Artigo 9) Cidadania Patrimonial: algumas reflexões na perspectiva antropológica
Dr. Manuel Ferreira Lima Filho.
Realizou estágio pós-doutoral sênior em Antropologia no Museu Nacional-Universidade Federal do Rio de Janeiro com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), 2014. Foi visiting scholar no Departamento de Antropologia da Washington University of Sain Louis- USA (2014) com bolsa da Fulbright-Capes. Realizou estágio pós-doutoral em Antropologia no The College of William and Mary (EUA), 2007. É doutor em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Brasília (UnB), 1998, quando foi bolsista da Fulbrigth/CAPES na Harvard University e University of Chicago (1994/95) com bolsa Sanduíche. Cursou o mestrado em Antropologia Social na Universidade de Brasília (1991) e a especialização em Antropologia Social (1987) na Universidade Federal de Goiás (UFG). Possui graduação em Geologia pela Universidade Federal do Pará, (1985). Foi visiting scholar da Smithsonian Institution (EUA) no National Museum of Natural History. Foi visiting scholar na Rockfeller Library/Colonial Williamsburg Foundation (EUA), 2007. Foi coordenador do mestrado profissional em Gestão do Patrimônio Cultural e Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC- GO)/Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia. Atualmente é professor adjunto III (DE) na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás, Pesquisador do CNPq e Conselheiro da Associação Brasil América (ABA). É professor do programa de pós-graduação em Antropologia Social e do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás. Professor colaborador do programa de pós-graduação em Ciências da Religião da PUC-GO. Atua no Núcleo de Estudos de Antropologia, Patrimônio, Memória e Expressões Museais (NEAP) da UFG. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Patrimônio Cultural.Boa noite, eu sou o professor Manuel Lima Filho, antropólogo de formação, com especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Tenho atuado há muito tempo na área de patrimônio cultural e gostaria de trazer para vocês, hoje, algumas reflexões relacionadas com a temática do patrimônio cultural e a questão de cidadania, tema que tenho me dedicado alguns anos na vida acadêmica. Por isso eu penso ser interessante relembrar a trajetória histórica das questões patrimoniais e museais, notadamente aquelas relacionadas às políticas públicas e apresentar uma breve reflexão sobre como a noção de cultura traz alguns desafios para o tema do patrimônio na perspectiva da antropologia.
Página 252Bom, então começando, é interessante lembrarmos que na virada do século XIX para o século XX havia uma discussão muito forte em nosso país a respeito da nossa identidade nacional. Os intelectuais estavam bastante envolvidos com a filosofia da eugenia, ou seja, da preponderância da considerada raça branca com relação aos outros grupos étnicos formadores da nação brasileira, tal como as etnias africanas que aportaram no Brasil e os vários grupos indígenas que já estavam aqui antes dos portugueses chegarem em 1500 na costa da Bahia. Então, a questão da identidade nacional era latente. Eu considero que no início do século XX, notadamente no ano de 1922, na Semana de Arte Moderna, essa questão se tornou mais latente, se tornou mais evidente, porque os intelectuais passaram a revisitar os seus valores da cultura nacional, buscando compreender um novo modelo, um novo rosto para o País, independente da camisa de força da eugenia, ou da superioridade da raça branca. Falava-se inclusive, na época, que o Brasil estava fadado a ser um País que jamais teria progressos tão considerados, porque haveria a impureza das misturas das raças. Assim, a Semana de 1922 é importante porque o movimento Verde e Amarelo, livros como Macunaíma, as artes plásticas, a poesia e textos de Manuel Bandeira, Anita Malfatti, ou seja, grupos de intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo resolveram fazer uma provocação sobre a questão da identidade nacional. É interessante também notarmos que exatamente pouco depois em 1930, Gilberto Freyre publica o livro Casa Grande & Senzala, sublinhando esse mesmo ponto, muito embora tendo uma visão do Brasil e da formação da família brasileira a partir da casa grande e, além disso, uma visão patriarcal demarcando o lugar de fala do qual ele pertencia. Apesar de todos esses senões e de ter amenizado os aspectos da violência dessa mistura de raças, principalmente com relação às sociedades indígenas e comunidades africanas, o livro do Gilberto Freyre é importante porque inaugura, de fato, a questão da identidade nacional, e um pouco depois, em 1933, Sérgio Buarque de Holanda continua problematizando esse assunto por meio do livro Raízes do Brasil, quando traz a noção de homem cordial e os dilemas do Brasil.
Pois bem, nessa época se começava a ter uma atenção especial sobre os valores nacionais e é nesse momento, na ditadura de Getúlio Vargas, quando um grupo de intelectuais liderado pelo então ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, passa a pensar um projeto sobre a identidade nacional a partir do patrimônio cultural. Mário de Andrade foi convidado para fazer o anteprojeto da criação de um plano ou programa capaz de mapear as nossas referências patrimoniais. Andrade criou o projeto, mas ele não foi plenamente implementado, uma parte foi modificada e resultou na criação do SPHAN - hoje IPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional, por meio do Decreto nº 25, de 30 de novembro de 1937.
Página 253Vejam que estamos na época da ditadura de Vargas e o SPHAN nasce com o poder de polícia, de organizar o patrimônio cultural brasileiro, principalmente no sentido de proteger o patrimônio edificado, ameaçado de desaparecimento, tais como as Igrejas barrocas de Ouro Preto, Recife, Olinda, Salvador e Rio de Janeiro. Dessa maneira, Ouro Preto foi eleita símbolo de identidade nacional. O patrimônio edificado, representado pelos casarios coloniais portugueses, o museu da independência e tantas igrejas barrocas e o tema relacionado ao movimento da Inconfidência Mineira, centrada em Tiradentes, foram relacionados ao sentido de notória brasilidade. Mas, principalmente, porque é em Ouro Preto que temos a expressão máxima da brasilidade, que seria o barroco ou as esculturas barrocas, produzidas pelo Aleijadinho. Ele era filho de um arquiteto português com uma escrava. Essa mistura das raças teve como fruto a criatividade ou genialidade brasileira, o que coloca o Brasil na ponta da arte universal, pois o barroco brasileiro não deve em nada às expressões barrocas da Itália, da França.
Toda a trajetória do patrimônio brasileiro é espelhada a partir das ações administrativas de Rodrigo Melo Franco de Andrade, advogado, jornalista e escritor mineiro, que assumiu o SPHAN de 1937 a 1968, conduzindo a administração do órgão com mão de ferro e exercendo o poder de polícia para aqueles que ameaçassem a destruição do patrimônio nacional. É o que o pesquisador José Reginaldo Gonçalves chama de retórica da perda do patrimônio cultural brasileiro.
Bom, apesar de toda essa questão ditatorial da era Vargas, podemos fazer um recorte de que Rodrigo Melo Franco com toda a sua equipe de arquitetos e especialistas, de alguma forma, protegeram o patrimônio edificado. Nesse momento em que é estabelecido o instrumento jurídico do tombamento pelo Estado nacional, estabelecendo um monumento como patrimônio nacional pela sua excepcionalidade artística, os casarios e as igrejas coloniais passam a fazer parte da nação.
Em 1979, já começando a abertura do País com relação à democratização, após Rodrigo de Melo Franco deixar o IPHAN e outros arquitetos por lá passarem, o instituto é assumido, de uma maneira muito particular, por Aloísio Magalhães; pernambucano, artista, advogado, ator e pianista. Ele imprime uma nova configuração às políticas patrimoniais sem abandonar o que de fato foi importante no período de Rodrigo de Melo Franco, mas alarga o tema do patrimônio na perspectiva daquilo que a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) já vinha chamando de referências culturais.
As referências culturais são aquelas não necessariamente só excepcionais, mas ligadas diretamente com a brasilidade, ou seja, música, folclore, arte, todas as manifestações da cultura brasileira, resgatando, assim, o plano original de Mário de Andrade, quando já previa os filmes etnográficos e a própria viagem que fez na época pelo interior do Brasil e também por Minas Gerais, juntamente com Manuel Bandeira, mapeando as manifestações patrimoniais brasileiras. Certa vez, Aloísio Magalhães compareceu a uma reunião em São Paulo, e perguntou: - E Triunfo? Aquela cidadezinha na chapada do Araripe em Pernambuco, não contempla as referências culturais do Brasil, não é um patrimônio cultural brasileiro? Com isso, ele alarga a noção de patrimônio cultural brasileiro, não necessariamente na perspectiva dos arquitetos, mas inclui técnicos de outras áreas como sociologia, artes, história.
Página 254Bom, é importante assinalar que um dos momentos marcantes é que, no ano de 2001, já com Fernando Henrique Cardoso na presidência da República, os antropólogos entraram, vamos dizer assim, de cheio na questão patrimonial. Isso porque o Decreto 3551 instrui, normatiza o registro dos direitos imateriais, institucionaliza a noção das referências e do patrimônio imaterial, moldado naqueles quatro livros do patrimônio edificado, mas agora baseado na questão das referências.
Os antropólogos, de modo especial Antônio Augusto de Arantes, ex-professor de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Ana Gita de Oliveira, que hoje trabalha no Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI), entre outros, fazem uma primeira experiência tendo como oficina o Museu Aberto de Porto Seguro para aplicar a metodologia do INRC, que é o inventário nacional de referências culturais, assim como ocorre na cidade de Goiás. Essa experiência foi decretada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e resultou na formulação do Decreto 3551 que instituiu o registro dos bens imateriais.
Apesar dessa abertura e da ideia de referências culturais baseadas agora na noção de cultura sob a perspectiva da antropologia - a cultura no sentido de ser dinâmica, de estar associada a um processo de transformação, de plasticidade, rompendo com essa noção de excepcionalidade - o decreto ainda traz a noção de relevância. Seriam registrados aqueles bens imateriais que tivessem relevância ou representatividade para o País. Mesmo com toda essa abertura, os antropólogos, os intelectuais que idealizaram o decreto, não conseguiram sair da camisa de força de um conceito redutor como a relevância. Assim, já escrevi que considero que a excepcionalidade está para o Decreto nº 25 de 1937, do patrimônio edificado, assim como a relevância está para o Decreto 3551 de 2001.
Pois bem, onde entra a cidadania a partir desse Decreto 3551? O que há de novo no tal decreto é que ele abre a possibilidade para que grupos sociais ou étnicos demandem do Estado brasileiro a chance de ter os seus bens registrados como patrimônio cultural. E, de fato, o primeiro exemplo é a demanda que as baianas de Salvador fizeram ao Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional daquela cidade, a fim de que fosse instaurado o processo, o estudo e o registro do modo de fazer o bolinho de Acarajé como patrimônio imaterial brasileiro associado ao tema da religiosidade afro-brasileira e a um determinado Orixá.
Nessa época, é interessante observar que aqui mesmo em Goiânia, o antropólogo Gilberto Velho, durante a 25ª Reunião Brasileira de Antropologia, relatou sua experiência como consultor do IPHAN a respeito de um processo conflituoso que existia entre os conselheiros do instituto na proposta de tombar o terreiro Casa Branca em Salvador. Do ponto de vista da materialidade, ele não tinha excepcionalidade nenhuma, era um terreiro com uma casa branca pequena, mas tinha uma relevância muito grande para os filhos de santo e para a comunidade que vive em torno do local com suas práticas rituais e suas relações pessoais, comunitárias e familiares. Então, o conflito é bom para pensar as políticas patrimoniais brasileiras. E a demanda ou abertura que o Decreto 3551 possibilita para os grupos sociais de nosso País e até em nível da Unesco tem uma dimensão positiva. Mas, novamente, por via de categorias antropológicas como a hierarquia e exclusão, se pergunta: o Estado tem o poder de nominar o patrimônio ou não? Quem tem o poder de atestar que uma igreja ou uma casa é excepcional ou não? Quem tem o poder de tutelar que um determinado bem cultural imaterial é relevante ou é representativo para a cultura brasileira? A noção de cultura abre a perspectiva para além da questão de excepcionalidade e da relevância porque grupos aparentemente desprovidos de qualquer materialidade, como alguns grupos religiosos, por exemplo, possuem dimensões imateriais que revelam uma complexidade muitas vezes incomensurável no registro positivado do patrimônio imaterial.
Página 255Outra contribuição importante é posta pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, de que a noção de cultura ou a noção de natureza ou de exploração de recursos humanos feitos por grupos indígenas ou étnicos não é necessariamente a mesma noção de cultura que o Ocidente tem. Logo, a noção de cultura é negociada com os grupos em contato com a sociedade nacional, assim como a noção de natureza. Muitas vezes a noção de natureza, de cultura ou a noção de representatividade ou mesmo de imaterialidade é muito diferente da concepção que nós ocidentais temos e, assim, abre mais uma vez a questão da complexidade do patrimônio cultural brasileiro.
Portanto, os antropólogos vieram, vamos dizer assim, para dar certa contribuição, mas não para resolver, como eu chamo no meu artigo, sobre o mal-estar que existia na política patrimonial brasileira. Eles trazem mais perguntas, ou seja, outros problemas para alargar cada vez mais a noção de patrimônio cultural brasileiro. E onde entra a questão de cidadania? Entra exatamente na flexibilidade, na maleabilidade que os grupos sociais e étnicos têm de negociar com as políticas públicas do Estado. Determinados grupos como, por exemplo, os ciganos, não querem fazer parte de nenhum processo de registro imaterial porque suas relações sociais se movem em torno do segredo, da mesma forma que alguns aspectos da religião afro-brasileira, que é também pautada pelo segredo. Por outro lado, pode haver outras manifestações culturais não consideradas excepcionais ou relevantes para o IPHAN, mas que são importantes para as comunidades que as mantém e, portanto, alvo de demanda de registro ao órgão estatal.
Na experiência que tive com o registro do modo de fazer das bonecas Karajá, escrevi que os Karajás, por exemplo, não precisam de nenhum selo para falar que essas bonecas são patrimônio imaterial brasileiro, elas já são algo muito importante para a cultura. Assim como a realização do Hetohoky, que é um rito de iniciação masculino, igualmente como a pintura corporal entre homens e mulheres, o conjunto de artefatos cerâmicos, não necessariamente só as bonecas, também os artesanatos em madeira. Mas eles aceitaram fazer parte desse, vamos dizer, jogo pensado por Bourdieu, na perspectiva de uma ação social no sentido de dar visibilidade, de ter um poder de negociação maior e com a política nacional, já que as bonecas são expostas em vários museus do mundo e são muito conhecidas em âmbito nacional. Então, através do registro das bonecas, os Karajás reeditam a relação com o Estado brasileiro em busca de uma identidade nacional, tal como na Marcha para o Oeste.
Portanto, a reflexão que eu trago hoje é no sentido de que o patrimônio é uma categoria importante, é uma categoria boa para pensar o Brasil, não é apenas uma política pública, mas possibilita a constituição de uma rede de relação de grupos subalternos acionando ou negando a relação com o Estado brasileiro. Uma interlocução ativa ou reativa. De uma maneira geral, era esse o panorama que eu gostaria de passar para vocês e através das perguntas talvez a gente possa ir verticalizando algumas questões.