PDCC - Módulo II
 
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02. Patrimônio cultural: conceitos, usos e conflitos

Relação patrimônio e memória

Para que um patrimônio exista, ele tem que ser reconhecido e eleito como tal. A memória é um dos atores envolvidos nesse processo. Segundo Pereira (2011), ela se estrutura seguindo um sentido valorativo, fortemente relacionado à emoção, na evocação e reconstrução do passado.

Para Pomian (2000), a memória é o que permite aos seres vivos remontar-se no tempo, relacionando-se ao passado, mas mantendo-se sempre no presente. Essa reconstituição do passado, por ser sempre imperfeita, nunca integralizada, é somente possível com a existência de monumentos e documentos como pontos de referência espaciais que permitem o acesso ao que já passou. Esses monumentos/documentos, sejam eles naturais ou não, são resultado da materialização coletiva das recordações, que para continuarem exercendo a função de meio de transporte entre o presente e o passado devem ser preservados.

Do latim monumentun, significa aquilo que traz à lembrança alguma coisa. Segundo Choay (2006), a especificidade do monumento se dá pela sua forma de atuação sobre a memória. Deve ser chamado de monumento tudo aquilo que uma comunidade de indivíduos edifica para rememorar ou deixar que novas gerações rememorem fatos, crenças, sacrifícios. Ainda segundo esse autor, ele é localizado e selecionado para contribuir com a manutenção e preservação da identidade de comunidades, seja ela tribal, religiosa, familiar, étnica ou nacional. Por isso ele aparece em todos os tipos de comunidade. Como se fosse uma segurança materializada de possibilidade ou garantia de guardar o começo, as origens.

Mas, como nem todo o passado pode ser preservado, são eleitos os bens culturais que integrarão o patrimônio cultural de uma sociedade a partir de sua representatividade coletiva. O patrimônio pertence ao território da memória social ou coletiva (HALBWACHS, 1990), mais do que apenas à memória individual. Algo precisa ser partilhado e valorizado pelo grupo para ser transformado em patrimônio.

O valor cultural de um bem reside na capacidade deste de estimular a memória dos sujeitos vinculados historicamente a uma comunidade, garantindo a manutenção de sua identidade cultural, como é o caso dos monumentos/documentos citados acima. Eles são pontos de referências, que atuam em conjunto estruturando a memória individual para que essa então possa ser inserida na memória da coletividade a que pertencemos – a família, uma escola, um bairro, um grupo profissional, uma cidade, uma nação etc.

Neste ponto reside parte dos conflitos gerados pela patrimonialização de bens culturais: quando esta ocorre sem o envolvimento e a participação direta de segmentos representativos da sociedade diretamente implicada e afetada pelo ato, seja o tombamento ou o registro como bem de natureza imaterial. Quando as motivações para o tombamento ou o registro são de caráter meramente político ou geradas por interesses econômicos de grupos minoritários, a sociedade envolvida sente-se no mínimo alheia ao processo, ou até mesmo traída em seus propósitos.

É o que acontece quando há o enquadramento da memória, um trabalho de fornecimento de quadros de referências e de pontos de referências para a construção da memória de grupos. Esse trabalho, cujos limites devem ser determinados, pois a memória não pode ser construída de forma arbitrária, deve satisfazer a algumas exigências de justificação, referentes na maioria das vezes às pessoas responsáveis pelo enquadramento, seja um sindicato, uma associação, uma ONG, uma invasão, um regime ditatorial, ou qualquer outra organização política. São esses os atores profissionalizados que terão o direito e a permissão para selecionar o que e, o mais importante, como se enquadrará na memória de um grupo. Assim, existirá um controle da memória, além da produção de discursos organizados sobre acontecimentos, personagens e objetos materiais envolvidos, sempre objetivando o equilíbrio social (POLLAK, 1989).