Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
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O lado perverso do patrimônio cultural

4ª Webconferência – 05/04/2018

Marisa Damas:

Olá! Boa noite para todos e todas! Mais uma vez estamos juntos em nossa programação de 10 Webconferências do III Ciclo de Webconferências Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania que devem ocorrer até o início de julho. Esta é a 4ª Webconferência e hoje nós estamos recebendo o Prof. Dr. Yussef Campos, que gentilmente aceitou participar desse momento conosco, trazendo trocas de informações e conhecimentos. Eu gostaria de iniciar falando que o ciclo de Webconferências é uma atividade da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, que está em andamento na sua segunda edição, com uma turma de mais de 200 alunos dos vários municípios do Estado de Goiás e de alguns outros estados como São Paulo, Minas, Rio, etc. Um projeto de extensão que visa atender tanto aos alunos do curso de especialização quanto às outras pessoas interessadas, com o intuito de possibilitar a todos a inclusão nessas discussões sobre patrimônio, direitos culturais e cidadania. É um projeto em parceria com o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), através da pessoa do Prof. Humberto Cunha e de todos os participantes do grupo, que sempre têm dialogado muito bem conosco aqui da UFG. Já é uma terceira experiência desse ciclo de webconferências, que tem sido trabalhada de uma forma muito tranquila e eu agradeço bastante ao pessoal de Fortaleza por esse apoio. Prof. Humberto Cunha, gostaria de saber se você gostaria de fazer uma apresentação rápida antes de passarmos para o nosso palestrante da noite.

Humberto Cunha:

Boa noite! Gostaria de dar uma palavra sobre essa nossa parceria com a Marisa. Desejar muito boa sorte ao palestrante, que foi nosso parceiro também no VI Encontro Internacional de Direitos Culturais. Ele tem trabalhos muito importantes e, com certeza, nós aprenderemos muito hoje com esse debate que vai surgir em decorrência daquilo que ele falar. Bom trabalho a todos: Yussef, Marisa e a todos que me escutam nesse instante.

Yussef Daibert Salomão De Campos:

Boa noite a todos e todas. Prof. Humberto, um abraço. Saudades de você e de Fortaleza. Quero agradecer à Marisa e ao Humberto pelo convite. É um prazer participar desse curso.

Hoje eu me propus a falar de uma pesquisa que tenho realizado e que se transformou em um livro "O lado perverso do Patrimônio Cultural", que vou sortear ao final dessa palestra. Vou sortear também um exemplar do meu primeiro livro, que é fruto da minha dissertação (Percepção do Intangível: entre genealogias e apropriações do patrimônio cultural imaterial). Mas hoje a ideia é desnudar um pouco o patrimônio, tirar essa áurea do patrimônio, como algo somente estético, de apreciação, mostrando um outro lado, que chamo de perverso, contando alguns casos que são escritos nesse livro, fruto do convênio entre o Programa de Pós-Graduação em História da UFG e a Universidad Nacional de Jujuy, Argentina. Os textos dos colegas argentinos foram mantidos em espanhol, dos brasileiros em português, e os textos originalmente escritos em francês foram traduzidos para o português. A Arrais Editores (Belo Horizonte) foi responsável pela editoração desse livro, que organizei junto com o colega Prof. Jorge Kulemeyer, da Universidade de Jujuy.

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Eu trouxe trechos do livro para discutirmos um pouco esse outro lado do patrimônio e abro aspas para um trecho escrito por mim e pelo professor Jorge: "Tema amplamente debatido é esse [patrimônio]. Pelas suas diversas perspectivas disciplinares e de gestão, é figura presente quando se trata de debater e gerenciar aspectos culturais, seus aportes identitários e seu apelo à memória coletiva. Contudo, há no patrimônio um lado perverso, que frequentemente se expressa em campos de disputa associados a diversos tipos de tensões. Seja de maneira expressa ou tácita - seja do ponto de vista lexical ou psicanalítico - a perversidade do patrimônio está presente quando sua gestão ou invenção abarcam a memória do desaparecido, sendo capaz de matar a própria identidade, ao invés de dar a ela suporte, propondo uma realidade que muitos interpretam como quase imaginada. Pois esse patrimônio só se mostra funcional quando traz à tona as virtudes do passado, ou quando o escolta, protegendo-o de seu lado sombrio de vícios, ausente nas narrativas historiográficas oficiais, relegado a um esquecimento intencional. Seja pelo fato de aspectos arquitetônicos de uma edificação sobrepujarem (e até ocultarem) os aspectos históricos, arqueológicos e antropológicos; seja pela negação a uma reivindicação social que busca afirmar uma identidade marginal; o lado perverso do patrimônio deve ser apresentado para esclarecer o debate sobre o passado, mostrando que esse não é a panaceia para um futuro promissor, desejável. Mais que mediar um passado de segunda mão, o patrimônio deve ser capaz de apropriar-se de todas suas nuances para não se tornar uma mera cenografia da busca por um passado mais virtuoso que um presente de recalques e insatisfações com as identidades e memórias construídas por políticas públicas nacionalistas. Assim, esse livro traz capítulos que abordaram a perversidade do patrimônio (alguns mais ostensivamente, outros sutilmente - o que não deixa de ser perverso) e suas facetas: a ilusão da participação; o tráfico ilícito de bens culturais; a gentrificação; lutas, impasses, disputas e conflitos pelo patrimônio; má gestão e ilegalidades praticadas em nome da equidade; hegemonia e exclusão social; imposições sobre visões sobre o passado; presenças e ausências; lembranças e esquecimentos; seleção de bens e identidade social; sanitarização e patrimônio; onipresença do patrimônio, obnubilando sua ambivalência. Talvez a própria existência de conceitos ambivalentes a ele atrelados indique ao menos a perversidade que possui sua essência" (CAMPOS; KULEMEYER, 2018, p. 4-5).

Esse é um trecho da apresentação.  E trarei aqui alguns trechos de alguns dos capítulos, não de todos eles porque não daria tempo para a gente conversar.

A "Parte I - Conceituações e Narrativas" abre o livro com um texto do professor francês Hugues de Varine, "Por um olhar histórico sobre o patrimônio". É um texto que ele escreveu especialmente para esse livro. Depois, um texto do Prof. Jorge Kulemeyer, "Cambios en el concepto de patrimonio de la mano de las actuales modalidades de los procesos de patrimonialización". Em sequência, "Patrimonio y narrativa histórica", do professor argentino Ariel Slavutsky. Em seguida, "Cidadania Patrimonial" de Manuel Ferreira Lima Filho, aqui da Universidade Federal de Goiás. Logo, o arquiteto da UFMG Leonardo Castriota com "A urbanização perversa: considerações iniciais sobre gentrificação e patrimônio". E, por fim, o antropólogo francês Joël Candau, com "Modalidades e critérios de uma memória compartilhada". Também é um texto escrito especialmente para esse livro.

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Já a segunda parte "Parte II - Gestão, Leis e Memórias" é aberta com Dominique Poulot, em texto inédito em português: "Glórias e vergonhas políticas no museu". O segundo capítulo foi escrito por mim (Yussef Campos) e pelo Prof. Lúcio M. Ferreira (arqueólogo da Universidade Federal de Pelotas), que foi meu orientador durante o Mestrado. O capítulo foi intitulado "Fogo-Amigo: agentes municipais e seus equívocos perniciosos à preservação do Patrimônio Cultural". Em seguida, duas pesquisadoras de Jujuy, Valéria Macía e Melissa Iglesias, tratando do "Cine Escuela argentino, análisis del registro audiovisual de archivo ‘vacaciones útiles’ como producto del patrimonio cultural del peronismo de los años 1948-1950". Depois, a Profa. Manuelina Duarte Cândido, museóloga e professora da UFG, junto com o Prof. Mário Pragmácio Telles, tratam de "O lado perverso dos museus: o tráfico ilícito de bens culturais brasileiros". A museóloga Camila A. de Moraes Wichers, da Universidade Federal de Goiás escreve sobre: "Patrimônio Arqueológico em disputa: entre especialistas, mercado, estado e comunidades". E, fechando essa parte, "Patrimônio, fotografia e identidade" de Estela Maris Valenzuela, da Universidad Nacional de Jujuy, na Argentina.

A última parte ("Parte III - Identidades e Normativas") inicia-se com Ariadna Bello, de Jujuy, com "Presencias e ausencias em el estudio y resguardo del patrimonio pictórico colonial de Mendoza - Argentina". Dois colegas da UFMG, Raul Amaro de Oliveira Lanari e Hugo Mateus Gonçalves Rocha, com o trabalho "Os terreiros das religiões afro-brasileiras em Laranjeiras/SE: possibilidades e dilemas da Patrimonialização". Em seguida, a Profa. Izabela Tamaso (antropóloga), aqui da UFG, "Performances patrimoniais em Goiás: sobre Santos, Santas e Cristos". Em seguida, Valeria Ivana Argañaraz, de Jujuy, sobre sanitarização e patrimônio, com “Plan de salud rural: Patrimonio científico, histórico y cultural de la província de Jujuy”. E, para encerrar o livro, a Profa. Maria Elizia Borges, do Programa de Pós-graduação em História da UFG, com "Os cemitérios secularizados no Brasil: um patrimônio cultural a ser preservado".

Como vocês podem ver, é um debate bem multidisciplinar, bem a cara do que é o próprio patrimônio. Pesquisadores de várias partes do Brasil, da Argentina e da França. São três franceses, sete argentinos e dez brasileiros, que generosamente contribuem com esse livro e o tornam mais rico.

Primeiro exemplo desse desnudamento do patrimônio. Lembra do Prof. David Lowenthal, que diz que o patrimônio é tratado como uma "vaca sagrada", que não pode ser tocada. Ele tenta reverter essa sacralização do patrimônio. E, como a proposta desse livro, eu e o Prof. Jorge, propomos não só reverter, mas mostrar também que o patrimônio pode ser meio de exclusão social, de hierarquização social, e de outros tantos meios perversos decorrentes do uso do patrimônio e da gestão do patrimônio. Permitam-me citar Hugues de Varine, no capítulo "Por um olhar histórico sobre nosso patrimônio", página 22 do livro:

"Atualmente, é provável que o ódio do Estado Islâmico pelos monumentos deve-se, ao menos em parte, ao fato de que eles foram descobertos e valorizados por arqueólogos europeus (herdeiros dos 'cruzados') e que são atrações turísticas para massas de visitantes vindos igualmente da Europa ou de países industrializados, isto é, do inimigo. É um ato político, de vingança, um ato de guerra. Mas nós, certos de possuir a verdade, consideramos esses fatos como uma ofensa ao patrimônio, uma barbárie, porque esses bens, ditos 'culturais', representam para nós um valor superior, abstrato, que nós queremos impor há mais de cem anos". (2018, p. 22)

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Vamos, então, refletir um pouco sobre essa fala de Varine: o patrimônio, tal qual o conhecemos, é uma visão ocidental. A UNESCO é um órgão do Ocidente. Não vou tratar das problemáticas do conceito entre Oriente e Ocidente, mas como o patrimônio é uma expressão política da memória. Maria Letícia Mazzuchi usa esse termo, do qual eu me aproprio. O patrimônio é expressão política da memória, através dele se reivindica uma série de questões. O Estado Islâmico se apropria desse patrimônio como ato político, ato de guerra, de vingança, como diz o Prof. Hugues de Varine. Então, por meio dele, pode-se perpetrar ou se demonstrar a relação de disputa – a exemplo de como Oriente e Europa se veem como inimigos. Nesse texto, o Prof. Hugues de Varine diz que é preciso uma interpretação história de patrimônio. É preciso mergulhar o patrimônio na consciência histórica. Não há como falar sobre o patrimônio sem ter essa perspectiva. Patrimônio é um ato político.

Em sequência, o Prof. Jorge Kulemeyer diz o seguinte: "A drástica expansão do conceito de patrimônio, quase onipresente em determinados espaços das sociedades sul-americanas, geralmente não só está imbuída de propósitos políticos mas, também, de premissas próprias de mercado e interesses setoriais e particulares, pelo que nesses casos, com frequência, resultam praticamente impossível separar de maneira precisa quais são os componentes e limites de cada um de seus ingredientes ideológicos e que os concebem como um meio para alcançar benefícios materiais" (2018, p. 35; tradução simultânea).

Notem como ele traça a mesma linha de Hugues de Varine: "está imbuído de propósitos políticos". É impossível separar esses componentes e os limites de cada um dos ingredientes ideológicos. Se a gente pensar, por exemplo, no caso do Brasil, Andrey Schlee, diretor do Departamento do Patrimônio Material do Iphan, em uma palestra recente, ao falar da comemoração dos 80 anos do IPHAN, disse que mais de 50% dos bens salvaguardados no Brasil são vinculados à Igreja Católica. Ora, por quê? A Igreja Católica é uma instituição política, é uma instituição que ainda detém muito poder político. Se a gente enumerar os bens tombados como patrimônio material, veremos que há uma maioria de bens que representam ou a religião católica (imagens sacras, igrejas), ou a aristocracia (os casarões) ou o poder militar do Estado (edificações e fortificações militares). Essa maioria representa a memória como uma instituição de poder. Por que esses bens fazem parte da maioria dos bens tombados? Porque atende reivindicações políticas hegemônicas. O Terreiro de Casa Branca, em Salvador-BA, foi o primeiro bem edificado religioso não católico tombado no Brasil (1986), tendo o IPHAN sido criado pela Lei 378 em janeiro de 1937 (assim como o Decreto-Lei 25 - que regulamenta a própria atuação do SPHAN-IPHAN, de novembro de 1937). Entre 1937 e 1986, praticamente 50 anos, somente igrejas católicas foram tombadas. É muito recorrente o erro de se citar esse tombamento de 1986 como tendo ocorrido em 1984. Na verdade, 1984 é o ano em que o Gilberto Velho, relator do processo, emite seu parecer, mas a inscrição no livro de tombo é de 1986. Esse ano de 1986 é paradigmático porque ele está no final da ditadura militar (1985) e o início da Assembleia Nacional Constituinte (1987). E isso vai surtir efeitos até mesmo nessa ampliação do conceito de patrimônio, que é trazido pelo art. 206 da Constituição Federal, essa expansão do conceito que o Prof. Jorge Kulemeyer chama de drástica.

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No texto do Ariel Ignacio Slavutsky, fala-se de patrimônio e narrativa histórica. O autor diz que: "as ações políticas impõem uma transformação executiva que dispõe da transformação da natureza de um objeto e sua inclusão no dispositivo gerador de identidades com a intenção de explicar um projeto identitário hegemônico, apoiando um relato por cima do outro." (2018, p. 44-45; tradução simultânea). Olha aí: de novo, a ideia de hegemonia presente no discurso do patrimônio. Ariel indica a modificação da natureza do objeto. A gente pode pensar nessa disputa entre local e global. Quando é que a gente fala que um patrimônio é patrimônio da humanidade? O que isso significa? Certamente não representa uma identidade coletiva. Vamos falar, por exemplo, que a Cidade de Goiás, que é patrimônio da humanidade, representa uma identidade da humanidade? A gente pode falar, por outro lado, que é uma valorização estética, estilística, arquitetônica de um patrimônio que representa arte? O patrimônio da humanidade representa muito mais. A arte mais como valor humano que uma identidade hegemônica. Stuart Hall, quando trata da identidade, diz que a imposição de uma hegemonia cultural como fruto da globalização pode surtir três efeitos: a cultura local sucumbe e desaparece, dando lugar a essa cultura hegemônica; ela se hibridiza; ou a cultura local resiste e busca novas formas de reivindicação. Essas novas formas de reivindicação encontram guarida no patrimônio cultural, principalmente naquele patrimônio que é chamado de imaterial, porque ele está dando abrigo a reivindicações de grupos que até então não se sentiam atendidos por uma política pública de patrimônio. Se a gente pensar no Brasil, a partir do Decreto 3551/2000, as paneleiras de Goiabeiras em Vitória-ES são patrimônio cultural imaterial brasileiro, a arte Kusiwa, dos índios Wajãpi, a viola de cocho, o saber fazer queijo do Serro, o Frevo, e por aí vai. São exemplos do que Stuart Hall fala, de uma resistência contra a imposição de uma hegemonia cultural, em reivindicações por políticas públicas, como aquelas que envolvem o patrimônio. Nós podemos interpretar a ideia de Ariel Slavutsky de forma a dizer que, até mesmo nacionalmente, há uma organização para tentar trazer um projeto identitário, só que elas são reinterpretadas localmente.

Voltando ao exemplo da cidade de Goiás, a forma como a comunidade recebe o título de patrimônio da humanidade, é completamente diversa da forma pela qual os turistas o fazem. Existem pessoas na cidade de Goiás que não gostam da condição de patrimônio da humanidade, não gostam dessa invasão turística que a cidade sofre por conta dessa valoração dada pela UNESCO. Há essa reinterpretação local.

O Prof. Manuel Ferreira Lima Filho, que agora é o diretor do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, em seu capítulo, na p. 51, intitulado "Cidadania Patrimonial", diz: "[...] transporto [...] as considerações de teor antropológico e de gestão para a recepção por parte dos coletivos sociais com relação às políticas patrimoniais do Estado idealizadas pela conjuntura internacional por meio da UNESCO, principalmente condizente com a política de tombamento e de registro do patrimônio imaterial ou intangível. Nesse sentido, insurgência, inércia, engajamento ou modulação cultural dão o tom do enfrentamento de tais grupos com essas políticas de Estado-nação, particularmente na América Latina, quando todos os países foram signatários da convenção da UNESCO para o registro dos bens imateriais". (2018, p.51). Então, notem que ele reforça o que eu disse há pouco. Há insurgência, essa resistência a uma posição; por outro lado, há também inércia, há engajamento, há modulação cultural, que a gente pode chamar de hibridação. Ou seja, mais uma vez o patrimônio como área de conflito. Um conflito inerente, não há como falar de patrimônio sem falar de conflito. Então, desde o conflito mais simples, simples no sentido de não causar risco à própria vida humana. Mas, desde o conflito identitário, econômico, até mesmo o bélico. As primeiras demandas de preservação da UNESCO são para tentar salvaguardar o patrimônio ameaçado por guerras.

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A Unesco surge como braço da ONU, após a Segunda Guerra Mundial, certo? E as primeiras demandas são para salvaguardar bens que foram vitimados pela Guerra. Quando Ariel Slavutsky fala da Unesco, ele está dizendo que existe uma agência com perspectivas ambientais, de imposição, de uma entidade hegemônica. Quero mostrar que existe muita intencionalidade, via patrimônio. Não existe ingenuidade. Muitos interesses estão por trás de ações do patrimônio. O professor Leonardo Castriota vai dar um exemplo disso no texto “A urbanização perversa: considerações iniciais sobre gentrificação e patrimônio”. Diz ele: “Fenômeno muito discutido pela literatura que se ocupa do patrimônio, a gentrificação pode ser descrita, de um modo geral, como o processo por meio do qual classes mais abastadas passam a ocupar bairros originalmente habitados por classes mais pobres, transformando a ambiência daqueles locais – com alterações na paisagem, substituição do comércio local por franquias de grandes marcas, elevação do preço dos aluguéis e no custo de vida, dentre outras – e levando à gradativa exclusão da população original. A instalação de uma nova gentry (“pequena nobreza”) urbana, com a consequente substituição dos inquilinos e do comércio local tradicional, leva ao termo gentrification, traduzido para o português como gentrificação”. É mais um lado perverso do patrimônio. No Pelourinho de Salvador aconteceu tudo isso que o Professor Castriota diz. Substituição do comércio local por franquias de grandes marcas, elevação dos preços dos aluguéis – tem acontecido na Lapa, no Rio de Janeiro. Um exemplo que o professor dá, no Rio, foi causado pela Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, com os novos mercados mobiliários de edificação. Via patrimônio provoca-se uma exclusão do que o professor chama da população original por conta de preços de aluguéis elevados, valorização do imóvel e consequente aumento do IPTU, por conta de uma valoração turística. O texto do Professor Leonardo Castriota é um dos mais ostensivos, até pelo título: “A urbanização Perversa: considerações iniciais sobre gentrificação e patrimônio”, como o patrimônio é tratado por Castriota... causa de exclusão, para causa de exclusão.

No texto seguinte, que já é da segunda parte, o antropólogo Joël Candau, referência na área de memória (o livro dele “Memória e Identidade” foi traduzido para o Português pela professora Maria Letícia Mazzuchi). Há um outro livro também que, não sei se há tradução para o Português, mas para o Espanhol tenho certeza. “Antropologia da memória”. Ele vai dizer nesse capítulo que, abra aspas: “Penso que a responsabilidade do pesquisador é de sempre lembrar que aquilo que nós tomamos por uma memória partilhada é, principalmente, o relato partilhado de uma memória”. Ele está demonstrando que há problemas nesse conceito de memória compartilhada. Se falou sobre conflitos de memória, ele falará em conflito em torno da memória. E vai dizer ainda que, se na memória individual o hipocampo é parte essencial, onde nossos neurotransmissores são responsáveis pelo trajeto dessa memória, na memória coletiva, nós, os indivíduos, somos os sócios transmissores. Mas essa memória que é partilhada, na verdade, é um relato partilhado de uma memória. E que esse relato que ocupa geralmente a identidade profunda, em proveito de identidades contingentes, pode estar a serviço do pior, quando traz consigo exclusão daqueles que não compartilham essa memória. Ou seja, a forma de relatar uma memória, o relato compartilhado de uma memória pode ser excludente. E que, terceiro, um dos grandes desafios das sociedades contemporâneas pode se resumir na questão seguinte: como fazer com que os grandes relatos estruturantes dessas sociedades se transformem em uma memória coletiva sempre mais inclusiva? Então ele está problematizando o seguinte: a memória coletiva, como fazer com que a memória coletiva deixe de ser excludente? E aí quando a gente fala  que o patrimônio é um lugar de memória, como é que o patrimônio pode deixar de ser excludente? Ela precisa ser inclusiva. Eu costumo dizer aos meus alunos, tanto do bacharelado em Museologia, quanto do programa de pós-graduação em História: se o patrimônio não for causa da emancipação para a promoção da comunidade que vive daquele patrimônio, ele é apenas retórico. Como foi o caso do Pelourinho, em Salvador, ok?

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Adiante. O texto de Joël Candau encerra a primeira parte e Dominique Poulot abre a segunda, com “Glórias e vergonhas no Museu”. Está mostrando as duas faces do Museu: a face que geralmente é divulgada e debatida é a da glória. Qual seria o lado perverso? O da vergonha. “O museu manteve, sempre e em todas as partes, laços estreitos com a glorificação política; a denúncia é igualmente um lugar comum da crítica da instituição, acusada de ser uma vitrine de prestígio aos poderes”. Como ensina Mario Chagas, existe um poder da memória, mas existe também uma memória do poder. É isso que o Dominique Poulot está dizendo. Muitas vezes o museu é uma vitrine de prestígio, de poderes. “De fato, interessa pela glória, o interesse pela glória é, frequentemente, a única justificação – senão a única via de exposição – da atuação política nos museus, apesar de algumas tentativas de expor os locais e as formas de democracia terem sido feitas em certos momentos, como demonstram os debates e as polêmicas”.

A questão do vínculo entre museu e glória política parece óbvia, em um país como a França, onde o mais antigo e o mais notório de todos os museus, o Louvre, é, por assim dizer, identificado como o palácio do príncipe. Ora, voltando ao Mario Chagas, ele diz que há uma gota de sangue em cada museu, fazendo uma paráfrase de Mario de Andrade: “há uma gota de sangue em cada poema”. Há uma gota de sangue em casa museu, e há uma gota de sangue em cada patrimônio. Se o patrimônio é permeado de conflito, como é que essas histórias higienizadas só de glórias silenciam as vergonhas?

Em sequência, o texto que eu escrevi com o professor Lúcio Ferreira. São apresentados dois estudos de caso da cidade de Juiz de Fora, minha cidade natal. É uma cidade na qual eu militei e trabalhei com patrimônio; fui presidente do Conselho Municipal de Cultura e emiti muitos pareceres contra a preservação do patrimônio: O lado perverso. Por que? Não que eu seja contra o patrimônio, mas porque a questão pública cometeu equívocos. Os equívocos da questão pública que foram perniciosos para a preservação do patrimônio. E eu vou explicar. O primeiro caso é o dessa casa que fica na avenida Rio Branco. As duas imagens das fotos são minhas. Uma antes da descaracterização e uma depois. O que aconteceu? O proprietário foi notificado quando já estava nessa fase de descaracterização. Ele foi notificado pelo conselho Municipal de Patrimônio quando a casa estava em processo de tombamento. Quando é iniciado um processo de tombamento, todos os efeitos de um tombamento definitivo são aplicados ao provisório, com exceção da inscrição no livro de tombo. O grande problema é que ele não foi notificado no início desse processo. Ou seja, o processo não estava aberto: o processo é nulo, porque o processo de tombamento só pode ser declarado aberto a partir da notificação do proprietário, em respeito ao princípio do contraditório. Ele pode se manifestar contra. Então, a questão é a seguinte: não é que eu seja contra o tombamento,  mas ao fato do proprietário não ser notificado, e portanto, o processo é nulo, cheio de vícios. Se um processo é nulo a intervenção que eles fizeram na casa é válida. Isso é um grande problema. Então, o poder público comete o equívoco pernicioso de não notificar. Então se não notificou, tudo aquilo que ocorreu é nulo. Então, a cidade perde esse patrimônio porque o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio de Juiz de Fora comete o erro de não notificar tempestivamente.

O segundo caso: notem que há uma placa na direção do poste. Uma placa de um comércio nessa casa. E o proprietário foi notificado a tirar essa placa, pois o imóvel seria tombado. Notem que essa casa está geminada com aquela verde lá da ponta. São dois imóveis na rua Gilberto de Alencar. O da esquerda, número 26, e o da direita, número 20. Logo, são imóveis distintos, certo? A casa da direita, que é essa verde, sofreu uma alteração. E essas casas foram desmembradas. Logo, são objetos distintos. A que é tombada é a verde, e não a outra. Não é que o proprietário da outra deveria ser notificado. Tudo bem se notificar, porque está dentro de uma área de zoneamento, se existir essa área de zoneamento. Agora, não existindo essa área de zoneamento, ele não pode ser notificado para retirar a placa. Porque o imóvel tombado não é aquele. É esse verde.

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Notem... número 26 e número 20. Então, vale lembrar que o imóvel deve ser individualizado no decreto que o tomba. Os imóveis 20 e 26 não são o mesmo imóvel. O decreto trata, ao descrever o imóvel tombado, o 20 e o 26 como se fosse um único. Não são o mesmo. Não se pode confundir nas determinações de preservação. A notificação sobre o número 26 não tem sentido porque ele não é o imóvel tombado. Não merece selo por esse decreto. Se tem apelo histórico, estético, arquitetônico, precisa de um processo específico. Pode parecer um absurdo, mas aconteceu, né? São dois casos nos quais a Prefeitura comete equívocos desse porte. Bárbaros. E que prejudicam de certa forma a preservação. Tentando preservar, dá um tiro no pé.

O texto seguinte ilustra um pouquinho o que eu já disse antes sobre a questão de quantos bens religiosos não católicos são preservados. O caso dos terreiros das religiões afro-brasileiras em Laranjeiras, no Sergipe. Os autores Raul Lanari e Hugo Rocha dizem o seguinte: “Até que ponto o reconhecimento dos terreiros como patrimônio cultural (material e imaterial) pode contribuir para a superação das desigualdades históricas existentes entre setores da população local?” Como disse, até que ponto o patrimônio promove, emancipa? Eu os convido a ler esse texto, muito interessante. Vocês vão notar que alguns grupos não queriam a patrimonialização dos seus bens. Haveria o risco de se aumentar as desigualdades existentes, e não diminuir.

A professora Izabela Tamaso fala sobre a cidade de Goiás (Goiás Velho) no texto que se segue, “Reformas patrimoniais em Goiás: sobre santos, santas e cristos”. Ela diz o seguinte: “Cabe perguntar ainda, parodiando Woortmann (1994), ‘patrimônio de quem’ e ‘patrimônio para quem’?” Ela está tratando de obras sacras e diz: “No caso das obras sacras, o patrimônio é materialmente (posse) e simbolicamente (estética) do Museu (elite cultural) e da Diocese e é patrimônio para a elite cultural local e os turistas. No caso das imagens sagradas, o patrimônio é simbolicamente (fé) dos devotos e é patrimônio também para os devotos. Para quem o patrimônio está sendo preservado e protegido?” Ou seja, há uma narrativa de patrimônio da humanidade; é um patrimônio cultural, mas e a comunidade local? Em um outro trabalho da professora Izabela sobre esse processo da Unesco, de patrimonialização da Cidade de Goiás, como exemplo de como a Unesco não incluiu a comunidade local durante esse processo, há uma história da “pedra do pé”. A cidade é calçada por pedras. E as crianças, ao bater pique esconde – em algumas situações bate-se num poste, num muro – as crianças marcavam o pique na pedra do pé, que era uma pedra no formato de pé, em uma determinada rua. A Unesco, ao fazer o cabeamento subterrâneo, retira todas as pedras e as recoloca, sem manter as pedras como eram organizadas antes. E a população reclama “cadê a pedra do pé, cadê a pedra do pé?”. E a pedra do pé aparece da noite para o dia em um lugar, mas não no lugar em que ficava. Ou seja, a memória afetiva do local não foi levada em consideração nesse processo de patrimonialização.

No capítulo seguinte, a professora Maria Elizia Borges, no seu capítulo “Os cemitérios secularizados no Brasil”, vai apontar como os cemitérios não são devidamente tratados como patrimônio. Ela vai dizer: “O registro do Iphan lista apenas 15 tombamentos de monumentos diversos, entre cemitérios, portais de cemitérios, inscrições tumulares e túmulos específicos. Os dados poderiam ser interpretados, dadas as proporções do território nacional, como um quadro muito reduzido de tombamentos, haja vista a potencial relevância desses sítios como espaços de identidade e expressão cultural do grupo social que acolhem. Os poucos cemitérios tombados são assistidos pela importância histórica, arqueológica, paisagística, artística e religiosa. Existem também alguns monumentos funerários tombados por leis municipais. Tanto o tombamento integral do cemitério como o de túmulos individuais interfere pouco nas práticas de restauração e preservação desses bens patrimoniais, pois não existem normas institucionais concretas entre o Ibram e o Iphan que favoreçam a preservação dos cemitérios municipais no Brasil”. É um ato perverso da gestão. Ela diz que o patrimônio é deixado de lado.

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Então, já encaminhando para o encerramento.Esse livro, a capa que está em espanhol, é a versão argentina do livro. E essa outra capa é a capa do livro que eu também vou sortear para vocês. Eu até pedi para a Marisa fazer o sorteio para mim. Vai ser sorteado, obviamente, só para aqueles que estão on-line. Eu trabalho investigando como a legislação, no Brasil, e com alguns estudos de caso, ainda espelha, reflete, esse tratamento desigual entre patrimônio material e imaterial. Como ainda o patrimônio de pedra e cal prevalece sobre o imaterial. Já adiantando que o patrimônio, na verdade, tem de ser interpretado de maneira holística. Mas já que ele tem categorias (material e imaterial) que são mais pedagógicas e adequadas para cada instrumento jurídico, a gestão desse patrimônio é uma só. Mas eu faço essa apresentação nesse livro.

No penúltimo slide apresento outros livros que, infelizmente, não tenho exemplares para sortear entre vocês. Um é uma coletânea de artigos, o “Proposições para o patrimônio cultural”, no qual trato de assuntos diversos. O outro, “Patrimônio cultural plural”, no qual sou organizador, que também saiu pela Arraes Editores. O primeiro é pela Lumen Juris. Quem tiver interesse pode me escrever. Nesse livro há artigos de ótimos pesquisadores, das mais diversas áreas. Pessoas que são tidas como referências nas suas áreas de pesquisa, como Mario Chagas, a Márcia Chuva, da Argentina, Mônica Rotman. Tem muita gente boa aí nesse livro. Pedro Funari, Lucio Menezes Ferreira, Maria Letícia Mazzucchi, entre outros.

E no último slide, eu os convido a conhecerem as duas últimas revistas do Iphan, às quais é possível ter acesso integral, gratuitamente, pelo site do Iphan. Eu fui coorganizador. Essas duas revistas são em comemoração aos 80 anos do Iphan. A revista 35 trata da trajetória do Iphan, de 1937 a 2017, com um capítulo meu no qual abordo a Assembleia Constituinte e sua relação com Patrimônio, que é meu tema de doutorado, em um livro que vai sair esse ano (Palanque e Patíbulo: o Patrimônio Cultural na Assembleia Nacional Constituinte – 1987/1988), investigando como o Patrimônio Cultural é objeto da Assembleia Constituinte. A segunda revista (nº36) trata dos desafios e perspectivas do e para o patrimônio. O professor Andrey Schlee foi o organizador e eu coorganizador. E os convido a fazer download e ler. Quem quiser pode acessar o meu perfil na academia.edu, é só procurar, está lá, disponível para download, ou no próprio site do Iphan, tá bom?

Agradeço a atenção de vocês, o carinho de vocês, a paciência, e fico aberto às suas perguntas.

Marisa:

Bem pessoal, nós vamos abrir às perguntas e logo em seguida faremos o nosso sorteio. Alguém gostaria de fazer uma pergunta? Se quiserem fazer por escrito, tranquilo. Ou se preferirem ligar a câmera e o microfone de vocês...

Marisa:

Temos uma pergunta do Prof. Humberto. Ele destaca: “Como falhou a voz em alguns momentos, eu gostaria de saber se o patrimônio é perverso ou é o uso que dele fazem?”

Yussef:

Vou responder o Professor Humberto, completando com o que a Ana Vaneska e a Meire disseram. Professor Humberto, os dois. O patrimônio é perverso quando ele é excludente. Também o seu uso, a sua gestão... Por exemplo, quando a Meire pergunta sobre obras sacras. Vou dar um exemplo de perversidade do uso feito por ele. Quando houve o desastre de Mariana, uns dois ou três dias depois, recebi um e-mail de uma certa instituição de preservação do patrimônio; não vou dizer qual é. Eu e vários pesquisadores, pedindo o trabalho voluntário para recuperar as obras sacras. Isso aconteceu também com o terremoto no Haiti, por um convite da Unesco. Havia gente morrendo por falta de acesso à água potável. Eu me pergunto assim: O que vale o patrimônio numa hora dessa? Por que se preocupar em salvaguardar o patrimônio? Trabalho voluntário tem que ser para ajudar as pessoas. Isso é um lado perverso através do uso do patrimônio.

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A Vaneska perguntou sobre terreiros. Eu estendo a questão dela não só para os terreiros, mas também à questão dos quilombolas e respondendo ao professor Humberto: a própria Constituição foi perversa, através do patrimônio. Por conta do parágrafo 5º do atrigo 216. Afirma que ficam tombados os sítios remanescentes dos quilombos. Existem várias perversidades, as mais evidentes. Primeiro, atropela-se todo um processo administrativo adequado para tal. Faz-se um tombamento através da lei maior. Outra perversidade: o conceito de remanescentes de quilombos. Os quilombos são quilombos. Essa questão histórica é só uma das facetas dos quilombos. Os quilombos são lugares de resistência. E resistência existe até hoje porque existe opressão até hoje. Uma das questões que não é tão evidente, e foi uma das conclusões a que eu cheguei na minha tese, é que no projeto da Constituição, nas discussões durante a Assembleia Nacional Constituinte, o que a gente hoje encontra no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – os títulos de propriedade para os quilombolas –, esse texto estava em conjunto com o que a gente encontra no parágrafo 5º do artigo 216. Era um texto só, como se fosse possível separar cultura de território. Não é, correto? Obviamente não é. O constituinte jogando para a plateia, já que em 89 haveria eleições diretas. Joga para a plateia ao colocar no texto permanente da Constituição uma cultura dizendo que ficam tombados os quilombos, mas atende àquela bancada ruralista, postergando a emissão de título de propriedade para o legislador infraconstitucional, sabendo que a grande bancada do Congresso Nacional que legislaria sobre isso é a de ruralistas. Ou seja, perde-se a oportunidade da emancipação, via patrimônio e emissão de título da propriedade, ao fazer esse desmembramento, e deixando para o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, como se isso fosse algo transitório e não é. A mesma sistemática dessas disposições constitucionais onde a gente lê que será organizado o plebiscito no ano de 1993, isso sim é um ato de disposição constitucional transitória, porque ela já tem seu prazo de validade. Agora, a emissão de título de direito de propriedade, não. Porque isso não está no artigo 216, parágrafo 5º? Claro que hierarquicamente, juridicamente, não existe uma hierarquia. Mas politicamente existe, obviamente.

E respondendo à Daiana, no site do Iphan, você consegue as duas revistas, como todas as outras demais: as trinta e seis edições estão lá disponíveis para download, na íntegra, ok? Essas duas revistas estão no meu perfil acadêmico, do academia.edu. E esses livros aqui não, esses livros não estão no site do Iphan não.

Marisa:

Carlos escreveu a seguinte pergunta: Sobre a placa de publicidade, mesmo sendo ao lado de um imóvel tombado, não seria oportuno limitar o uso ou o seu tamanho minimizando seu impacto no seu entorno imediato?

Yussef:

Carlos, concordo com você: estar ao lado, sim. Poderia alegar área de entorno. Mas o problema é que a justificativa que o proprietário recebeu para retirar a placa foi a de que o imóvel seria tombado, e não o entorno. Concordo com você, tem razão.

Valéria escreveu: “Poderia explicar um pouco mais sobre essa frase de um dos slides: “a perversidade do patrimônio está presente quando sua gestão ou invenção abarcam a memória do desaparecido”. O que seria a memória do desaparecido?”

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Valéria. No Brasil isso ainda não acontece. Mas na Argentina, lugares que foram porões da tortura na ditadura da Argentina se tornaram lugares de memória, como a ESMA. No Brasil isso ainda é um pouco mais difícil: Como tratar dessa memória, essa memória traumática? Se ela for má gerida e má gestada, ela pode ser perversa.

Maria Catarina escreveu: “Sobre o tombamento de bens materiais, o poder público não tem uma política para a manutenção dos mesmos. Como será a manutenção desses bens se não há recursos? Nesse caso entendo como uma perversidade, é isso?”

Concordo com você. Sobre a Assembleia Constituinte, quando entrevistei Otávio Elísio, que foi o deputado constituinte, perguntei: Professor, está na Constituinte uma sugestão para que houvesse destinação de recurso público para a preservação de bens tombados, recursos diretos para o proprietário. E isso é retirado. Ele respondeu que a única área – isso lá na comissão de cultura, de educação e cultura, e esportes – que foi enxergada com unanimidade para a qual haveria destinação do recurso, era a área da educação. A legislação de tombamento, eu acho que ela sozinha não dá conta de salvaguardar. Eu acho que é preciso que haja legislações paralelas que auxiliem o decreto-lei 25/1937, como a realização da transferência do direito de construir, mas concordo com você, Maria Catarina.

Agora a Juliana está pedindo para falar sobre a questão do estado e a questão do esquecimento. Ora, se a gente pensa nas versões oficiais, na história oficial, quando ela silencia algumas memórias, essa memória, essa história, é seletiva, contada pelos vencedores, não é? Basta a gente pensar nessas estátuas que se vê nas praças. É a história de um, mas não de todos.

Ana escreveu: Obrigada pelo retorno. Mas ainda não compreendo o lado perverso para as comunidades de terreiro na perspectiva de manutenção das desigualdades sociais. Trago terreiro, porque o texto dele traz o debate (me parece) em torno da realidade dos terreiros. Esse é um debate que muito me interessa. Sou ekedje e lutamos pela proteção, considerando, sobretudo, as medidas de salvaguarda como caminhos para o aplacamento das desigualdades.

O que o Raul e o Hugo tratam lá, e eu não vou dar spoiler, mas é o caso de alguns terreiros, a comunidade não quis a salvaguarda, porque na realidade local a proteção destacaria ainda mais, ampliaria ainda mais, as relações desiguais locais, por conta da forma de gestão desses patrimônios. Até por uma dinâmica própria, diferente da igreja, já que às vezes o tombamento pode ser engessador.

Marisa:

Nos resta agradecer muito ao Yussef por esse momento conosco e reforçar com vocês que nós encaminharemos o link de gravação desta webconferência na próxima semana, juntamente com a divulgação da próxima, que ocorre no dia 2 de maio. O título é “Patrimônio Cultural na construção de identidades políticas”, com o Gabriel Barroso Fortes. Agradeço muito a presença de todos vocês, pessoal, e continuemos participando. Essas trocas são muito boas. Uma boa noite a todos.