criar essa identificação, a nação surge como se fosse uma comunidade imaginada, ou seja, ela transpassa a memória (passado), o desejo de viver em conjunto (presente) e a perpetuação da herança cultural (futuro).

Essas são as três perspectivas nas quais você embasaria um discurso nacionalista – passado, presente e futuro. Uma memória imaginada. E aqui o patrimônio cultural vai entrar em destaque... Enfim, o desejo de conjunto e a perpetuação da herança cultural: é nisso que está o caráter atemporal do nacionalismo.

Essa unificação nacional, então, estaria ligada justamente à construção de uma identidade. Mas, com isso, duas questões entram em jogo. Quero dizer, a identidade é construída sobre os indivíduos, por força desse discurso, e ela tem que abarcar duas perspectivas: primeira, fazer o sujeito se sentir integrado nesse Estado-nação e, por outro lado, fazê-lo sentir-se representado pela cultura nacional.

Stuart Hall analisava justamente isso, falava sobre como a força do discurso nacional é tamanha que não importa quão diferentes sejam os sujeitos, os membros da nação: classe, gênero, etnia, enfim, a cultura nacional busca unificar todos numa identidade só. A ideia é essa, ela esteriliza todas as microidentidades. Essa é a força do discurso, agregador, e que, inclusive, desfaz privilégios, desfaz castas. Sua força legitimadora vem daí, o discurso nacional acalenta. Mas como o nacionalismo consegue de fato mostrar toda essa força?

É necessário formar uma cultura nacional para trabalhar com essa perspectiva de assimilar a ideia de nação, de macroidentidade. Como? Podemos pensar alguns exemplos.

A cultura nacional pressupõe algumas instituições, alguns dispositivos que vão fomentar ou vão perpetuar o próprio discurso, alguns instrumentos de formação da identidade vão se fortificando: por exemplo, padrões de alfabetização; o estabelecimento de uma língua oficial, que vai predominar na comunicação; a unificação, a racionalização das instituições de instrução, a escola, o exército... Enfim, são esses dispositivos, dentre outros, são essas instituições que funcionam como instrumentos de formação e conformação de uma cultura nacional.

É com base nessa perspectiva que se pode dizer, por outro lado, que a cultura nacional acabou se tornando uma característica-chave da industrialização e um dispositivo da modernidade. Afinal, lembrem que estamos falando justamente das perspectivas de construção do liberalismo. Todo esse movimento está envolto numa revolução econômica sobre o modo de produção; está tudo no mesmo contexto: nacionalismo, constitucionalismo, liberalismo...

Por isso poderíamos também afirmar que há uma interrelação entre nacionalismo, capitalismo e industrialização. Esses processos econômicos vão precisar de unidade para poderem se desenvolver: a unificação do mercado nacional, uma linha de montagem social em que todos falem a mesma língua, onde todos tenham as mesmas práticas, os mesmos padrões de consumo... tudo está interligado.

Como falávamos dessas instituições, desses dispositivos de unificação, algo interessante a se destacar dos estudos de Bourdieu é justamente a problemática da unidade linguística também.

Lembre-se que dentro dessa ideia de identificação nacional, um dos modos de explicar a formação da nação é pela aproximação das religiões, aproximação das etnias, aproximação linguística. Bourdieu explicava como a unidade linguística, na verdade, não é condição da unidade nacional: pelo contrário, ela é um produto.

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Não é porque um povo fala a mesma língua, tem os mesmos costumes, que ele se agrega num Estado. Seria o contrário: o Estado precisa massificar, homogeneizar uma população, e faz isso através, primordialmente, da língua, que é o primeiro elemento de desenvolvimento da pessoa e da sua identidade. Esse elemento seria manipulado por um discurso de Estado.

Acho bem representativa a explicação de Bourdieu: se todos os cidadãos da nação precisam falar uma língua “tal”, é preciso fazer que esses cidadãos estejam em condições de aprendê-la. E aqui a gente tem aquela ideia de nação se formando a partir de padrões de alfabetização, ou seja, de uma língua oficial. Esse é um dos elementos de formação da cultura nacional.

E isso nos mostra, portanto, como funcionam os dispositivos de unificação. Os efeitos, as consequências e até o processo dessa formação perpassa a exclusão da diferença, das diversidades, a exclusão das minorias, das microidentidades, e a nação aparece como uma concepção cultural única: dentro dessa estruturação, a única concepção possível de identidade cultural acaba sendo a nacional.

Assim, o nacionalismo vai se estruturando, portanto, se fizermos uma leitura inversa, a partir de pelo menos três movimentações – vamos dizer assim. Como explicou Stuart Hall, primeiro há uma supressão forçada das diferenças, há um processo de conquistas violentas. Por outro lado, o nacionalismo também aparece como um ponto de agregação alternativo – alternativo às tribos, às comunidades menores; enfim, a nação aparece como esse novo ponto de agregação transindividual. E outro elemento de estruturação do nacionalismo é o comparativo entre civilização e barbárie, o que, na expansão dos impérios europeus, principalmente no período colonial, é justamente o que legitimaria um discurso de hegemonia cultural, na perspectiva eurocêntrica.

Ou seja, a (i) superação forçada da diferença, o (ii) ponto alternativo de agregação e esse (iii) comparativo entre civilização e barbárie: é assim basicamente que o nacionalismo vai se estruturando como discurso.

Compreendendo essa estruturação, passamos a identificar o nacionalismo enquanto dispositivo do próprio discurso em si.

Alguns fatores evidenciariam como todo nacionalismo é criado numa perspectiva discursiva. Separei aqui cinco fatores, acontecimentos, cinco evidências – na linha dos estudos de Stuart Hall – do nacionalismo como um objeto de discurso, como modo de construir, de perpetuar o próprio discurso nacional.

Ele destacaria cinco fatores: 1) primeiro, a narrativa da nação. A narrativa é construída na história, na literatura, pelos rituais, pelos eventos, as derrotas, os triunfos, os desastres, enfim, são ligações interpessoais que fazem a comunidade ter um marco inicial, um ponto de partida para se reconhecer. E há elementos sociais que perpetuam isso, como folclore, imagens, rituais... 2) o segundo fator do nacionalismo como dispositivo de discurso é a ênfase nas origens, ou seja, a ideia de continuidade, de atemporalidade, de permanência. É como se os elementos de identificação nacional tivessem uma essência, como se só por ser brasileiro você tivesse a mesma característica que o brasileiro sempre teve, pra falarmos de maneira bem simples. Essa ênfase nas origens do “nosso povo”, isto é, a imaginação de que “o nosso povo sempre foi assim”. 3) o terceiro fator que ele aponta é a invenção das tradições. Esse é um fator muito comum. Nós somos muito familiarizados com esse tipo de fala. A invenção da tradição aparece como estratégia discursiva sobre a antiguidade de costumes, ou seja, na prática de dizermos que costumes, tradições etc. são bem antigos, enraizados, quando, na verdade, muitas vezes são costumes “inventados”, ou então são muito recentes, nada profundo. E, assim, vamos inventando uma tradição para criar uma identidade, como se fosse antiga e permanente, mas que tende a ser falsa. 4) outro fator que ele aponta é o mito da fundação. Uma coisa mística sobre a origem remota da nação, da nossa comunidade, a ideia de que a comunidade se perpetua desde uma determinada época em que houve uma fundação específica, um fato “x”, ou alguém que conseguiu desencadear todo um processo de agregação. 5) o quinto elemento que ele aponta é a ideia dos “povos originários”. Por exemplo, aqui no Brasil, a gente ainda fala muito sobre as populações indígenas, que os índios seriam os verdadeiros donos do território brasileiro. Mas o que se deve perceber – e isso é até óbvio – é que o Brasil não existia; o Brasil se constrói com o tempo, não existia um território brasileiro, a ponto de dizermos que determinada população é a originária, que ela fundou toda aquela sociedade. Enfim, são pontos bem complexos.

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De qualquer maneira, esses cinco fatores são o que Stuart Hall aponta como sendo aquilo que permite, o que caracteriza o nacionalismo como discurso. E, se você observar, por exemplo, o que se tem visto atualmente, os sentimentos nacionalistas aflorando mundo afora, é possível perceber que, geralmente, ao menos um desses cinco elementos (pra não dizer todos!) está no discurso de quem sustenta teses – e práticas – xenófobas. Se você parar para analisar, hoje isso surpreendentemente tem voltado muito a aparecer. Enfim, essa é a forma como o discurso do nacionalismo consegue se firmar, se reafirmar, se perpetuar.

Bem, então, a gente fecha essa segunda parte assim. Tratamos, na primeira, da agregação em torno de Estado-nacionalismo-constitucionalismo. Na segunda parte, vimos como funciona a estruturação do nacionalismo como poder cultural, que vai ter projeção política na formação dessa tríade de elementos de construção do Estado contemporâneo: o problema da identidade e a força política que a identidade exerce na conformação desse Estado.

Entramos agora na terceira parte, que intitulei “patrimônio cultural e identidade política”. Vamos tentar fechar toda essa costura.

Bem, o primeiro ponto para tratarmos, agora, é o problema político do patrimônio cultural.

De acordo com a professora Marilena Chauí, o patrimônio cultural costuma congregar três aspectos, tem três “lados”, pode ser visto em três perspectivas: 1) ele se apresenta como um “conjunto de monumentos, documentos e objetos que constituem a memória coletiva”; 2) mas ainda se reconhece como “edificações cujo estilo desapareceu e cujos exemplares devem ser conservados a título de lembrança do passado de uma coletividade”; e 3) também no aspecto de oficializar uma identidade, e vai se constituindo a partir de museus, bibliotecas e arquivos públicos, centros de restauro e preservação, etc. Ou seja, resumindo, os aspectos do patrimônio cultural: um conjunto de monumentos e objetos que vão construir uma memória, a memória coletiva.

E ele também tem a perspectiva de ser um registro do passado, uma característica de preservação de elementos que formam uma lembrança coletiva, que deve ser preservado, e carrega também esse caráter de oficialidade das identidades – e nesse ponto ele remonta àquela ideia da nação como discurso de poder, que se sobrepõe à microidentidades; e o patrimônio cultural justamente funcionando como elemento dessa reestruturação de poder.

Marilena Chauí fala justamente que são esses “suportes de memória” que servem para trazer uma lembrança coletiva. Essa memória coletiva expressa em alguns objetos, que a gente chama de patrimônio cultural.

Bom, nesse panorama de coisas, objetos... quais são os suportes de memória? Justamente os monumentos, os documentos, as coleções, as antiguidades, os itens que a gente guarda, os itens que a gente inventa, que a gente salvaguarda... então, o patrimônio cultural, no âmbito das relações de poder, aparece justamente como espécie de “testemunho do passado”, uma expressão de triunfo dos conflitos culturais e sociais.

Nos conflitos sociais – a história nos conta isso – sempre há vencedores, e são eles quem contam a história. E o patrimônio cultural acaba funcionando como elemento de testemunho desses triunfos, duma história contada a partir de objetos de memória. Estamos falando de monumentos, documentos, uma história contada a partir de símbolos, por trás dos quais se apresenta, na verdade, um conflito que foi resolvido à base da disputa, da força e da supressão de uma das versões possíveis da história social.

O patrimônio cultural, então, tem essa função de disfarçar conflitos, na construção da identidade. E tanto é assim que o patrimônio cultural – no panorama do liberalismo, do Estado-nação que temos até hoje, estruturado na lógica liberal, das revoluções que constitucionalizaram o Estado – desde então revela essa função de marcar uma nova identidade. Uma função de denotar poder, um elemento de disputa política, ele aparece como forma de afirmar os grandes feitos públicos oficiais, tem essa conotação de repropor a identificação e o reconhecimento.

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Enfim, o patrimônio cultural se constrói pela necessidade de excluir outras expressões culturais que não seja a oficial, que ajuda a contar a história de quem venceu os conflitos sociais. A ideia do patrimônio se agrega nessa identificação política da própria sociedade, dos próprios indivíduos como uma necessidade de excluir outros artefatos de identidade, outros suportes de memória, de deixar que apenas os oficiais possam contar a história e perpetuar o discurso da identidade e, principalmente, da agregação. Ou seja, é não permitir que haja concorrência na descrição da história da própria sociedade.

Qual é a questão que vem com toda essa revolução nacional? É que o patrimônio cultural vai se firmando na ideia de que é preciso diferenciar aquilo que constitui patrimônio, que representa aquela identidade nacional, daquilo que não deve sequer ser considerado expressão de identidade. Ou seja, é necessário suprimir qualquer artefato de identidades que concorram com a identidade nacional.

Nesse sentido é que o patrimônio cultural vai entrar na disputa pelas representações dos símbolos sociais, dos grupos que tentam se afirmar, mas que acabam sendo absorvidos ou suplantados por esse movimento político.

Então, essa disputa traria não só uma discussão sobre a identidade cultural, ou melhor, toda disputa sobre patrimônio cultural traz não só uma discussão sobre identidade em si, mas revela uma questão política: a disputa pela representação simbólica é uma relação de poder e, como em toda relação de poder, isto é, em toda questão política, o direito aparece como o instrumento e o patrimônio cultural é o objeto em disputa.

Resumindo, o direito é um instrumento através do qual essa questão política vai ser “resolvida”, e o objeto dessa disputa, dessa questão política, é o patrimônio cultural.

Então, na formação do Estado nacional o impacto cultural se expande para todos os fatores sociais, de modo que são suprimidas todas as ligações que os indivíduos possam ter com comunidades menores ou até maiores do que a nação. O discurso nacionalista simplesmente elimina essa possibilidade. As ligações, a lealdade cultural passa a ser atribuída unicamente ao Estado-nação.

Zygmunt Bauman também pesquisou sobre isso. Ele estuda o patrimônio cultural e a identidade nacional. Com a ascensão do nacionalismo, nas suas palavras, todas as tradições, costumes, dialetos, calendários, qualquer outra forma de ligação cultural local, menores, deviam ser enfraquecidas, rompidas através da imposição dessa nova lealdade cultural; que é a lealdade à nação, à identidade nacional. O patrimônio cultural vai exercer essa função.

Como aponta Marilena Chauí, o primeiro semióforo instituído pelo próprio Estado foi a própria ideia de nação.

O Estado cria a nação, através de símbolos de representação, justamente como o seu maior artefato de perpetuação do seu próprio discurso. A partir dessa simbologia nacional é que vão ser criados outros símbolos nacionais: o patrimônio cultural principalmente e as instituições públicas que são responsáveis por guardar, conservar e exibir esses suportes de memória.

Essa identificação, essa forma de escolher e de reproduzir a identificação nesses instrumentos patrimoniais é feita, articulada, justamente pelo sistema jurídico. Lembrando que um sistema jurídico é albergado, é todo enquadrado pela proposição constitucional.

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A ideia de reformulação constitucional é dar novos contornos jurídicos ao sistema social. Ou seja, o sistema de direito é construído a partir dessa lógica, do discurso do constitucionalismo, e é com essa reformulação jurídica que se vai permitir, na verdade, que se vai induzir a conformação dessas estruturas de poder, que têm o patrimônio cultural como grande elemento de representação.

Então, fechamos agora esse apanhado geral, sobre a posição política do patrimônio cultural e sua relação com o Estado-nação.

Pra não ficarmos só na teoria, pra percebermos o que vivenciamos juridicamente no Brasil, por exemplo, vamos ter alguma ideia de como as coisas têm funcionado. Eu trouxe aqui um resumo do panorama jurídico brasileiro, no slide, pra analisarmos justamente isso.

Dado esse apanhado que fizemos, podemos encontrar talvez algum exemplo de como o discurso funcionou e estruturou o Estado Brasileiro também.

Por exemplo, vocês devem saber que, no Brasil, temos uma legislação básica que trata do patrimônio cultural, nossa mais antiga norma sobre o assunto, que é o Decreto-Lei nº 25, de 1937. Esse Decreto-Lei, se vocês puderem lê-lo... vamos identificar nele alguns desses elementos que analisamos anteriormente.

Em que sentido? Ele é uma norma que foi decretada, imposta, num período de ditadura, não foi construído democraticamente. E, justamente por ter sido concebido numa época ditatorial, ele evidencia, transparece bem esses elementos de conformação política através do patrimônio cultural.

A gente falou antes de liberalismo, de formulação constitucional a partir duma lógica democrática etc., mas lembremos que nós estamos tratando de “discursos”. Discursos como uma articulação de práticas. Honestamente, não são representações, apresentações idênticas às circunstâncias, mas um discurso que, na verdade, está embasando esses movimentos, forjando bases para essas decisões políticas.

O Decreto-Lei nº 25/37, por exemplo, coloca em evidência como a proteção do patrimônio cultural... aliás, curiosamente, o termo utilizado é “patrimônio nacional”, patrimônio histórico e artístico nacional, ou seja, o nacionalismo aparece na própria grafia do termo, como elemento base.

São três coisas que poderíamos destacar nessa legislação. Primeiro, o decreto-lei fala de patrimônio “nacional”, faz alusão aos fatos memoráveis da história do Brasil, ou seja, ele está falando das simbologias, das conquistas da nação, e trata ainda como um elemento de diferenciação, da apropriação do patrimônio cultural pelo seu “excepcional” valor arqueológico, artístico etc. Durante muito tempo essa foi a norma que veio regendo o trato do patrimônio cultural no Brasil. Podemos ver – quem tiver a curiosidade de ler o decreto-lei – que ele fixa o traço daquele discurso nacionalista, com destaque justamente ao “patrimônio nacional”, os feitos memoráveis do Brasil, excepcional valor arquitetônico, artístico, enfim, são elementos que enaltecem uma determinada perspectiva de patrimônio cultural, a qual esconde, contudo, uma questão política, como já vimos.

Acontece que nós tivemos alguma mudança de perspectiva sobre patrimônio cultural no Brasil, a partir da Constituição de 1988.

Certamente, vocês já devem ter estudado ou vêm estudando os direitos culturais. Há mudança nessa perspectiva jurídica, que podemos chamar de evolução no trato do patrimônio cultural, em que se começa a abandonar um pouco a noção de patrimônio como suporte da memória oficial, da dominação.

A Constituição de 1988, na seção específica que trata da cultura, é clara sobre o que constitui patrimônio cultural no Brasil: são bens materiais e imateriais. A natureza imaterial é a grande diferença. Mas não só ela.

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Veja que o texto reconhece os bens não por serem relevantes para a história da nação, feitos memoráveis etc., mas são bens que têm referência para diferentes grupos que formaram a sociedade brasileira, ou seja, há certo enaltecimento, um resguardo, das microidentidades, e não simplesmente da identidade nacional.

A constituição fala de bens que têm referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, de alguma forma minimizando aquele aspecto de dominação na estruturação do patrimônio cultural.

O mais curioso é que a constituição também descreve como pode ser identificado esse patrimônio cultural, esses bens materiais e imateriais. Por exemplo, compõem o patrimônio cultural as formas de expressão; os modos de criar, os modos de viver; criações científicas, artísticas e tecnológicas; obras, objetos documentos, edificações; conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, arqueológico etc.

Desse rol, o que eu destacaria seriam as duas primeiras: “formas de expressão” e “modos de criar, fazer e viver”. Parece uma maneira de informalizar, ou seja, de não querer atribuir identidade apenas àquilo que é formal; é popularizar a maneira de identificar os grupos, de construir... não só de construir, na verdade, mas também de preservar a identidade dentro do país. E obviamente aí estamos tratando de culturas que não têm uma tradição de formalidade, por exemplo, a cultura indígena, heranças afrodescendentes, enfim. Coisas que a gente sabe que não necessariamente estão expressas em livros, documentos, em edificações...

A constituição trouxe essa nova perspectiva, essa mudança na forma de se preservar o patrimônio, afastando-se uma pouco da lógica de nação, de oficialidade. Claro, estamos tratando aqui de um Estado que reconhece essas formas de expressão, ou seja, ainda passamos pelo viés da chancela estatal, de precisar reconhecer que isso ou aquilo é patrimônio cultural... Mas, como estava dizendo, não sei se chamaria de revolução, mas é uma mudança de paradigma. Então, há alguma diferenciação do nosso atual panorama jurídico para o que tradicionalmente veio conformando a nossa realidade político-cultural.

Pra finalizar, eu trago aqui um resumo dos estudos do professor Humberto Cunha Filho – que não deve estar nos assistindo, pois está na Itália... mas ele costuma falar disso, comparando, por exemplo, no Brasil, o que houve depois da constituição de 1988 e como antes era tratado o patrimônio cultural.

Ele costuma apontar como houve uma reformulação da tutela do patrimônio cultural, a partir da perspectiva dos direitos culturais. 1) Deixamos de ter um decreto-lei, que, por natureza, tem origem autoritária e reafirma a perspectiva de estruturação do patrimônio cultural nacional, oficial, feito “de cima para baixo”. Agora ele foi constitucionalizado. E, sendo constitucionalizado, ele também fica fora do alcance de manobras políticas – vamos dizer assim – nas formulações legislativas; fica de alguma maneira resguardado de investidas temporárias de legislaturas, o que se dá com as leis, que são muito mais facilmente manuseáveis. 2) Outra mudança diz também que deixamos de tratar de um certo patrimônio histórico e artístico “nacional” e passamos a falar de patrimônio cultural brasileiro, o que poderia identificar todos os Brasis que existem no nosso vasto território, todos os grupos. 3) O patrimônio deixou de ser uma concepção de interesse público e passou a ser de interesse social, ou seja, tira esse caráter – claro que essa perspectiva não é plena, não muda tudo de maneira brusca, mas ameniza um pouco – de oficialidade e passa a ter uma conotação de sociabilidade. 4) E, por fim, também podemos lembrar que aquilo que se pode reconhecer como patrimônio cultural deixa de ser só o que apresenta excepcional valor (e, claro, esse “valor” sempre foi pensado na base de um discurso de tradição, que vai dizer, por exemplo, qual é o padrão de arte, qual é o padrão de beleza, o padrão de arquitetura, e a gente sabe que isso tem uma matriz europeia, há um eurocentrismo no conhecimento disso tudo); e o patrimônio passa a ter caráter de referencialidade, ou seja, o patrimônio cultural é reconhecido como tal por ter referência para grupos, não para o Estado em si, mas para os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Acontece uma espécie de “democratização” do reconhecimento daquilo que constitui patrimônio cultural.

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E, mais uma vez, retomamos à percepção de que o patrimônio cultural está ligado à formação das identidades políticas. E, dentro dessas perspectivas de construções de nacionalismo, podemos concluir que, apesar de toda essa estruturação e reestruturação do poder, a partir de todos aqueles movimentos liberal nacionalistas, talvez com a Constituição de 1988, um pouco mais democrática no texto (não só no discurso), tenhamos ou venhamos conseguindo amenizar, ainda que simbolicamente, alguns erros, alguns dos efeitos dessa estruturação de poder  congregada a partir da lógica do discurso nacionalista.

Então, pra não estourar ainda mais nosso tempo, eu encerraria esta fala sobre patrimônio cultural e identidade política, talvez, com essa expectativa de ter alguma leitura mais “positiva” – digamos assim – desse texto constitucional.

É isso. Muito obrigado a vocês pela atenção.

Marisa:

Muito obrigada Gabriel, eu particularmente queria fazer um depoimento de que pra mim foi muito interessante essa perspectiva, essa ideia da construção da identidade política atrelada ao nacionalismo e também o reflexo disso tudo no que nós temos como patrimônio cultural ou bens patrimoniais hoje. Isso é muito interessante e eu gostaria de começar abrindo para perguntas, mas também jogando uma pimentinha nessa discussão. Gabriel, nós agora conseguimos perceber essa construção da identidade política extremamente atrelada à questão patrimonial via Estado. Como poderíamos encarar hoje essa “vontade” de parte das pessoas da população brasileira de voltar a essa perspectiva. Ao conversar com as pessoas, por exemplo, algumas nos dizem, “nossa quando eu era jovem, quando eu era criança cantava o hino nacional todos os dias na escola”, “quando eu era criança hasteava-se a bandeira”, “quando eu era criança os vultos nacionais...”. É possível perceber isso no discurso de muitas pessoas ainda hoje, porque há uma dificuldade de percepção de que essa identidade cultural necessariamente foi criada a partir desta ideia de identidade nacional, da identidade política delimitada, definida pelo Estado. Eu queria dizer o quanto é necessário nós pensarmos nesses discursos que estão surgindo, de nacionalismo, mas um nacionalismo que retoma essa perspectiva anterior, muito delimitada e restritiva, e que vai em contraposição a tudo que a discussão sobre o patrimônio cultural tem trazido atualmente, principalmente a partir da constituição. É só uma apimentadinha pra gente começar a discussão.

Gabriel:

Bom, vamos lá. Essa vontade popular, como a gente vê nesse “saudosismo”, acredito que você esteja falando sobre a época da ditadura militar, um pouco das coisas de nas escolas as crianças cantarem hinos, hastearem bandeiras, aquele culto aos símbolos etc. Vejo que muita gente tem saudade disso e vejo que é uma questão ligada a essa “volta do nacionalismo”, vamos dizer assim. É até curioso, vamos pensar, que alguns anos atrás talvez ninguém fosse imaginar que o nacionalismo voltaria com tanta força.

Passamos por um processo de globalização cada vez mais intenso, falava-se até de um possível fim do Estado-nação... e de repente você vê a Inglaterra saindo da comunidade europeia, EUA fechando fronteiras, enfim, os discursos cada vez mais inflamados de nacionalismo, uma coisa meio xenófoba. É curioso pensar que estávamos caminhando de um lado e, repentinamente, parece que o pêndulo voltou.

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Mas acredito que essa vontade popular de voltar a cultuar esses símbolos, como você menciona, do contexto da ditadura, é um pouco “falsa”, se olharmos a perspectiva cultural. Ou melhor, não acho que a população tenha saudade de cultuar os símbolos culturais. Talvez exista uma saudade de outros aspectos sociais, que as pessoas identificam como sendo ligados à simbologia nacional.

Por exemplo, talvez muitas pessoas gostassem de vivenciar aquele período de autoridade, em que as coisas eram postas em ordem, havia um policiamento dos costumes, enfim, talvez seja só um conservadorismo social, seja só uma lembrança de ordenação, lembrança de que as coisas estavam em ordem, de que o país funcionava bem, que havia mais segurança, essas coisas.

É claro, certamente, essas representações culturais nacionais deviam ter algum valor, mas eu não acho que o culto à bandeira, por exemplo, hoje, o hasteamento de uma bandeira numa escola, a execução do hino nacional, não sei se é isso que vai fazer diferença em si, se é o que vai interferir como elemento de agregação social. Acredito que existe mais uma visão saudosista duma determinada época – vamos dizer assim – do que uma vontade, uma necessidade de agregação nacional. Estou falando isso no Brasil, lá fora não conheço a realidade.

Acho algo curioso – se a gente para pensar – que no Brasil o nosso momento de nacionalismo maior geralmente está atrelado ao esporte, momentos desportivos, em que há hasteamento de bandeira e a execução do hino nacional, e todo mundo fica com aquele nacionalismo efervescente, mas que não passa muito disso. Já esse movimento atual de saudosismo, de culto a determinados símbolos que representam uma identidade nacional, acho que está mais ligado não à identidade nacional, cultural, mas talvez a uma identidade de autoridade.

Estou sendo franco: talvez muitas pessoas não estejam com saudade de ter um sentimento nacionalista através de hinos, brasões, bandeiras, mas com alguma saudade da autoridade. Talvez nós queiramos mais do que o nacionalismo: um culto à autoridade, um culto à autoridade militar daquela época e ao que representou. Acho que a bandeira e o hino mais têm a ver com a representação dessa ordem, dessa autoridade, dessa força social, do que com uma questão cultural em si.

Marisa:

Bem, temos uma pergunta da Cecília, que inclusive é a nossa próxima conferencista. A pergunta o seguinte: “a diversidade cultural é a saída para homogeneização promovida pelo nacionalismo?”.

Gabriel:

Boa pergunta. Aliás, uma boa pergunta de se fazer, mas péssima de se responder... Bem, a diversidade cultural sempre existiu. Mas é certo que ela nunca foi respeitada “institucionalmente”, dentro do contexto nacional estatal que vimos tratando. E esse é justamente o problema.

Sim, o respeito à diversidade cultural é um passo para amenizar os efeitos do nacionalismo. Falando de maneira bem simples, o respeito institucional à diversidade pode funcionar como elemento de diminuição dos efeitos maléficos que o nacionalismo trouxe. Mas, por outro lado, também pode servir como elemento de reforço do próprio nacionalismo. E não seria necessariamente bom ou ruim – tentando não fazer muito juízo de valor – porque, a partir do momento em que se reconhece a diversidade cultural dentro de uma estrutura estatal, estamos dizendo que esses grupos, as pessoas que compõem esses grupos menores, essas diversas identidades, eles são reconhecidos por essa identidade estatal, ou seja, eles fazem parte desse Estado-nação.

Mas pode ser uma forma que você utiliza pra conquistar a adesão desses grupos ao projeto nacional. Então, é certamente melhor isso do que simplesmente aniquilar a diversidade cultural, é melhor do que absorver à força os grupos minoritários, é melhor respeitá-los nas suas essências culturais... mas, ao mesmo tempo, isso pode apenas disfarçar a relação de poder, pode não resolver o problema em si, pode dar outra máscara pra ele.

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Não é que eu vislumbre ou pense que haja outra solução. Pode ser que essa seja a solução rápida, mais imediata, e que tenha efeitos menos drásticos para resolver a questão. O reconhecimento da diversidade deve acontecer, obviamente. Acredito que essa é uma tendência de multiculturalismo, que veio se desenvolvendo ao longo do século passado, veio mostrando como o reconhecimento dessas microidentidades é essencial inclusive para se manter a integridade.

Veja, por exemplo, que na Espanha é muito comum o movimento separatista, sempre está aparecendo. Há pouco tempo houve aquela decisão na Catalunha; o país basco também tem sempre efervescentes esses movimentos separatistas, enfim, isso é uma realidade, uma prática comum, e a saída pra manter esses grupos separatistas agregados vem sendo justamente essa, reconhecê-los. Não tentar impor uma identidade cultural estruturada tradicionalmente, mas permitir que esses grupos diversos, que têm identidades próprias, convivam dentro dum projeto de Estado-nação. Só que isso não vai deixar de ser uma reestruturação das relações de poder, que permanece, na sua essência, a mesma.

Marisa:

Bem, agora temos uma questão da Ana Flávia, que diz: “É possível perceber que vivemos um ciclo social, principalmente com esse saudosismo?” referindo-se mais à questão anterior.

Gabriel:

um ciclo social no sentido de que a gente está voltando para vivenciar um período parecido? Não sei se é isso que a Ana Flávia está perguntando... pelo que entendi, acho que ela está com medo de voltarmos à ditadura militar. Todo mundo está com esse medo, na verdade... mas acredito que não acontecerá.

Acho realmente que uma ditadura militar no país não deve ter lugar. Parece-me que o momento político, internacional principalmente, é outro. Não sei se a gente vai ter condições conjunturais para que isso aconteça. Intervenção militar, supressão de direitos, assim de maneira declarada... eu vejo que nesse processo de globalização em que o Brasil está cada vez mais evidente no mercado exterior, acho que as pressões institucionais externas são muito maiores para que esse tipo de coisa não aconteça.

Não quero dizer que não experimentaremos episódios parecidos, mas acho que estamos passando por um momento de efervescência política e social, as pessoas estão revelando os desejos e identificações com algumas questões controversas da nossa história, mas eu realmente não acredito que estejamos voltando para o ciclo.

Apesar de se dizer que a história se repete, a gente talvez experimente episódios que façam relembrar isso. Talvez exista só uma empolgação de vários setores sociais sobre o assunto... acho que nos aproximaremos em alguns momentos dessa lembrança, dessa história, dos acontecimentos. Mas eu acredito e torço para que esse retorno não aconteça.

Marisa:

Agora uma pergunta do Victor, que foi nosso conferencista no mês de março, ele fala “minha provocação: como sopesar o direito à liberdade de expressão com o combate ao discurso de ódio?”.

Gabriel:

Difícil essa aí. Não estava no roteiro da aula, mas vamos lá (risos). Eu particularmente me considero um sujeito muito liberal, e, juridicamente, teria uma solução bem técnica para uma questão como essa.

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Tenho duas perspectivas pra analisar isso. Eu sou a favor da liberdade de expressão e acho que a nossa constituição resguarda isso, então, não acredito em nenhum tipo de censura, nenhum tipo de reprimenda antecipada a qualquer tipo de discurso. O nosso ordenamento jurídico, por outro lado, dispõe de alguns instrumentos que tutelam situações ilícitas, por exemplo, você tem liberdade pra se expressar como quiser, mas, se você ofender alguém, ofender um grupo, proferir um discurso de ódio, hoje o ordenamento jurídico prevê instrumentos de reprimenda ao seu discurso.

Acredito que a liberdade é plena, mas com as consequências que ela traz. Por exemplo, há um caso muito emblemático que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal alguns anos atrás, que era o caso do escritor Siegfried Ellwanger. Ele editou um livro aqui no Brasil com discursos antissemitas e foi processado na justiça por crime de racismo, por ter incitado ódio à população judia, aquela coisa toda... O caso dele foi parar no STF, que decidiu que, de fato, ele estava errado na questão, cometeu crime etc. Qual é a questão aí? Ele tinha liberdade pra discursar? Sim, mas o ordenamento previa que quem praticasse um determinado tipo de discurso racista, de discriminação, responderia penalmente, como foi o caso dele. Pra não ficar muito aqui nessa discussão, que é difícil de resolver, não tem como dar uma resposta em cinco minutos... mas é difícil você determinar também, por exemplo, até que ponto vai essa liberdade.

Você não tem a liberdade de ofender ninguém, é claro, isso não é uma prática que possa ser tutelada. Mas, ao mesmo tempo, quem vai arbitrar qual o limite dessa liberdade? É uma situação muito difícil e, realmente, por insegurança, eu acabo me atrelando nesse posicionamento... porque realmente não sei como seria possível sopesar isso, a priori, previamente, como formular uma regra que fosse dizer “isso é liberdade de expressão, isso não é”.

Juridicamente, a nossa constituição prevê a liberdade de expressão, artística, intelectual, científica, independente de licença ou de censura ou coisa parecida. Então, minha resposta seria apoiada num estatuto jurídico, então, de fato não teria muito uma resposta pra inventar. Não tenho condições de dar solução para isso, sinto muito (risos).

Marisa:

Mais uma pergunta, da Lusilede: “função de disfarçar uma construção da identidade é marcar uma nova interdisciplinaridade dos acontecimentos da história no Brasil?”

Gabriel:

Estou com dificuldade de entender a pergunta. Fico com medo de não compreender a pergunta e a resposta não ser aquilo que a pessoa queria saber. Se puder, por favor, reformular, agradeço.

Marisa:

Ela está complementando: “pelas várias etnias”, “por causa de muitos dos povos vindos de outros países”. Não sei se é isso que você pretende saber, mas, com a vinda de vários povos e essa diversidade de povos, nessa formação interdisciplinar atual, se haveria alguma alteração no nosso patrimônio cultural. Acredito que seja isso que ela está querendo dizer Gabriel, se estabelecermos uma relação com o patrimônio cultural do período nacionalista, que era visto de outra forma...

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Gabriel:

Ah, acho que entendi. Sim, juridicamente, já que você menciona o Brasil, a partir de 1988 temos uma nova perspectiva de reconhecimento do patrimônio cultural.

Um dos preceitos que regem a questão cultural no país agora é o pluralismo. Então, a ideia é que o Estado brasileiro tem que tutelar situações, identidades culturais de grupos diversos. Hoje temos uma perspectiva de que o patrimônio cultural não deve mais ser visto como uma representação da nação, um símbolo de grande valor histórico, enfim, nem de que é a antiguidade que faz o patrimônio cultural. Agora ele tende a mudar sua concepção porque vai ser identificado a partir das referências que tem para os diferentes grupos.

A tendência de reconhecer a diversidade cultural no país é seguida dessa propensão de reconhecer o patrimônio cultural também numa perspectiva diversificada. A concepção do patrimônio cultural tende a mudar, inclusive, textualmente na constituição houve essa mudança. Aquilo que a gente destacou no final da apresentação, o que eu acho que é a parte mais interessante, é que esse patrimônio não está só nos prédios antigos, só na biblioteca oficial, onde estão os arquivos públicos, as cartas etc. Mas reconhecer os modos de viver, os modos de fazer, as expressões, enfim, isso tudo constitui um patrimônio, pode ser reconhecido como patrimônio cultural e, diante da pluralidade de etnias, de origens que vários grupos brasileiros têm, isso permite uma abrangência cultural muito grande.

Se bem entendi a pergunta, a minha resposta é que o patrimônio cultural mudou de concepção no Brasil, desde a Constituição de 1988. Embora os passos venham sendo lentos na efetivação desse reconhecimento, algumas coisas já têm mudado. Então, acredito que sim, isso não vai fazer que os outros símbolos, símbolos tradicionais, sejam desconsiderados, mas acredito que a concepção do patrimônio cultural muda com nova perspectiva jurídica, mais uma vez ali na constituição, reformulando as nossas bases, o funcionamento da nossa sociedade.

Portanto, sim, acredito que a pluralidade agora é a regra que orienta o trato do Estado com as questões culturais.

Marisa:

Bem pessoal, mais alguma questão? Pelo visto encerramos. Eu queria agradecer muito ao Gabriel, muitas pessoas estão agradecendo e elogiando a sua exposição, gostando muito da apresentação. Então eu acredito que nós cumprimos com nosso propósito de levar realmente as discussões para o maior número de pessoas, mesmo que nem todos consigam assistir no horário determinado, nós temos encaminhado e recebido feedback de muita gente a partir dos que assistem às gravações também, isso é muito interessante. Agradecendo mais uma vez o Gabriel, eu aproveito para convidá-los para a próxima webconferência, que será com a Cecília Nunes Rabelo, com o tema “a circulação de bens culturais, perspectiva jurídica” e nós nos reuniremos então no dia 16 de maio, uma outra quarta feira. Eu espero contar com a presença de vocês novamente e demais pessoas que estão inscritas, nós temos um grande número de pessoas inscritas e isso nos deixa muito satisfeitos e muito felizes, porque a ideia do projeto de extensão é exatamente essa, abrir o espaço para outras pessoas que não estão vinculadas a nossa especialização poderem se apropriar dessas discussões, desses vários temas sobre direitos culturais, patrimônio e sobre cidadania cultural, que estão muito interligados. Obrigada mais uma vez a todos, obrigado Gabriel e um abraço a todos vocês. Até o nosso próximo encontro.

Gabriel:

Obrigado, um abraço Marisa. Tchau, pessoal.