PDCC - Módulo II
 
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02. Patrimônio cultural: conceitos, usos e conflitos

Cultura, memória e identidade

O patrimônio tem muitas e variadas relações com a identidade. Ele é um elemento fundamental em sua construção e é sua própria materialização. Além disso, considera-se o patrimônio como expressão da identidade histórica e vivenciada por um povo.

Para além dessa relação, o patrimônio também tangencia a cultura. Segundo Zanirato e Ribeiro (2006), os bens que compreendem o patrimônio cultural são considerados “manifestações ou testemunho significativo da cultura humana” (GONZALES-VARAS apud ZANIRATO e RIBEIRO, 2006, p. 252). Estes, por sua vez, são imprescindíveis para a estruturação da identidade cultural de um povo. Sobre isso, Russio (2010) destaca que:

a relação do homem com seu meio, seja em termos de mera apreensão da realidade, seja de ação sobre essa mesma realidade, implica realização humana em termos de consciência, de consciência crítica e histórica, de consciência possível. O homem é o ser que se realiza criticamente, historicamente; ao realizar-se, ele constrói sua história e faz sua cultura (RUSSIO, 2010, p. 206-207).

Segundo Meneses (2012), em conferência magna dirigida aos participantes do I Fórum Nacional do Patrimônio Nacional, na cidade de Ouro Preto-MG, é a identidade que nos situa no espaço e a memória que nos situa no tempo, sendo estas duas coordenadas que balizam nossa existência.

A função “memória”, que está relacionada à construção do patrimônio cultural, implica a existência de um novo elemento: o poder. A memória, seja ela voluntária ou involuntária, individual ou coletiva, será sempre seletiva. Mas podem ser observados dois movimentos entre a relação memória e poder: um que se volta ao passado e lá se cristaliza, em um culto ao que foi deixado para traz e hoje não mais existe, e outro que se dirige ao presente, em uma posição transformadora a partir da contextualização do passado no período corrente com visão para o futuro. O primeiro aliena e evade o sujeito de seu tempo presente, sendo assim uma forma de memória do poder, enquanto o segundo cria possibilidades de inovações do presente a partir do passado, sendo assim uma forma de poder da memória (CHAGAS, 2002). Esses dois movimentos acabam por definir a identidade de uma instituição cultural que lide com o patrimônio cultural, seja ela uma biblioteca, um museu, um arquivo, centro cultural, ou qualquer outra configuração institucional.

Como ressaltado em documento recente (IPHAN, 2014), as políticas de preservação do patrimônio se inserem num campo de conflito e negociação entre diferentes segmentos, setores e grupos sociais. Esses processos são sempre seletivos e sociais, a serviço de determinados sujeitos, vontades e relações. Mas não só o processo de preservação, a própria criação e eleição do patrimônio cultural envolve disputa de interesses. Ambos implicam definições de critérios de seleção e atribuição de valores. Há uma manipulação ideológica do que pode ser ou não patrimônio. O poder de decidir o que deve ser preservado é de determinado grupo (na maioria das vezes, uma elite) em detrimento do coletivo.

Cria-se uma crise não somente de representação, mas também de identidade. O saudosismo, o culto ao passado, a memória do poder impossibilitam a visão e reconhecimento de novos patrimônios, seja ele material ou imaterial, e assim, a sociedade se apropria de uma identidade que a ela não corresponde, mas sim a uma sociedade do passado, cujos costumes, formas de vida, relações e símbolos eram outros. Como exemplo de uma provocação real está o trabalho de Oscar Fortunato, um punk goiano que questiona em suas obras a “goianidade”. Em entrevista concedida ao jornal O Popular (FELIX, 2013), o artista defendeu que “temos que ir além de Cora Coralina, Siron Franco. Não é renegar, é ir além.” Na exposição RENSGA (interjeição de espanto em “goianês”, como o próprio artista define), ele questiona se é possível ser goiano sem cair nos estereótipos (memória do poder) e se existe uma nova goianidade (poder da memória). É trazer o que temos já marcado em nossa identidade para uma contextualização no presente e uma reconstrução do futuro. Ele ainda defende que é necessário o goiano se amar mais como tal e ter orgulho de sua identidade. Para isso é preciso que os sujeitos se reconheçam como formadores e componentes dessa identidade, apropriando-se de novos bens.

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O resultado desses conflitos é um desequilíbrio de representatividade em termos da origem étnica, social e cultural, o que causa uma crise de legitimidade e uma baixa identificação da população, em alguns casos, com o conjunto do que é reconhecido oficialmente como Patrimônio Cultural Nacional (IPHAN, 2014). Para além disso, Meneses (2012) chama a atenção para outro fato resultante do que ele denomina como “perversidade de certa noção de patrimônio cultural vigente”. A fim de ilustrar tal provocação, o pesquisador descreve uma imagem quase anedótica, se não apontasse para a "perversidade" que inverte e ignora os maiores interesses em jogo.

No interior hierático, solene e penumbroso de uma catedral gótica (Chartres), aparece uma velhinha encarquilhada, de joelhos diante do altar-mor, profundamente imersa em oração. Em torno dela, a contemplá-la interrogativamente, dispõe-se um magote de orientais, talvez japoneses. A presença de um guia francês nos permite considerar que se trata de turistas em visita à catedral. O guia toca os ombros da anciã e lhe diz: – “Minha senhora, a senhora está perturbando a visitação” (MENESES, 2012, p. 23).

Na situação, o desequilíbrio é marcado pela identificação da velhinha com a catedral, resultado do reconhecimento de um patrimônio. Este fora criado a partir de uma territorialidade, de uma relação existencial entre a habitante e a catedral, juntamente a toda sua simbologia. Observa-se uma condição de pertencimento e apropriação, vivência e fruição contínua, que não se dissocia do cotidiano e dos demais espaços que compõem todo o cenário em que se insere a catedral e a velhinha. Do outro lado, temos a mera contemplação por parte dos turistas, a partir do reconhecimento de um patrimônio alheio, resultado de uma relação desterritorializada. Uma contemplação desprovida de simbologia, uma vez que a relação com a igreja se limita a um momento, dissociado de seu cotidiano e seu “habitat natural”. E mesmo assim, a prática da senhora, habitante local e integrante daquele ambiente, é que representa a perturbação, e não o contrário.

A provocação de Meneses (2012) é, então, em relação à representação. O que e quem essa catedral representa? “Como pode algo valer para o mundo todo, se não vale para aqueles que dele poderiam ter a fruição mais contínua, mais completa, mais profunda? Como pode o patrimônio mundial não ter, antes, valor municipal?” (MENESES, 2012, p. 29). Sobre isso, Lemos (1981, p. 26) defende que “é dever do patriotismo preservar os recursos materiais e as condições ambientais em sua integridade [...] e o saber brasileiro fazendo que os conhecimentos de fora valorizem-no em vez de anularem-no.” Para tanto, é vasta a documentação que legisla sobre o patrimônio cultural brasileiro, como uma extensão à garantia prevista em Constituição, que será tratada no capítulo seguinte.