Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania - III Ciclo de Webconferências
PDCC - III Ciclo de Webconferências
 
Página 40

Memória, tradição e democracia

3ª Webconferência

       
As partes deste texto relacionadas a teoria sociológica resultaram de modificações à conferência proferida na Conferência Internacional Alberto Viegas, realizada na Universidade Pedagógica de Nampula – Moçambique, em maio de 2015. Os dois casos ilustrativos sintetizam textos publicados em diferentes eventos, relacionados nas referências finais

Agradeço à Marisa e aos demais organizadores pelo convite. Preparei a exposição tentando cumprir a solicitação de tratar as conexões possíveis entre memória, tradição e democracia. Por isto, o texto explora o sentido conceitual das duas primeiras palavras, com o sentido de instrumentalizar a compreensão de impasses, desafios e incertezas da democracia, conforme a estamos experimentando no Brasil, em pleno Governo Temer.

Políticas de memória em sociedades que saem de ditaduras e iniciam seus processos de democratização encontram entraves de difícil superação, dados os contextos das disputas hegemônicas envolventes e a tradução institucional dos fundamentos e objetivos da democracia. As expectativas dos atores e estudiosos variam imensamente quanto aos propósitos das diferentes forças em luta e quanto ao alcance das iniciativas que eles implementam no decurso do jogo político.

No momento desta exposição, em março de 2018, continuam vigorando cenários da democratização originados ao final da ditadura militar de 1964. Portanto, não tratamos de cenários ou conjunturas exatamente novas, se imaginarmos que seus componentes já entram na terceira década posterior ao marco da transição política – a Constituição Federal de 1988. Se durante ao período de resistência ao autoritarismo de Estado bastava uma genérica profissão de fé na democracia para se afirmar o carácter eticamente virtuoso de alguma força política e para unificar projetos em oposição à ditadura, os posteriores momentos de implantação democrática vão se mostrando carregados de ambiguidades e lacunas, tendo em vista que as decisões tomadas em nome da democracia produzem efeitos desagregadores dos próprios democratas e também compreendendo que as ações julgadas necessárias para se realizar as utopias de muitas dessas forças políticas não eram, em si, unificadoras.

Portanto, a importância conferida a memória política nos ambientes de fermentação das apostas democráticas varia conforme os processos de transição evoluam em cada país. Como tendência geral, vale a pena registrar que as leis e as tendências definidoras do arranjo democrático vão ganhando forma ao longo do processo, dependentes de dinâmicas às vezes imprevistas ou indesejáveis, que não se revelam por inteiro quando de suas ocorrências. Submetidos às lógicas de disputas e negociações, os processos políticos irão ao final refletir as convicções e interesses com maior força e capacidade para ditar as molduras da democracia. Em consequência, os espaços de significação institucional da memória também se enquadram nesta visão sobre os condicionantes das disputas hegemônicas, tornando-se também objetos dessas disputas.

A primeira parte do texto aqui iniciado ocupa-se com reflexões sobre memória, a partir das demandas de disputas para que a consolidação da democracia brasileira contemple a institucionalização de uma política de memória. Na sequência, lidamos com tradição, atentos à distinção entre os significados de tradicionalismo e conservadorismo. Democracia, o terceiro termo do título, aparece transversalmente nestas duas sessões, com sentidos correlacionados às notas sobre memória e tradição.

Página 41

Em princípio, temos em mente mais as condições práticas da democratização do que a democracia em si, como conceito ou situação idealizada, num alinhamento ao recurso antes utilizado pelo sociólogo húngaro Karl Mannheim, nos anos de 1930 e 1940, e pelo cientista político norte-americano Robert Dahl, que elaborou suas teorias nos anos de 1970. Na perspectiva de ambos, o curso da democratização transborda os fenômenos estritos à esfera política institucional, para interagir com processos mais amplos da sociedade e da cultura e deles receber influências.

Dois relatos oriundos da experiência na Comissão Estadual da Verdade, Memória e Justiça em Goiás (CVMJ-GO), representando a Universidade Federal de Goiás, nos anos de 2014 e 2015, são apresentados na última parte, com intenção de ilustrar a fragilidade de uma política de memória em nossa cultura democrática. Trata-se de dois casos relevantes para pensar a relação entre memória e democracia, que não foram resolvidos do ponto de vista institucional e dos direitos humanos e culturais e que, por isso, caminham rapidamente para a situação que Paul Ricoeur denominou de esquecimento obrigatório.

I – Memória e Política de Memória

É próprio das disputas hegemônicas o desenvolvimento de contrastes, acordos e tensões, configuradores dos campos de buscas pela “legitimação de discursos legítimos” (BOURDIEU, 1989). O campo político, diz Bourdieu, “é um campo de disputas em que as forças nelas empenhadas alimentam-se fortemente de recursos simbólicos”. Ricoeur, por sua vez, institui a noção de “esquecimento obrigatório”, para explicar os efeitos da imposição de narrativas a respeito de eventos traumáticos, viabilizada por operações institucionais voltadas para sufocar outras narrativas a respeito dos mesmos acontecimentos históricos (RICOEUR, 1997).

Não é difícil verificar nas linhas de estudo com tema no renascimento das democracias, e também nas referências discursivas dos que buscam interferir nas  condições políticas desse renascimento, a atenção dedicada à força da memória (quando ocorre) guarda relação nas vertentes conceituais de Bourdieu e Ricouer.

Nas sociedades saídas de ditaduras, as lembranças ao passado recente realizam-se como operação deliberada de trazer ao presente os conteúdos desse passado, sendo um dos objetivos informar as forças sociais empenhadas nas lutas ético-políticas relevantes. Quero ressaltar que nessa concepção de política de memória, os fatos e conteúdos a serem lembrados são intencionalmente designados, estimuladas ou provocadas para compor a agenda. O ato de tratar o passado como versão produzirá resultados que ficarão registrados nos monumentos, nos textos das placas oficiais, nos relatos das justificativas legais, na heroificação das personagens e, mesmo, nos currículos escolares.

Página 42

Tal empreendimento por uma política de memória requer o pressuposto, convicto e claro, sobre a impossibilidade de se relatar o passado em forma pura, numa narrativa ausente de distorções ou completamente objetiva. Reconhece-se como método que o resgate do fato acontecido não chegará ao presente com a precisão de quando aconteceu, dado que, sobretudo, os protagonistas da memória capazes de recuperá-lo, em partes ou por inteiro, são narradores que, ao narrarem, professam e divulgam crenças, ou melhor, divulgam experiências particulares que levaram à retenção do passado. A revivescência do fato, portanto, emerge eivada de ênfases seletivas e necessárias para reforçar ações pretendidas no ato da sua evocação no presente. Essa intencionalidade repõe a propriedade do “caráter parcial de todo conhecimento político” (MANNHEIM, 1981) que Ecléia Bossi trouxe para o campo da lembrança ao ressaltar que “sempre que acionada para iluminar entendimentos dos cenários sociais contemporâneos, ela, a lembrança, se modifica e modifica o relativo do fato lembrado.” (BOSI, 1981)

Assim, a memória requerida numa política de memória difere da memória espontânea aquela que, repetindo Ecleia Bosi (op. cit.), aparece nos nossos sonhos. Ela é uma modalidade de memória em busca das condições de legitimação social e política pois, nem tudo do passado é buscado para compor os discursos construídos no presente. Antes de tudo, a política de memória advém de responder a duas indagações cruas e diretas: que fatos e tendências do passado devem ser valorizadas hoje? Como garantir essa valorização, senão no plano das lutas de ideias, em que são acionados recursos de propagação, de ensinamentos e de enfrentamentos com outras posturas e conceitos que também querem se ver afirmados e valorizados?

Nesse aspecto, a política de memória compõe um importante tópico nas denominadas justiças de transição, ao lado das lutas por reconhecimento dos crimes das ditaduras, com as consequentes ações institucionais por reparação às suas vítimas. Outro desafio indica a cobrança de punição àqueles que durante o Estado de exceção utilizaram de recursos públicos para eliminar adversários políticos, através de prisões arbitrárias, perseguições, tortura e execuções de presos, muitas vezes fazendo desaparecer os corpos das vítimas. Em nome do direito internacional, que conceitua a tortura como crime contra a humanidade, em várias sociedades replicam-se as vozes dos que questionam os limites das soluções negociadas para a transição política através da negação dos significados de perdão e esquecimento, ao modo como acabaram inoculado às anistias em cada país.

Página 43

Nos contextos de justiças de transição em diversos países, desde a década de 1970, há momentos em que dificuldades na gestão da democracia – por exemplo, quando há desmoralização das instituições ou devido à ineficiência diante de crises econômicas, ou devido a escândalos de corrupção, ou a impunidade dos corruptos – fazem reaparecer demandas pelo retorno de governos autoritários, inclusive de ditaduras militares. As soluções adotadas têm sido distintas e nem sempre conduzem a graus similares de estabilidade democrática e respeito aos direitos humanos.

Conceitualmente, então, justiças de transição enfeixam um rol de tensões permanentes e situações delicadas para o encaminhamento das pactuações comprometidas com a superação das ditaduras, ao ponto de evitar a apreciação política de alguns atores decisivos na sustentação dos anos de chumbo, notadamente os militares. Em alguns países, somente a posteriori, a dinâmica política introduz o tema na agenda, com a criação das Comissões da Verdade ou Comissões de Memória, Verdade e Justiça. No ano de 2012, foram contabilizados 21 países com funcionamento de comissões da verdade em seus governos.

Os quadros discursivos para criação das Comissões da Verdade definem-se na missão de viabilizar a superação de um passado que se mantém aberto pelas ausências de esclarecimento sobre crimes das ditaduras. Aqui assentam-se as bases teóricas das políticas de memória. A primeira dessas bases recomenda promover a reconciliação nacional; a segunda objetiva responsabilizar os que usaram do aparelho de Estado, sob os regimes de força para cometer crimes de tortura. Por fim, demarcar diferenças entre os novos governos e os governos passados, bem como reafirmar direitos que antes não eram reconhecidos (HAYNER, 2002 apud OLIVEIRA; MEYER, 2012).

Nesses países, a ausência de esclarecimento para mortes e desaparecimentos dos opositores das ditaduras continuam a gerar constrangimento nas agendas políticas. Em alguns casos, inclusive, ameaçando a instabilidade das novas democracias em implantação. Quem participou das torturas e assassinatos de opositores presos que estavam sob a responsabilidade do Estado? Como conviver com as macabras referências aos “mortos sem corpos”, aos “cadáveres insepultos”? A partir de indagações e expressões com conteúdos semelhantes a estas (surgidas nas manifestações das Madres de Maio, da Argentina pós-ditadura) os movimentos de familiares e grupos sociais ligados aos direitos humanos, insistem em lembrar e em inserir nos debates contemporâneos da democracia o tema da memória.

Ao lembrar o passado de horror, essas vozes reiteram a valorização de uma cultura em direitos humanos, como uma dimensão imprescindível para a estabilidade das democracias contemporâneas. A prática, os compromissos com a memória sobre eventos traumáticos, demanda a especificação de lugares e de pessoas que deram formato, rosto e voz a esses eventos. As ações nessa perspectiva, têm resultado em políticas de Estado que produzem ressignificação dos lugares, dotando-os de funções museológicas e de salvaguarda de documentos, políticas que adotam indenização simbólica e mesmo monetárias as vítimas e a seus familiares, e que também incentivam criações patrimoniais, materiais e imateriais, referidas no tema dos direitos humanos.

Página 44

E há ainda políticas de Estado que promovem inserções nos currículos escolares de narrativas a respeito da resistência à opressão, como conteúdo de aprendizados e apreço à democracia. As instituições atuais que com mais veemência expressam esses sentidos políticos da democracia são as Comissões Nacionais da Verdade. Na esfera internacional, consolida-se a Coalização Internacional de Sítios de Consciência, organismo que atua em rede mundial, reunindo Comissões da Verdade, Ministérios de Justiça e outras instituições do gênero, movimentos de direitos humanos, inclusive externos aos Estados. Constitui-se por meio de movimentos assim, centrados na política de memória, uma das dimensões para a efetivação dos direitos humanos entre os paradigmas da ideia democrática nas sociedades que entram nos circuitos da globalização.

No Brasil, desenvolveu-se uma situação emblemática acerca dessa noção, dada a profunda marca deixada pela natureza recíproca que teve a anistia política de 1979. Esse episódio oferece um importante manancial empírico para a compreensão das postergações de reconhecimento e reparações de injustiças, como tem sido a praxe no país. Eu estou me referindo não à anistia em si, mas ao caráter recíproco da anistia. Não me causa estranhamento quando converso com pessoas de opção democrática e bem informadas sobre nossa história recente e percebo que elas desconheçam o significado dessa expressão. Anistia recíproca significou que não apenas os opositores do regime de 1964 que foram perseguidos, presos ou exilados, foram anistiados e puderam retornar à vida pública do país, mas também os seus algozes, incluindo os que torturaram e mataram adversários políticos, foram também anistiados de seus crimes. Essa foi a anistia à brasileira, negociada em 1979.

Uma conquista das forças empenhadas para que as ações reparatórias não acabassem engessadas pela lei de 1979, foi alcançada no art. 8º das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, em decorrência das mobilizações nos fóruns da Assembleia Nacional Constituinte que escreveu e votou essa Constituição. Posteriormente, passaram-se sete anos depois do Artigo 8º de 1988 para o país ver evoluir a implementação desse dispositivo constitucional, com a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos no Governo Fernando Henrique Cardoso, Lei 9.104 de 1995 e da Comissão de Anistia do primeiro Governo Lula, em 2002.

Nesse transcurso, e em paralelo aos dois atos, a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados intensificaram suas ações voltadas à valorização das políticas de memória e das reparações às vítimas da ditadura. Além deles, governos estaduais e entidades da sociedade civil de prestígio na opinião pública, a exemplo da OAB, sindicato de jornalistas e universidades públicas, também terem criado internamente comissões de anistia, que posteriormente tiveram os nomes mudados para Comissões da Verdade.

Somente em dezembro de 2011, já passados 23 anos da Constituição de 1988, a presidente Dilma Rousseff cria a Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça. Em Goiás, o governador Marconi Perillo instala a Comissão Regional com o mesmo fim em fevereiro de 2014, cuja avaliação da trajetória e dos resultados que ela pode obter, eu reservei para o tópico final dessa exposição. Em meio a esses acúmulos institucionais, consolidou-se em nível do Estado brasileiro, ainda que em ritmos intermitentes e com outros momentos especiais, os fundamentos e os instrumentos da justiça de transição. No ano de 2008, realizou-se no Rio de Janeiro o primeiro encontro das Comissões de Reparação e Verdade na América Latina, sob a direção do Ministério do Exterior. No ano seguinte, o Ministério da Justiça cria a Revista da Anistia, que vai significar a legitimação consistente para o embate contra os cultivadores do silêncio e do esquecimento.

Página 45

Cabe aqui registrar que a Revista da Anistia Política e Justiça de Transição, pela Comissão da Anistia tornou-se um veículo que amplia consideravelmente os espaços de tratamento público de questões remanescentes do regime ditatorial. Semestralmente, a revista divulga uma série de pesquisas, análises, documentos e depoimentos que revelam iniciativas políticas e intelectuais voltadas a políticas de memória e de reparação dos crimes da ditadura de 1964.

Boa parte das complexas e tortuosas decisões tomadas a esse respeito durante a democratização, resulta mapeada nos artigos da Revista, ainda que em formato de controvérsias e sentenças inconclusas que assim o são por estarem acopladas à institucionalidade da própria democracia brasileira, ela própria uma institucionalidade ambígua, lacunosa e inconclusa. Por último, em junho de 2016, o Ministério da Justiça organiza junto com a Central Única dos Trabalhadores em São Paulo o 4º Seminário Internacional denominado “O mundo dos trabalhadores e seus arquivos – Verdade, Justiça e Reparação”. No seminário, foram apresentados relatos e documentação de expressiva representatividade a respeito das perseguições e crimes contra lutas sindicais e não sindicais de trabalhadores no Brasil e outros países da América Latina. Os anais desse evento encontram-se disponíveis em três volumes da revista eletrônica do Arquivo Nacional, órgão do Ministério da Justiça.

Em outros trabalhos pudemos colaborar no âmbito da CMVJ-GO em levantamentos de situações de violação de direitos humanos e que não resolvidas, praticadas durante o regime de 1964. Quando digo que não foram resolvidos é que não entraram no rol da política de memória, ou seja, continuam exigindo reconhecimento e reparação pública pelo Estado. Alguns dos resultados foram apresentados em debates dentro e fora da universidade e publicados em veículos acadêmicos e não acadêmicos.

No presente espaço queremos chamar a atenção para a realidade destas situações que, embora longínquas no tempo, continuam sem esclarecimento e quando mencionadas elas às vezes são retrucadas com a indevida alegação de que os esforços de memória e reparação pretendem reescrever a história. Definitivamente não é disto que se trata. Essa acusação de que se pretende reescrever a história é uma acusação feita justamente pelos narradores de uma versão, que foi a versão oficial por muito tempo, e que se apoia naquele conceito chamado de “esquecimento obrigatório”. O criador deste conceito encontra também um sinônimo para ele, que se chama “esquecimento institucional” (RICOUER, 2007).

Na verdade, se lembrarmos dos crimes cometidos pelo nazismo alemão, ou durante o Apartheid Sul-Africano ou pela ditadura franquista na Espanha, que aconteceu na década de 1930, encontraremos três realidades que aparecem ainda hoje nos tribunais de direitos humanos da Europa, da América do Norte e de outros países. As demandas da memória associada ao reconhecimento vão além de meramente “reescrever a história”, porque buscam fazer valer um compromisso contra um tipo de crime contra a humanidade, o crime da tortura, o crime de matar, sob tortura, o opositor político que está indefeso.

Página 46

Abre-se nessa perspectiva a compreensão legítima dos democratas para lidar também, dentro da condição legal no Brasil, com acontecimentos até então obstruídos em nome da anistia de 1979, sem que assim procedendo se pleiteie negar ou “reescrever” sobre as condições originadoras e condicionadoras da democratização. O Brasil é signatário de todos os documentos da Organização das Nações Unidas que denunciam e condenam a prática da tortura em toda e qualquer época. A decisão de não esquecer, no sentido político oposto ao do esquecimento obrigatório encerra, portanto, o primeiro passo para impedir o retorno às condições políticas dominantes ao ponto de gerar condições para a tortura, obstruções de liberdades, perseguições discricionárias, etc.). Este é o sentido das políticas de memória e das medidas de reconhecimento e reparação.

II. Memória e Tradição

Passo agora ao segundo componente do título e peço a paciência de vocês se o conteúdo vier sobrecarregado no viés acadêmico da sociologia, a minha área de formação.

Minha intenção ao preparar a reflexão consistiu em reunir elementos, conceitos, categorias de análise para mostrar que tradição não coincide necessariamente com conservadorismo. O eixo decorrente aposta na convicção de que a compreensão da sociedade democrática, pautada na convivência com modos de vida diversos e em interações complexas e de tudo o que a modernidade implementou em termos de benefícios, não implica em descartar ou em pressupor excludência com a valorização das tradições.

No terreno teórico, o exercício de evocar tradições de um povo, supõe uma esfera em que a legitimação dos contextos de autoridade e obediência, de discursos e iniciativas estratégicas se constitui e se desenvolve no plano da memória. Assim usada para legitimar decisões e interferir nas instituições, a memória é percebida exteriormente, ou na linguagem dos nossos dias, é “formatada” por meio de lembranças ativadas através de discursos que disputam com outros discursos as atenções ou a primazia de absorção no âmbito da opinião pública. Concebendo dessa maneira, passado, memória e lembrança fazem-se presentes numa espécie de núcleo duro da tradição.

A condição de que os três elementos nem sempre se manifestem articulados, apesar de ontologicamente juntos, produz variações nas possibilidades de evocação, de uso e de interpretação da tradição. As ciências sociais e históricas dedicam partes fundamentais de seus esquemas mais influentes para buscar o conhecimento das potencialidades e da junção de memória e tradição. Frente a outros parâmetros fundadores das ciências sociais, as referências que se assentam em Émile Durkheim oferecem um aparato mais diversificado e desenvolvido a respeito das funções da memória na integração das sociedades modernas.

Página 47

No entanto, nas elaborações de matriz durkheimiana são pouco frequentes os objetos e conclusões sobre as implicações da memória na instância política. Para quem não conhece ou nunca ouviu falar, Durkheim teve grande influência nas formas de sistematização originais da sociologia, no século XIX. Entre os que se preocuparam em trazer o exercício da objetividade para este campo, talvez seja ele o que mais tenha dedicado mais escritos sobre a memória, embora vinculado-a à análise política menos do que outros, a exemplo de Karl Marx e Max Weber, aos quais vamos nos referir logo adiante. O que vem exposto adiante está somente indicado, em estado muito reduzido e esquemático, portanto sujeito a muitos riscos para ser submetido como síntese rigorosa e completa. A função da forma adotada dirige-se exclusivamente às finalidades desta palestra.

Busquemos, de início, um pouco da noção Durkheimiana de consciência coletiva. Esse talvez seja um dos conceitos mais fortes de Durkheim. Nele sobressai um recurso para delimitar o campo de detecção dos elementos de lembrança e dos apelos íntimos dos indivíduos, tomados como unidades integradas à comunidade. Aqui estamos diante de uma lição que normalmente surge na primeira aula dos cursos básicos de Sociologia: as relações entre indivíduo e comunidade ou o modo de existirmos e sermos como somos por vivermos integrados a uma comunidade, as regras, que além de genéricas, são exteriores (anteriores) e coercitivas a nossas vontades como indivíduos

Nesse processo, os indivíduos se enxergam socialmente e compartilham os requisitos estruturadores de identidade coletiva. Além de propiciar segurança, as conformações da vida social adquiridas nessa integração e não as motivações individuais, precedem as possibilidades de interferência de cada um na linha dos acontecimentos, quer se trate de informação, quer se trate de formações sociais mantidas nas bases da solidariedade mecânica ou da solidariedade orgânica, dois conceitos também primários de Durkheim.

Eles demonstram que na constituição dos fatos sociais (das comunidades e das sociedades) as escolhas e os meios de efetiva intervenção das vontades, ou seja, das autonomias individuais, acabam por demais reduzidos. As condições em que se originam as tendências de decisão sobre o futuro, isto é, as condições da política, aparecem de antemão delineadas aos sujeitos que nela se envolvem. É nesse trecho que, em meu entendimento, Durkheim deixou um legado menor do que os outros para vincular as reflexões de memória ao campo da política. Porque, para Durkheim, a vida social se impõe sobre a vontade dos indivíduos, eles são reprodutores da vida social. Em outras palavras, a política se realiza e se resolve em um âmbito restrito de possibilidades predeterminadas pelas instituições e pelos sistemas envolventes, pelos costumes e pelos ritos coletivos e não como o resultado da ação ou criação passível de ocorrência na interação entre indivíduos autônomos.

Não me preocupo aqui de utilizar uma fraseologia primária da sociologia. Nem tento evitar platitudes, visto que tudo de Durkheim até foi mencionado é hiperconhecido. Porém, eu posso até inferir que aquela sua máxima sobre o fato social vai no limite da vida social neutralizar o espaço da política, mesmo nas sociedades complexas ou fundadas em elevadas taxas de solidariedade orgânica. Na afirmação de que o fato social é exterior ao indivíduo, ele se impõe primariamente e de maneira coercitiva às consciências individuais, pressupondo previsibilidade quanto aos comportamentos e às reações diante dos conflitos.

Página 48

Quer dizer, a sociologia Durkheimiana nos deixa um conceito muito importante e de fácil operacionalidade em pesquisas sociais que é o conceito de consciência coletiva, desde que se adote no pacote a decorrência prática da consciência coletiva na ação social e nas formas de convivência. Em tese, portanto, a decorrência teórica da supremacia do aspecto coletivo anula e definha a autonomia do indivíduo. Esse aspecto permanece forte e definidor para se pensar a partir de Durkheim sobre o alcance dos componentes da memória nas configurações sociais.

Vasculhemos agora os legados de Marx e de Weber para os estudos de memória, para registrar a maneira como seus pressupostos sociológicos propiciam meios mais diretos para operacionalizações abstratas alinhadas à interpretação política.

De início, fica visível que em ambos, mesmo que por roteiros metodológicos distintos, essa aproximação decorre de um proeminente antagonismo tipológico entre tradição e modernidade. Em Max Weber a antinomia chega a assertivas irretorquíveis, ao ponto de daí brotar uma derivação exponencial que conduz à teoria da modernização, cujos preceitos marcaram com especial influência as narrativas ocidentais e, ainda hoje, disputam hegemonia nos modelos de pesquisa sociológica. Diferentemente de Weber, no momento forte das elaborações de Marx sobre memória sobressaem alertas para uma relativização importante, que permitirá a estudiosos posteriores a separarão, em essência, de tradicionalismo e conservadorismo.

Marx recorre ao componente da memória em seus mais impactantes apontamentos a respeito do comportamento político conservador, elaborados nas condições das lutas de classes em sua época. Uma máxima do próprio Marx, razoavelmente conhecida e declamada vem aqui a calhar, ainda que o significado buscado em nossa abordagem possa surpreender alguns marxianos desavisados do método marxiano.

“Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob as circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.” (MARX, [1852] 1978 – p. 271)

De imediato, percebe-se a notável centralidade dada por Marx a este componente sediado no campo das subjetividades ou campo dos valores. Afinal, nas versões mais disseminadas do marxismo os conteúdos econômico-sociais detêm a precedência epistemológica na explicação das transformações sociais e históricas, e eles movimentam-se distanciados do campo da cultura. Nesse caso, soaria paradoxal que a tradição, portanto, a memória, venha a ocupar o eixo da análise política desenvolvida em “O 18 Brumário de Luiz Bonaparte”, obra mais destacada de Marx direcionada para a análise política. A tradição e a memória, encerram instâncias longe de ser engendradas ou condicionadas pela racionalidade da moderna sociedade e da moderna economia industrial.

Percebamos esta curiosidade em outro trecho consagrado, também do 18 Brumário:

Página 49

“justamente quando os homens parecem empenhados em revolucionar-se a si às coisas, em criar algo novo, eles conjuram ansiosamente em seu auxílio o espírito do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada.” (MARX, op. cit. – p. 272)

É na sequência desse raciocínio que Marx vai afirmar: “...o passado não se repete, a não ser como farsa ou como tragédia”. Aqui ele está explicando a implantação de uma ditadura através do golpe de estado, que o sobrinho do Napoleão Bonaparte perpetra na França e aproveita-se muito da lembrança do nome do tio pela população francesa, para dizer-se o retorno do imperador que deu grandiosidade à França e ao povo francês alguns anos depois da Revolução de 1789. Nosso interesse nesse instante é realçar o quão fortemente a linguagem do pensamento conservador ancora-se no recurso ao passado, conforme a leitura d’ “O 18 Brumário”.

Por meio desse encaixe no método, a análise da ascensão de Luis Bonaparte torna-se um momento de singular êxito de Marx nas suas explicações sobre o funcionamento do Estado, consideradas as forças políticas em luta numa dada conjuntura. As pretensões revolucionárias de Marx, como é sabido, orientam a sua análise para explicar, acima de outros objetivos, o percurso de afirmação do conservadorismo ou, como muito já foi escrito, para traçar uma radiografia do golpe de Estado.

No tocante a Weber, nos escassos momentos de sua obra que impelem a tratar de memória, colhemos níveis de articulação comparativamente mais proveitosa ou profícua deste campo para a compreensão dos sistemas de poder na sociedade moderna, ou com a política e respectivos ordenamentos institucionais. Em Weber, encontramos resultante ainda mais definida do esforço metodológico de operar com os elementos de subjetividade que se manifestam numa realidade tomada por objeto de pesquisa. Selecionei três momentos da formulação Weberiana sobre a tradição para explorar essa suposição.

Primeiro, em “Categorias fundamentais da gestão econômica (Economia e Sociedade (Livro 1 – Parte 2) - WEBER, 1999), ele distingue diretamente a base da realização de serviços em comunidades ou em sociedades comunais da base de cálculo que ocorre quando a produção busca o nível ótimo de rendimento calculável no âmbito do trabalho. Nessa situação, calcula-se o necessário para se atingir o máximo de adaptação ao trabalho, para se aplicar o máximo de habilidade no trabalho e procura-se também nos indivíduos o máximo de inclinação ao trabalho. Segundo Weber, nessas três inclinações, atuam circunstâncias em que não é o calculo sobre o máximo de abastecimento que dirige a realização dos serviços, embora isso esteja em perspectiva, mas é o sentimento imediato de solidariedade o impulso dirigente da realização dos serviços.

A solidariedade, aponta Weber, encontra fundamentos tradicionais e afetivos

Página 50

“...com base em atitudes extra economicamente orientadas que estão presentes: 1. na família; 2. no exército; 3. na comunidade em geral”. Ou seja, aproveitando um pouco de Durkheim, “...nós pertencemos a instituições maiores que nós e (...) nem sempre estamos vinculadas a elas pelo fator econômico”.

Weber anota nos três casos uma oposição à gestão econômica do mundo circundante, ilustrados em situações típicas de gestões patrimoniais familiares. Ele se mostra, por excelência, o teórico da sociologia responsável pelos conceitos que facilitar a abordagem das situações de tradicionalismo ou de sociedades tradicionais. O tipo mais expressivo de sociedade tradicional na sua identificação é a sociedade em que vige o patrimonialismo – que ele trata por “gestões patrimoniais familiares”. Esse termo volta e meia aparece no debate brasileiro de nossa época para explicar diversas mazelas da política, em especial a corrupção. Quer dizer, sociedade permeada por relações e costumes patrimoniais significa sociedade tendente a tolerar padrões considerados de corrupção (dela própria) e pouco embasada em instituições da modernidade política.

As comunidades que organizam seus serviços nessas bases comunais ou de solidariedade, na medida em que avançam em seus processos de modernização ou nela se fortalecem as organizações voltadas ao consumo de massas, não podem prescindir de argumentos especificamente racionais referentes a fins. Ocorre que, ao modernizarem-se, elas dificilmente permanecem fundadas no contraste ou em luta contra as “ordens” do mundo. A expressão racionalidade referente a um fim, implica a adoção de valores, sendo decisiva no modelo weberiano. Essas sociedades passam a absorver tendências de interações entre seus membros, que podem fazê-los prescindir de argumentos referentes a valores mesmo nas esferas das atitudes extraeconomicamente orientadas, que de alguma maneira, subsistem. Nesse sentido, podemos visualizar um choque no processo de modernização que conduz, eu creio, a exacerbar as tensões com as ordens até então estruturadoras da realidade.

No limite, os indivíduos em seu interior passam a admitir desestruturações de vários matizes, sendo a primeira delas a desvalorização ou o alto custo de se manter relações comunitárias típicas em espaços públicos. Espaço público é lugar de relação moderna, societária, de relações secundárias, onde os membros se relacionam com estranhos sem sentir medo ou, pelo menos, que os estranhamentos não se convertam em medo. Nesse instante, Weber está construindo a oposição entre comunidade e sociedade.

Outro momento importante para se perceber a designação de Weber ao movimento da tradição à modernidade está na sua explicitação da Dissolução da comunidade doméstica (WEBER, op. cit. – p. 152),“decorrente das modificações de sua posição funcional e decrescente calculabilidade nas atitudes de seus membros”. Historicamente, o aumento da divisão das comunidades domésticas (herança, casamento, etc.), entre outros processos, produz aquisições individualizadas, diminui o tamanho das famílias nucleares.

Para Weber, “o fundamental é que os indivíduos cada vez menos vão se prendendo aos motivos que os submetiam a uma grande comunidade doméstica”. A casa e o clã, em consequência, vão sendo deslocados da função de fornecer a segurança requerida e assim passam, progressivamente, a serem vistos pelos membros do próprio clã e pelos membros externos a ele. A capacidade de fornecer segurança vê-se transferida rapidamente para outra esfera, a esfera da associação institucionalizada do poder político, isso é, o Estado centralizado. Aqui se evidencia a origem arquetípica do Estado moderno, significando o cume no processo da modernização, que é reger a convivência entre os interesses existentes numa sociedade complexa, que por serem  diversos e dinâmicos, requerem a crença de que este sistema de poder seja único e efetivamente catalizador das energias renunciadas por interesse particular. Do ponto de vista político, essa tem sido a base de definição mais forte da modernidade, ao lado da autonomia do indivíduo.

Página 51

A essa grande alteração de viés modernizador vinculam-se os roteiros de outras transformações. Weber frisa, de início, que “a casa e a profissão distanciam-se localmente e uma comunidade doméstica deixa de ser o lugar da produção comum, passando gradativamente a ser o local do consumo comum. Mais ainda, acentua ele, “O indivíduo recebe crescentemente toda a sua formação para a vida fora da casa e por meios que não lhes são proporcionados pela casa, mas por ‘empreendimentos’ de todas espécies: escola, livraria, teatro, sala de concerto, clubes, reuniões, etc. (WEBER, op, cit. – p. 176)

No contexto societário, os parâmetros que produziam a vida comunitária em si, similares às condições para o que antes Durkheim chamou de solidariedade mecânica, ou que indicava fidelidade a laços tradicionais de tipo sanguíneos, senhoriais, religiosos, etc., cedem lugar à importância da convivência e produção em espaços aos quais o indivíduo adere por sua vontade livre – os espaços públicos.

A formulação weberiana de maior rigidez que a dos dois textos anteriores para apreender os conteúdos da tradição na interpretação das mudanças políticas apresenta duas modalidades ideais típicas da dominação, cuja legitimidade derivam de pontos tradicionais, a dominação patriarcal e dominação patrimonial. Weber identifica as estruturas patriarcais no extremo oposto da dominação burocrática moderna, tomando esta última como fruto do desenvolvimento da racionalidade nas formas de organizar a administração do poder, a ocupação do espaço e os processos produtivos – a indústria, a vida urbana e tudo que ela significa.

 Na vida moderna, a obediência é tratada por normas abstratas, pelas finalidades impessoais e objetivas das condutas. Nas formações tradicionais (com evidências mais nítidas na forma patriarcal) vigora a autoridade pessoal do chefe da comunidade doméstica. A tradição é seu fundamento sagrado. Ao que interessa a essa exposição, podemos nos contentar em reter a dualidade entre os substratos de um e de outro tipo, o tradicional e o moderno, que veio a se colocar no centro das explicações da mudança social na forma da teoria da modernização: tradicional e moderno ou tradicional versus moderno.

Nesta antinomia, a lógica explicativa para um tipo acaba se complementando com o esclarecimento do que seja oposto aos atributos qualificadores do outro tipo. Tradicional versus moderno fundam um antagonismo útil para operacionalizar a abordagem de processos empíricos diversos, cujos recortes dependerão de enquadramentos cronológicos com pontos de partida (históricos, designados pelo pesquisador ou pela autoridade dirigente) e pontos de chegada (ideais), preestabelecidos ou desejados, na condição de modelo. A racionalização e a secularização, estratificadas em níveis de realização histórica e matizadas em tendência e ritmos, vão fornecer o léxico para as narrativas substantivas a respeito dos processos sociais desenrolados entre os dois polos.

Página 52

Enfim, desde Weber esse modelo fez-se frequente no discurso das ciências sociais, habitando construções alinhadas à análise da modernização, e mesmo correntes teóricas adversárias acabam absorvendo partes dos modos de pensar os processos de mudança por meio dos instrumentos da teoria da modernização. A implicação prática nas formas de convivência entre realidades sociais modernas e tradicionais acaba sendo a versão naturalizada de que determinada comunidade perca a alternativa de manutenção de algumas de suas estruturas tradicionais.

Sublinhamos assim o enorme peso do axioma weberiano (tremendamente sintetizado nestas três passagens) na irradiação de proposições doutrinárias de evidentes conotações ocidentais. Sua base acabou consagrada na fórmula de que a modernização compreende um roteiro ocidental para as mudanças sociais. Acentue-se que a própria modernidade não escapa de ser uma categoria ocidental. Como modelo, os processos previstos ou desejados para a modernização concretizam-se envoltos num repertório de ideias significativas de progresso, evolução, avanço tecnológico, urbanização, individuação de oportunidades e realizações, estruturação de mercados, redução da democracia aos preceitos liberais quando não há possibilidade de escolher governos em eleições livres, centralização das instituições de controle, emancipação feminina, etc. Na contrapartida, os chamamentos à tradição como “a inviolabilidade do que foi assim desde sempre” (ou o “ontem eterno”) soam opostos a modernizar, a evoluir, a progredir, a compartilhar e usufruir dos avanços civilizatórios.

As ciências sociais traduzem a expansão ocidental em geral formulando narrativas coadunadas à ideia da modernização, esteja ela referida a um padrão civilizatório hegemônico ou meramente a um quadro de ideias e valores. Queremos sublinhar aqui que um modelo político determinado compartilha esta tradução como se a ela estivesse naturalmente encaixado, fosse uma parte do conjunto. Não obstante, as trajetórias das principais disciplinas da sociedade volta e meia registram distinções entre conservadorismo e tradicionalismo, com alertas para se evitar as anexações automáticas dos dois termos quando se trata de apontar o contraste entre formas modernas e pré-modernas. Em especial para abordarmos mudanças, o cuidado deve ser redobrado contra os erros fáceis contidos nas generalizações (e na absolutização) das diferenças entre as linhas que seguem os processos sociais.

A partir desse ponto recorro, também rapidamente, a três outros importantes momentos conceituais posteriores aos pioneiros da sociologia, que também registraram incursões criativas às categorias de memória e de tradição para explicar processos políticos. Referimo-nos às teorias de Huntington, Giddens e Mannheim.

Samuel Huntington, entre os três o que mais utiliza-se de Weber, de início resume os desafios da modernização para as comunidades políticas tradicionais em duas categorias amplas, diferenciadas a partir da essência dos atores sociais que nelas ocupam funções dirigentes. Numa dessas categorias, as coisas seguem o rumo indicado pelo governante, que dispõe da lealdade pessoal de seus servidores, e as demais forças atuam por sua graça e permissão. Na outra, as decisões emanam do governante e de seus barões, isto é, aqueles que mantêm posições de mando não por favor do chefe “e sim pela antiguidade do sangue” (HUNTINGTON, 1975). A “extensão em que o poder está concentrado ou disperso” de acordo com Huntington diferencia os dois casos.

Página 53

No modelo desse pesquisador, assaz influente nos anos de 1960 e 1970, o recurso analítico da tradição não aprecia o fator da memória do povo que vive a mudança. Por esse motivo, cabe pensar que a sua visão da mudança social segue à risca a sentença de extração weberiana, em que a tradição (e, nesse caso, também a memória) ou será inevitavelmente dissolvida com o avanço da racionalização modernizante ou se constituirá em obstáculo a ser removido pelo incontrolável avanço das forças modernas.

No modelo desse pesquisador, assaz influente nos anos 60 e 70 do século passado, o recurso analítico à tradição não aprecia o fator da memória do povo que vive a mudança. Por esse motivo, cabe pensar que sua visão da mudança social segue à risca a sentença weberiana em que a tradição, e nesse caso também a memória, ou será inevitavelmente dissolvida pela racionalização modernizante, ou se constituirá em obstáculo a ser removido pelo incontrolável avanço das forças modernas.

A formulação do sociólogo inglês Anthony Giddens, já nos anos 90, junta-se a uma vertente de maior ênfase sociológica, vis-a-vis a primazia do institucionalismo da análise de Huntington. Sua preocupação fixa-se em caracterizar a modernidade de uma maneira em que as contraposições com as essências da tradição não se tornem necessidade ou obsessão para a afirmação ontológica dos processos modernos. Primeiramente, nas atividades da vida social moderna as pessoas mantêm uma variedade de contatos que são relativamente efêmeros. Conviver com estranhos não as leva a considerá-los suspeitos ou fontes de ameaças.

Essa conceituação do Giddens para caracterizar a vida moderna é a mesma que, no ano de 1903, Simmel, outro clássico da sociologia, utilizou para definir a vida nas cidades. As interações nos ambientes urbanos abrigam pessoas diferentes, desconhecidas. Já nas formas sociais pré-modernas, quando estranhos adentram em comunidades das quais não participam das rotinas, eles são rapidamente notados. Quando delas participam resulta em alterá-las, daí a evidência que adquirem. Ao chamarem atenção para si, eles despertam desconfiança num contexto social em que a confiança é algo dado pela própria forma de vida. Nas comunidades tradicionais, o traço local assegura o tom na organização social e, consequentemente, da confiança.

O estranhamento em relação as pessoas diferentes, que se faz sentir na vida urbana ou moderna, também existe na análise de Giddens, porém, ele não resulta em intenção hostil àquelas pessoas. Identificar o diferente não necessariamente leva a hostilizá-lo. Esse estranhamento manifesta-se polido, diz o autor, o que leva a tomar como sinônimos as expressões “fulano é mais polido” e “fulano é mais urbano”.

Página 54

Nas comunidades locais o ritmo de vida transcorre em “ritmos relativamente baixos de distanciamento, em que os contextos de confiança, de risco e perigo, são fixos às circunstâncias de lugar” (GIDDENS, 1991), implicando em marcadores imediatos das pessoas ou das situações diferentes. Nesses últimos casos, para os indivíduos se sentirem seguros, os “marcadores de confiança” ordenam-se em torno do sistema de parentesco da comunidade local, das cosmologias religiosas e da própria tradição. Família, parentesco, localismo, religião, tudo isso mistura-se com tradição, no caldo de cultura das experiências sociais que não entraram no ritmo da modernização.

Retomando o foco original da reflexão, interessa-nos principalmente a tarefa codificadora e decodificadora dos parâmetros de integração desempenhada pela tradição. Fundamentalmente, ela inspira segurança aos indivíduos; por seu intermédio as pessoas buscam apoio em formas consolidadas de relacionamentos sociais para se sentirem um pouco mais seguras. Aqui se trata do sentimento experimentado nas relações de família (ressalvas a notáveis mudanças na família moderna), nas formas de vida pacata em cidades pequenas, etc. Nesta função, a tradição difere da religião ao não se referir “a nenhum corpo particular de crenças e práticas, mas à maneira pelas quais essas crenças e práticas são organizadas, especialmente em relação ao tempo” (GIDDENS, op. cit. - p. 107). Esta distinção é importante para localizarmos o significado proposto por Giddens aos apelos de retorno ao passado. Para ele, “o tempo reversível é central para a temporalidade das crenças e atividades tradicionais”. Sendo assim, o passado representa um meio de organizar o futuro e a orientação para o passado, neste caso, não difere a tradição da modernidade.

Giddens cria uma engenhosa imagem para a sua elaboração: “o tempo passado é incorporado às práticas presentes, de forma que o horizonte do futuro se curva para trás para se cruzar com o que passou antes” (GIDDENS, idem – p. 139). Com ela começamos a atingir o objetivo proposto no início do texto.

Certamente que o pensamento de Giddens contém níveis de sofisticação a mais do que o que aqui está apresentado. Porém, essas breves indicações permitem registrar que para ele a tradição não necessariamente implica em posturas regressivas ou em conservadorismo político.

Em Além da esquerda e da direita (GIDDENS, 1997), volume explicitamente voltado à compreensão das mudanças políticas com eixo na transformação das ideologias e dos valores ao final do século XX, Giddens afirma com precisão que a tradição passa a equivaler ao fundamentalismo [versão extrema de conservadorismo], quando ela “é pensada de maneira tradicional”.

Algumas décadas antes de Giddens, e também privilegiando a esfera sociológica à institucional, Karl Mannheim, sociólogo húngaro, sublinhou a diferença entre tradicionalismo e conservadorismo. Primordialmente, os conteúdos dos dois temos...

... dão-se pelo fato de que o conservadorismo é função de uma situação histórica e sociológica particular. [Noutro nível], o tradicionalismo é uma atitude psicológica geral que se expressa em diferentes indivíduos com uma tendência a se apegarem ao passado e como temor às inovações (MANNHEIM, [1959] 1981).

Página 55

Reconhecida essa diferença, vem a implicação de que “o tradicionalismo se consubstancia em uma inclinação oculta que cada indivíduo inconscientemente abriga dentro de si mesmo”, ao passo que o conservadorismo é consciente e reflexivo desde o princípio”.

Quer dizer, o conservadorismo como orientação do pensamento que visa efeitos políticos surge como um contra movimento, uma oposição consciente ao movimento progressista (MANNHEIM, op. cit. – p. 107). Cabe mesmo dizer que a possibilidade lógica dessa confrontação mostra o conservadorismo compartilhando o mesmo universo de ideias em que brotam o pensamento modernizador e progressista. Trata-se de estilos de pensamento que atuam na mesma lógica.

Já com o tradicionalismo não ocorre o combate entre ideias simetricamente opostas. Além disso, as manifestações tradicionais nem sempre revertem em discursos contrários a iniciativas de mudança e inovação, o que sempre ocorre com as manifestações conservadoras. Por último, a oposição dos motivos conservadores ao caráter dinâmico do mundo moderno virá, no limite, a formular projetos de poder, enquanto dificilmente ocorrerá o mesmo com a oposição advinda do tradicionalismo. Isto é, o tradicionalismo não se converge, necessariamente, ao movimento político, o conservadorismo necessariamente se converge em tendência de ação política.

Contudo, não se deve omitir que no decorrer da modernização essas diferenças não vão anular os potenciais e amplos meios de encontro e de identificação do tradicionalismo com o conservadorismo, e nem que este segundo venha a se alimentar dos conteúdos do primeiro. Os dois refletem e organizam quadros de valores e percepções que podem coincidir em muitos aspectos, principalmente, sublinha Mannheim, “quando a mudança ocorre através do conflito de classes, esse é o ambiente do conservadorismo moderno” (MANNHEIM – p. 109)

Nesse ponto, a argumentação de Mannheim valida com nitidez a interpretação política de Marx n’O 18 Brumário. Se se concorda com a facticidade de conjunturas políticas conflitivas não redutíveis as lutas de classe, ou que nem mesmo as reflitam, haverá também de se concordar que a proclamação de ícones e mensagens fundadas no passado e em tradições possa influenciar os acontecimentos sem necessariamente resultar em obstrução funcional das mudanças.

Somente se recorrermos a saltos epistemológicos ou metodológicos triplos carpados, que a tudo se permitem para encaixar os fenômenos em “totalidades” fantasiosas (automáticas, portanto fáceis e preguiçosas), poderemos transferir a determinação de conflitos sobejamente definidos em motivações religiosas, étnico-raciais ou, numa palavra, culturais, para a lógica das lutas de classes. Os exemplos podem ser muitos e recolhidos em variadas realidades de mudanças contemporâneas típicas de processos globalizados nesse início de século XXI, mas o trabalho de alinhá-los pode desviar em demasia o objetivo aqui buscado.

E da mesma maneira soa fantasioso advogar equivalência conceitual e política entre memórias, tradições e conservadorismo. Ao contrário, parece mais razoável enxergar memória e tradições nas apostas modernas, entendendo que elas agregam enriquecem e fortalecem os sentidos da própria modernidade.

Ademais a isso, empiricamente, as vozes e vontades políticas empenhadas na conexão com os fluxos do passado, não o fazem com exclusividade em seus programas de ação. Em geral, elas o tomam como um tópico ético-político importante para ampliar outras dimensões importantes à democracia.

Página 56

Mannheim, como Huntington, destaca que a intensificação da diferenciação social dinamiza as mudanças rumo à modernização. No passo seguinte, quando dissertam sobre a adequação política destas mudanças, eles se distanciam notoriamente. Para Mannheim, tais mudanças podem coexistir funcionalmente com as tradições, com a memória e a elas até podem recorrer, em favor da estabilidade dos processos. Essa possibilidade nos permite deduzir que a defesa das tradições, há algum tempo incorporada na expressão reinvenção das tradições, ganha condições de erigir-se em contextos de afirmação moderna. Por outro lado, Huntington preocupa-se precipuamente com a legitimidade das mudanças, entre outros fatores, por estas negarem a tradição. Além disso, ele prescinde de referências ao papel da memória, mesmo quando seus relatos empíricos enfocam as mudanças em sociedades tribais.

III. Memória e Democracia - dois casos

Nesta segunda parte trago dois casos marcantes nos trabalhos da CVMJ-GO, que podem ser destacados como singulares no contexto das comissões da verdade no país. Por questão de espaço e de tempo, vamos nos referir resumidamente a eles, para ilustrar a relevância e a atualidade da perspectiva da política de memória, vista na parte inicial desta exposição. Nossa intenção principal é reforçar a noção de fragilidade de uma política de memória em Goiânia e, de resto, na política regional de Goiás.

Primeiro deles, o relato sobre a destruição do Monumento ao Trabalhador em Goiânia. O Monumento ao Trabalhador foi inaugurado no ano de 1959 numa praça do centro da cidade. Goiânia foi criada em 1933 e se expandiu em torno de um centro urbano planejado. Ao final da Avenida Goiás, principal avenida deste traçado, ficava a Estação Ferroviária após espaço amplo com uma praça. Na década de 1950, a cidade se estruturava e sua população aproximava-se de 150 mil habitantes. O Monumento ao Trabalhador foi construído no centro desta praça, concebido em duas estruturas de concreto, de frente uma da outra e cada uma em formato semicircular. Cada estrutura reunia oito colunas de sete metros de altura, alinhadas para sustentar um mural de aproximadamente 13 metros de extensão por um e meio de altura.

A construção do Monumento ao Trabalhador atendeu reivindicação de sindicalistas da cidade ao governador e ao prefeito para a que na cidade houvesse um local de reconhecimento da importância dos trabalhadores para a sociedade moderna, o progresso tecnológico e às lutas por justiça social.

As figuras do mural foram montadas na técnica de mosaico por Clovis Graciano, que utilizou pastilhas coloridas de acrílico, de tamanhos inferiores a cinco centímetros, para dar formato às imagens. Numa das figuras desenhadas há seis homens representando os trabalhadores enforcados em Chicago, em 1886, após serem condenados por liderarem manifestações por melhores salários e condições de trabalho, iniciadas em 1º de maio e que deram origem a definição deste como Dia do Trabalhador, em vários países, incluindo o Brasil.

Esse Monumento se transformou em cartão-postal da cidade nos anos seguintes à sua inauguração. Em 1969, um grupo paramilitar, de atuação clandestina em apoio à ditadura militar de 1964, denominado Comando de Caça aos Comunistas, promove violento ataque ao Monumento, passando piche fervido nos dois murais. As autoridades da época (em especial a prefeitura de Goiânia) não providenciaram a limpeza do piche e nem a recuperação das pastilhas prejudicadas, deixando o conjunto da obra se deteriorar nos anos seguintes, até a completa perda das pastilhas e da obra de arte.

As duas estruturas de concreto permaneceram no local até a passagem do ano de 1985 para 1986, quando foram derrubadas. A pesquisa que realizamos não conseguiu precisar a data em que elas foram ao chão, nem a autoria da ordem administrativa para derrubá-las, se o prefeito ou governador. Somente captamos a versão de que à época havia um projeto de estender a Avenida Goiás passando em linha reta por baixo da Estação Ferroviária, o que exigiria extirpar o entrave visto nas antigas colunas. O projeto mostrou-se inviável em sua pretensão original e a extensão da avenida seguiu por desvio pelo lado direito da Estação.

Página 57

Neste intervalo, desde o ataque do CCC, a permanência do que sobrou do Monumento soava como testemunha silenciosa da agressão inicial e do descaso contra a cultura da cidade. Finalmente, sobreveio a insensatez tecnocrática para justificar a retirada das colunas.

Nos mandatos dos prefeitos de Goiânia que se seguiram, com revezamento de políticos do PMDB e do PT, por três vezes a reconstrução do Monumento ao Trabalhador foi demandada em nível institucional: a primeira, vinda da Câmara de Vereadores, quando da aprovação da Lei Orgânica do Município em 1990; a segunda de iniciativa da Prefeitura, em 2003, que constituiu Grupo de Trabalho para avaliar a viabilidade de reconstruir o Monumento; e a terceira, quando em 2014 membros da CVMJ-GO deflagram movimento junto ao meio artístico e acadêmico, com amplo apoio da imprensa demandando a reconstrução. Em nenhum desses momentos as administrações municipais responderam ou se posicionaram a respeito as reivindicações.

A iniciativa mais recente a respeito deu-se em audiência com o prefeito Iris Rezende, em junho de 2017, na esteira do movimento iniciado em 2014. À ocasião foi apresentado a ele um dossiê de mais de 300 páginas, contendo artigos, relatos de pesquisa, reportagens, imagens e a documentação levantada. Dentre os documentos consta uma autorização de punho do então governador Marconi Perillo de verba de R$ 1.118.000,00 destinadas à obra de reconstrução do Monumento, porém com liberação condicionada à autorização do prefeito de Goiânia, responsável último pela cessão do lugar. Essa autorização data de abril de 2016, quando o prefeito era Paulo Garcia, do PT. Tentamos inúmeras vezes marcar audiência com ele para tratar da reconstrução do Monumento ao Trabalhador, a partir do compromisso do governador, sem conseguirmos êxito. Nem ele e nem Iris Rezende autorizaram a reconstrução.

O segundo assunto que trazemos para refletir sobre a fragilidade da política de memória no Brasil e particularizada na realidade goiana, aborda a ausência de esclarecimento sobre o destino do desaparecido político Durvalino Porfírio de Souza, filho do líder do movimento pela terra, acontecido no médio norte de Goiás (Trombas e Formoso) na década de 1950 e ex-deputado estadual José Porfírio de Souza, também ele desaparecido político.

Por lei de 1995 (BRASIL, 1995), desaparecido político é o nome dado à condição do opositor político ao regime de 1964 que foi preso ou estava sob responsabilidade das autoridades do Estado e não mais retorna à família e à sociedade. Não há declaração oficial a respeito da sua morte, sequer do destino dado ao seu corpo. Com essa legislação o Estado assume a responsabilidade pelo desaparecimento de opositores políticos ao regime de 1964.

Durvalino Porfírio de Souza fora internado pela família, pela segunda vez, no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, de Goiânia, no ano de 1973, com 26 anos de idade. Poucas semanas após a internação a família recebe a notícia de que ele havia sumido do hospital, provavelmente fugido. Desde então não se teve mais notícias de seu paradeiro.

Página 58

Durvalino perdera as faculdades mentais desde que saiu da prisão, em 1964. Ele estava prestes a completar 18 anos quando o Exército o prendeu no povoado de Trombas, município de Formoso. No cárcere sofreu cruéis espancamentos e outros tipos de tortura para que revelasse o local de esconderijo de José Porfírio e, também, o local em que se encontravam as armas com que o pai e outros camponeses pretendiam resistir ao governo dos militares. As sequelas foram agudas e visíveis, principalmente os traumas que levaram à perda da memória e da sanidade mental. Durvalino teve posteriormente uma vida atormentada: não reconhecia as pessoas, destruía os objetos da casa e tornara-se agressivo com os familiares.

Liderada pela irmã mais velha (Maria Delícia), a família de Durvalino não tinha recursos para custear o tratamento de Durvalino, vivendo sucessivas carências desde o golpe de 1964, que já a havia privado do pai, José Porfírio. O ex-deputado, depois de passar anos se escondendo, foi preso em 1972 e cumpria pena em dependências do Exército em Brasília. Após a primeira internação, Durvalino mostrou comportamento mais ameno durante algum tempo, relatou Maria Delícia à CVMJ-GO, mas, em seguida, ele retomava as rotinas de angústia e desequilíbrios que desestabilizavam a todos com quem convivia e dele cuidavam. A irmã conta que tinham “de amarrá-lo por dias seguidos, até que se acalmasse”.

Somente no ano de 2015, o senhor Arão, irmão caçula do José Porfírio e tio de Durvalino apresenta-se à CMVJ-GO comunicando que um homem em Ourilândia do Norte, no Pará, chamado Mineiro e com idade presumida à que teria Durvalino, se vivo estivesse, dizia ser Durvalino e que seu pai havia sido deputado em Goiás. Este homem, segundo Arão, não conseguia informar mais aos moradores do povoado porque não tinha lembranças de sua vida anterior. Só vagamente ele emitia estas informações que, segundo dizia, recebera de “...dois amigos do pai que o ajudaram a fugir do hospital de Goiânia, para depois viverem escondidos na floresta”, até aproximadamente o ano de 1986, quando ele se mudou para o distrito de Campinho, a 112 km de Ourilândia.

Relatório do “Grupo de Trabalho da CVMJ-GO - Mortos e Desaparecidos Políticos” (GOIÁS, 2015) informa que seus integrantes se encaminharam a Ourilândia do Norte, em agosto/2014 e abril/2015, para contatar Mineiro e investigar a sua alegada identidade como Durvalino Porfírio. Outras viagens ainda foram realizadas a municípios de Goiás, Tocantins e Pará, visando conferir os depoimentos colhidos em Ourilândia e, principalmente, promover acareações das versões de Mineiro com familiares e pessoas que no passado conviveram com Durvalino. Em dezembro de 2014, o GT promoveu a ida de Mineiro para Trombas e Formoso, colocando durante três dias em convivência com pessoas, lugares, e referências importantes na trajetória de Durvalino quando criança, adolescente e adulto, antes e depois das prisões que lhe causaram as sequelas mentais e a perda de memória.

O trabalho do GT ainda envolveu pesquisas na imprensa nacional e local dos anos 1950 a 1970, busca de documentos oficiais no Arquivo Nacional (RJ) e Ministério do Exército (DF) e realização de Exame Grafotécnico (feito com base em assinatura de Durvalino em depoimento ao Centro de Diligências Especiais, do Exército Brasileiro, de 1965) e Exame Antropológico (identificação através do envelhecimento de imagem, utilizando-se fotografia de Durvalino, a única encontrada, de quando ele estava com aproximadamente sete anos) por membros da Polícia Técnico-Científica da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Goiás e, por fim, dois testes de consanguinidade (DNA) entre Mineiro e os três irmãos vivos de Durvalino (Maria Delícia e Orlando, residentes na zona rural de São Valério do Tocantins e Jeová, em Aparecida de Goiânia, município da Região Metropolitana de Goiânia).

Página 59

Nas pesquisas, pouco foi localizado no sentido de confirmar ou de rejeitar a hipótese de Mineiro ser Durvalino. Quanto às entrevistas, conversas e reuniões para confrontação da versão de Mineiro, sobressaiu um vasto campo de interrogações, reticências, ambiguidades, versões conflitantes entre depoentes e mesmo dos mesmos depoentes em momentos diferentes, que conduziam ora a avaliações impressionistas dos membros da CVMJ-GO ora a dúvidas e inseguranças para concluírem de maneira taxativa a respeito do caso investigado. No plano das investigações técnico-científicas, os resultados foram inconclusivos para os exames grafotécnicos e antropológico, enquanto os dois testes de DNA coincidiram nos resultados de que Mineiro não mantinha afinidade consanguínea com os filhos de José Porfírio.

Por questões de tempo e espaço não é possível detalhar neste local os procedimentos e informações referidos nos parágrafos acima. Sendo assim, igualmente ao que se procedeu para as referências ao Monumento ao Trabalhador, também deixamos indicadas para os interessados as fontes a respeito do caso Mineiro-Durvalino. Cabe-nos, por último, contextualizar sobre o caráter inconclusivo do Relatório elaborado baseado nas diligências, pesquisas e sistematização-análise do GT-Mortos e Desaparecidos Políticos centradas na figura de Mineiro e sua versão de ser ele o desparecido político do início dos anos 1970.

O GT encerra o Relatório com destaque a dez sínteses interpretativas a que chegou (p. 51 a 54), nas quais constam em ordem analítica as bases das controvérsias, ambiguidades e dúvidas que impediram os seus membros de adotar uma das duas linhas de verdade com eles se depararam.

  1. A linha de rejeição da hipótese de Mineiro ser Durvalino, amparada em dois robustos quadros de evidências e informações: a) os resultados dos dois exames de DNA; b) e a ausência de confirmação da hipótese por parte dos familiares mais próximos de Durvalino, os três irmãos que com ele conviveram durante a infância, a adolescência e a fase adulta, com demência mental;
  2. A linha de confirmação da hipótese de Mineiro ser Durvalino, amparada em dois (também) robustos quadros de informações e comportamentos humanos: a) fantástica riqueza e precisão de relatos sobre a intimidade e as rotinas da casa de Durvalino ao longo da década de 1950, adentrando a de 1960, feitos após transcorridos mais de 50 anos por alguém que se afirma destituído de memória, e que apenas de maneira fragmentária pronuncia-se a respeito da vida de Durvalino e sua família; b) a ausência de negativa peremptória da hipótese por parte dos três irmãos de Durvalino e outros familiares próximos, às vezes entregues a respostas marcadas por reticências e narrações excludentes, conforme as circunstâncias da abordagem e dos níveis de (ir)refutabilidade presentes nas narrações de Mineiro.

Impedido de concluir diante do impasse resultante dessas duas linhas, o GT conclui seu relatório demandando “da sociedade goiana e brasileira”, através das autoridades e instituições “comprometidas com as bandeiras dos direitos humanos e da democracia”, a continuidade e o aprofundamento das investigações sobre o caso de Mineiro-Durvalino. Nestes termos o documento canaliza para o âmbito das seguintes instituições, a responsabilidade de continuação dos esforços pela busca de resposta definitiva:

Página 60
  • o GOVERNO DE GOIÁS, em cujo âmbito foi criada a Comissão Estadual da Memória Verdade e Justiça – Deputado José Porfírio;
  • a COMISSÃO DA ANISTIA E DIREITOS HUMANOS, do Ministério da Justiça;
  • a COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS E MINORIAS da Câmara dos Deputados;
  • o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL; e
  • a SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS da Presidência da República;

A pretensão de início, era concluir esta comunicação com o exercício intelectual e político propor elementos para avaliação da Comissão da Verdade em Goiás (CMVJ-GO). Infelizmente não houve condições de tempo para sistematizar os elementos relevantes para esta avaliação, além de que a opção pela abordagem da conceituação sociológica e pelo relato dos dois casos apresentados ocuparam o espaço requerido para a sua realização, no nível de responsabilidade compatível com os objetos que a compõem como política pública. Esta apreciação fica para outra oportunidade e como sugestão de empreendimento a cargo de outros melhores situados no tema.

Muito obrigado!


Referências

ARAÚJO, Maria Paula; FICO, Carlos; GRIN, Mônica (Orgs.). Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteio, 2012.

BORGES, Pedro Célio Alves; DELA CORTE, Marcantonio. Destruição do Monumento ao Trabalhador, em Goiânia: um caso de história silenciada e supressão de memória política. In: XII CONGRESSO LUSO-AFRO BRASILEIRO. LISBOA; ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS EM LÍNGUA PORTUGUESA, 2015 Anais... – GT-52a.

BORGES. Pedro Célio A. et. al.A destruição do Monumento ao Trabalhador em Goiânia (Ações para reparar um crime de supressão de memória). In: 4º SEMINÁRIO INTERNACIONAL O MUNDO DOS TRABALHADORES E SEUS ARQUIVOS – MEMÓRIA, VERDADE, JUSTIÇA E REPARAÇÃO. Anais... São Paulo: Arquivo Nacional / CUT, 2016.

BORGES, Pedro Célio A. Uma fantástica cilada da memória. Ciências sociais e Democracia – memória, desigualdades e políticas . Goiânia: FCS-UFG,  2016 – p.

______. Mudanças urbanas e fragilidades da política de memória (A destruição do Monumento ao Trabalhador em Goiânia). Revista Sociedade & Estado - Volume 32, Número 2 – Brasília: Depto. Sociologia, Maio/Agosto 2017 – p. 345 a 370.

BOSI, Ecleia. Memória de velhos. São Paulo: Edusp / T. A. Queiroz, 1981.

Página 61

BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça transicional e a política da memória: uma visão global. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, n. 1. Brasília: Ministério da Justiça, 2009.

BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: SDH/PR, 2010.

BRASIL. Lei nº 9.140. Brasília: Câmara dos Deputados, 1995 (4 de dez).

BRASIL. Direito à Memória e à Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos – Brasília, Secretaria Especial de dos Direitos Humanos, 2007.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Ed. Unesp, 1991.

GIDDENS, Anthony. Além da esquerda e da direita. São Paulo: Unesp,1997.

GOIÁS . Relatório do GT Mortos e Desaparecidos Políticos. Goiânia: CVNJ-GO, 2015.

HAYNER, Priscilla B. Unspeakble truths: facing the challenges of truth commissions. Routledge, 2002.

HUNTINGTON, Samuel P. A ordem política nas sociedades em mudança. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária / São Paulo: Ed. Edusp, 1975.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismo, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto / Museu de Arte do Rio, 2014.

MANNHEIM, Karl. O pensamento conservador. [Essays on sociologya and social psychology]. In: MARTINS, José de Souza. Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, [1959]1981.

MARX, Karl. O dezoito brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Ed. Abril, 1980. (Coleção Os Pensadores).

OLIVEIRA, Marcelo A.; MEYER, Emílio P. N. Comissão Nacional da Verdade e sigilo: direito à memória e à verdade?.  REID - Revista Internacional Direito e Cidadania, v. 1, p. 1, 2012.

POLLAK, Michael. Memória. Esquecimento. Silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, Rio de Janeiro: CPDoc, 1989.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

WEBER, Max. Economia e Sociedade. v. 1. Brasília: Editora UnB, 1999.