PDCC - Webconferências 2016
 
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Artigo 8) Direitos culturais como Direitos Humanos

Questionamentos

Professor Marcus, em qual patamar de respeito aos Direitos Culturais o senhor coloca o Brasil?
Bom, nós precisaríamos estabelecer alguns parâmetros para definir qual seria o patamar adequado para considerar que os direitos culturais sejam respeitados. Entre eles podemos citar a promoção da conscientização das atividades dos sistemas internacionais e o acesso aos mesmos, juntamente com seus instrumentos de proteção e promoção de direitos humanos e, especificamente, dos direitos culturais, uma vez que sua divulgação tem se dado de forma muito restrita e acadêmica. Além disso, a educação em direitos humanos e também em direitos culturais pode capacitar as pessoas a exercerem, de forma ativa, sua cidadania e exigirem a concretização de tais direitos em suas vidas, além de promover a participação coletiva. Percebemos que, por exemplo, em Fortaleza, o governo municipal não tem dialogado com a comunidade para compreender melhor suas necessidades e interesses culturais. Quando vai tomar decisões em relação à proteção ou à destruição de determinados equipamentos considerados pela comunidade como importantes, falta esse espaço dialógico e democrático, que termina por inibir maior participação da sociedade. Entendo que direitos culturais, por conta de sua natureza complexa, são direitos individuais e coletivos, têm a dimensão coletiva, o usufruto dele é coletivo também. Então, a própria comunidade tem condições, capacidade e consciência, mas poderia desenvolver ainda mais esse senso crítico se o Estado promovesse sua participação e permitisse sua autonomia de decisão em relação à proteção do patrimônio, da valorização da vida cultural, da diversidade cultural. Entendo que a sociedade tem sido deixada de lado nesse diálogo em relação à proteção dos direitos culturais. Assim, definir um patamar no qual estaria o Brasil me parece um pouco complicado entender dessa forma, prefiro dizer que não estamos em um patamar dialógico, não temos uma cultura dialógica no que se refere aos direitos culturais.

Professor, segundo Aldous Huxley: “A ditadura perfeita terá as aparências da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão”. Em minha observação e estudos, a democracia brasileira tem uma sociedade civil desorganizada. Pergunto: Como assegurar uma democracia que alcance a efetivação do conceito da democracia, onde o que aparentemente é demonstrado é uma sociedade civil que não se apropria dos espaços e de participação cultural ativa? Ou a visão (e estudos) do senhor é diferente da minha?
Às vezes, a impressão que nos dá é que o Estado e a sociedade estão em um contínuo cabo de guerra. Alguns têm o costume de dizer que tal parlamentar não me representa, o Estado não me representa, mas isso no meu entender, de certa forma, é até incabível porque a nossa democracia é representativa. Esse é o modelo que nós temos, então, vamos utilizar esses instrumentos da democracia representativa que estão ao nosso alcance para tentar valer os interesses da sociedade. Instrumentos de pressão existem e o principal é, sem dúvida alguma, a atuação conjunta da sociedade. Como se dá essa atuação conjunta da sociedade? Como se efetiva? Por mais que tenhamos uma série de documentos voltados à educação de direitos humanos, planos nacionais de direitos humanos, por mais que tenhamos todos esses tratados, percebemos que não há uma apropriação por parte da sociedade desses valores, desses documentos e mais do que dos documentos, não há uma apropriação, na verdade, dos próprios direitos culturais. Sem dúvida, há muita valorização do chamado ‘pão e circo’ e do entretenimento, a valorização do consumo, uma cultura de massa, uma cultura de descarte, normalmente tudo isso leva à desagregação social e à hipervalorização do individualismo. Paradoxalmente, estamos em um processo de desagregação social e ao mesmo tempo num processo de interculturalidade. Existem movimentos que procuram realmente valorizar os direitos culturais e os equipamentos culturais existentes. Se nos fecharmos apenas aos muros acadêmicos, aos nossos trabalhos e palestras, perderemos uma oportunidade de enriquecer esse contexto cultural. Desse modo, entendo que não há outro caminho a não ser a luta, a busca dos seus direitos, que não seja a manifestação social, que não seja o enfrentamento muitas vezes até das disposições do Estado, com sofrimento, algumas lutas cruentas, infelizmente.

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Analisando o contexto dos direitos humanos, é possível observar que o Brasil não se mostra plenamente cumpridor de suas obrigações. Que ações hoje são tomadas para que o nosso país tome medidas mais claras para proteção, no caso específico, dos direitos culturais. Digo isso não apenas no contexto de ação da população, mas no campo legislativo.
O legislativo é, muitas vezes, inerte, passivo diante dessas demandas sociais. Entendo que, mais uma vez, é necessária uma movimentação social ampla para que o legislativo possa se incomodar e se mobilizar. Quando é do seu interesse, as coisas se encaminham. Nós temos aí uma série de discussões em torno do tema do ativismo judicial, que muitas vezes o judiciário acaba se manifestando em determinados temas como a própria questão política, do direito partidário, do direito à saúde, mas muito pouco em relação aos direitos culturais. Ressalto aqui que as sanções do Estado brasileiro no campo internacional são inócuas. Percebemos que as sanções desses organismos internacionais são consideradas apenas de cunho moral, porque acompanham os relatórios e esses são lidos e relidos. Essa é uma falha do sistema, essa é uma luta de quem trabalha nesse âmbito de pesquisa de tentar encontrar meios de dotar esses organismos internacionais de algum tipo de sanção para mobilizar o Estado a cumprir suas obrigações que ele, dentro do contexto de soberania e voluntariedade, acabou aceitando. Mas como diz o André de Carvalho Ramos, esse é o truque do mágico.

Sabemos que cultura ainda é algo muito incipiente em nosso país. Diante do fato, como podemos interligar a consciência da cultura com direitos culturais para o indivíduo tão restrito do conhecimento de direitos básicos, como saúde, educação, segurança, etc.?
Direitos culturais, como o próprio tema trata, são direitos humanos, são interdependentes, são indissociáveis. Ao tratar da questão dos direitos humanos também estamos tratando dos direitos culturais, e se não temos efetividade dos direitos humanos, muitas vezes essa possibilidade de uma diversidade cultural, de uma participação na vida cultural poderia nos dar um grau de conscientização da nossa condição humana bem mais ampla. Um grau de conscientização do valor da dignidade que temos, da necessidade de um existência digna, uma consciência da importância do Estado, a importância de seus agentes. Essa consciência também se dá por meio da difusão dos direitos culturais. Nós vimos que a vida não se dissocia da cultura também, nós somos permeados por ela, somos influenciados, criamos uma cultura e somos criados por ela muitas vezes. Para que nós possamos ter consciência de toda essa realidade, entendo que o processo de educação em direitos culturais é fundamental e ele vai surgir muito mais a partir do interesse da comunidade, das universidades, dos estudos, dos coordenadores, dos alunos, do que pelo que a gente tem visto de uma ação puramente estatal.

Sabe-se que no Brasil tem melhorado significativamente a questão dos direitos humanos e culturais também. Existem denúncias que os direitos culturais não são respeitados? Aqui no Brasil? Onde?
A partir do momento que se denuncia a destruição de um patrimônio material, tombado ou ainda não tombado, mas de interesse para a comunidade, a partir do momento que se denuncia a violação dos direitos de expressão de determinadas comunidades, como no caso das comunidades indígenas, tudo isso são manifestações por meio das quais também se pleiteiam proteção e promoção dos direitos culturais, mesmo que não levem esse título, eles efetivamente o são. Aqui no Brasil, por exemplo, em relação às comunidades indígenas, e inclusive também na ordem internacional,  temos acompanhado o caso da construção da usina do Belo Monte. São várias comunidades indígenas que estão na eminência de perder suas terras e o seu espaço, que a gente viu aqui naquela análise da Corte Interamericana como sendo fundamental a sua própria vida, a sua saúde e sua integridade, por conta da necessidade da construção de uma usina.

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A usina é necessária, sem dúvida alguma, nós precisamos de fontes energéticas, mas a comunidade não foi devidamente escutada, os debates não foram devidamente ampliados em um nível nacional. Então, essa falta de abertura, um déficit democrático ao diálogo, acaba impedindo que esses direitos sejam tratados de forma mais ampla para que a comunidade como um todo possa conhecê-los. Quantos conhecem o que está se passando nas comunidades indígenas no caso de Belo Monte? Quantos conhecem o que se passa na comunidade de Altamira, na própria cidade de Altamira, do aumento da violência e da criminalidade, da prostituição infantil? Por uma série de promessas não cumpridas, sítios arqueológicos também já foram identificados aí nessa região do Pará. Então, são debates que não chegam para a comunidade e são direitos humanos que estão sendo tratados ali naquele contexto.

Marcus, você citou documentos como: Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dois Pactos Internacionais com seus respectivos artigos. Pergunto: Uma conferência nacional sobre os direitos culturais não seria uma forma de "pressionar" as instituições culturais e, principalmente, o Poder Público, para que se cumpram esses direitos, previstos nestes documentos citados por você?
Sim, sem dúvida alguma essas manifestações e esses eventos têm essa característica importantíssima de levar o conhecimento para aqueles que estão afastados desse contexto da valorização da cultura e dos direitos culturais, de aproximá-los. Por mais que esses eventos aconteçam, às vezes, de forma não muito divulgada, são importantes dentro de um contexto local ou nacional, e eles acontecem, sem dúvida alguma, eles acontecem. A questão que sempre surge do debate final, nos relatórios finais, do apanhado dessas conferências é “e agora, como nós vamos efetivar?” Nós temos planos nacionais para o desenvolvimento dos direitos humanos, temos planos para o desenvolvimento da educação, no âmbito da saúde também, conferências de saúde são realizadas quer sejam em âmbito privado, quer sejam patrocinadas pelo próprio Estado. E a preocupação não deve ser apenas com a conferência, mas sim com a efetivação dos seus resultados. E essas preocupações já acontecem no nosso dia a dia, mas considero como da mais alta importância as reuniões comunitárias, as conferências estaduais e nacionais para a valorização desses direitos.

Em muitas de nossas webconferências temos falado sobre a não apropriação da população de seus objetos ou fontes locais de cultura, onde grupos pequenos tentam mobilizar e organizar em prol das defesas dos direitos culturais. E como o senhor acabou de falar, penso que isso não deveria ficar apenas no campo acadêmico. O exemplo da Hilda, das rádios populares, é um bom exemplo, mas e quando falamos nas divergências entre progresso urbanizacionista e patrimônio material, o que fazer?
Durante muito tempo se entendeu que a evolução cultural, o desenvolvimento cultural estivesse atrelado à ideia de progresso, então, o progredir estava ligado à evolução cultural sem dúvida alguma. Hoje se entende que não necessariamente, e até preciso entender de que tipo de progresso, quando se fala em progresso ou desenvolvimento econômico, desenvolvimento humano, desenvolvimento sustentável e integrado, não apenas antropocêntrico, mas biocêntrico. Essa realidade, na verdade, em um contexto de progresso, por mais que seja tratada e a gente vê isso no contexto conceitual e teórico de relação com a cultura, eu entendo que a ação deve se dar no âmbito conjunto. Na nossa converso um pouco atrás eu ressaltei esse âmbito conjunto no aspecto político e social. A comunidade pode se reunir em torno da valorização das rádios comunitárias, por exemplo, como elemento importante de integração; ou pela criação de pequenos museus, que interessam àquele grupo comunitário. A luta pela valorização, pela manutenção de todos esses equipamentos não é apenas uma conquista social no meu entendimento. Muitas vezes a própria sociedade necessita desse fomento, desse apoio jurídico, para conseguir efetivar e alcançar os seus objetivos através desses instrumentos.

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Então, é preciso mais uma vez debater a questão da participação social, como é que podemos fazer para ter maior conscientização, como é que posso conhecer mais a minha cultura? Às vezes eu vejo a notícia no jornal de um determinado equipamento importante para a comunidade que vai ser destruído porque vai passar uma avenida, vai melhorar o fluxo, mas eu mesmo me pergunto qual é o valor que esse equipamento tem para mim?
Qual é o valor? Eu não tenho uma relação com o equipamento, mas eu me lembro que direitos culturais e cultura não têm apenas um viés individual, não é um valor apenas para mim. Se não tiver valor para mim, então, não tem valor, não se trata disso, essa é a riqueza de potencial de agregação social, é entender que esses direitos, esses equipamentos e esses valores podem nem ser meus, são valores de uma comunidade. Por serem valores de uma comunidade, merecem ser respeitados, porque outras pessoas estão se desenvolvendo, estão crescendo, progredindo e por isso merecem respeito e proteção.

Como o senhor vê as recentes notícias de 'Casas de Santo' serem agredidas por fundamentalistas neopentencostais?
Hoje temos realmente uma proliferação dessas atitudes de ódio, dessas manifestações de intolerância, principalmente em torno de movimentos religiosos e de questões religiosas. É interessante porque estamos falando de uma cultura inclusiva, estamos falando também de diversidade cultural, estamos falando do outro, da valorização do outro, do respeito, e praticamente simultaneamente percebemos esses elementos que são contrários a todos esses valores.

Mas precisamos entender que isso também faz parte do pacote da humanidade, do nosso pacote como pessoa humana, nós temos não apenas uma posição de polos extremados de bem e de mal, mas até de incompreensão. Eu entendo que há uma valorização, inclusive, da mídia em relação a esses temas. Não é que não existam esses problemas, eles existem, o atentado na França existiu claramente, a destruição das imagens no museu no Iraque existiu claramente. É um fato que pessoas, pelo que você está relatando dentro da pergunta, de uma determinada religião se manifestaram de forma violenta em relação a essas comunidades.

Nós já tivemos casos de outros religiosos, de outros movimentos também destruírem elementos da igreja católica e a igreja católica também já fez isso. Então, eu acredito que há uma exacerbação no sentido de até, muito cuidado em dizer isso, mas eu sinto que, de alguma forma, há também uma certa motivação, um elemento motivador dessa violência toda, agregador. E, infelizmente, os meios de comunicação da forma como tratam esse assunto, da espetacularização da notícia, não há nenhum tratamento no sentido de discussão, esclarecimento, mas sim de polarização, de extremismo. Qual é a razão desse problema estar acontecendo, os valores de uma comunidade são inferiores ao de outros, os valores culturais de uma religião são inferiores ao de outra?
A meu ver, esses atos de violência revelam atitudes de pessoas que não têm a sua própria fé firmada, são pessoas muito mais dentro de um contexto de agressividade do que propriamente de fé religiosa. A meu ver, como no caso dos terroristas islâmicos, muito líderes religiosos islâmicos têm se manifestado dizendo que isso não é verdadeiro islã, mas é tratado como se fosse, isso não é o verdadeiro muçulmano que tem fé, mas é tratado como se fosse. Então, talvez esse não seja o verdadeiro pentecostal, evangélico, mas é tratado como se todos fossem assim. Portanto, a forma como nós procuramos resolver esses problemas acaba sendo um instrumento de motivação dos problemas. Não é só pela informação, mas que tipo de informação. Porque amanhã eu já tenho outra notícia e pronto e acabou, assim, nós esquecemos aquele problema e ficou uma rixa entre comunidades, e quando o caso for mais sério com certeza vai voltar a ter importância para os meios de comunicação. Mas também há encontros e conferências para discutir a interreligiosidade e o diálogo interreligioso e as comunidades locais. Cadê os líderes religiosos dessas comunidades nessa situação que aconteceu? Por que não promovem um diálogo interreligioso para tratar da questão? A meu ver, não são pessoas religiosas, na minha humilde opinião, isso não é uma manifestação de fé, é uma manifestação de desrespeito que não tem nada a ver com fé.

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Professor, estou terminando uma pesquisa que tem o título "Cultura e Comunicação: Rádios Comunitárias e os Reflexos na Cidadania" e o que se percebe é a apropriação de grupos capitalistas a meios constitucionais que facilitam a isenção de impostos ligados às rádios comunitárias. Como o senhor analisa esta situação?
Essa é uma realidade que não é só do Brasil, é uma realidade global de que poucos decidem e esses estão envolvidos com grandes corporações, com grandes conglomerados financeiros e aí está uma das razões do Estado estar sempre em conflito com a sociedade. Como o Estado acaba muitas vezes se tornando refém, deixando-se fazer refém desses interesses econômicos, desses grupos corporativos; alguns têm inclusive um faturamento maior do que o PIB de muitos países. Essa é uma realidade pós-moderna em um contexto contemporâneo que nós temos que enfrentar. É um Davi frente a um Golias. Como enfrentar essa realidade? Você tem razão quanto a isso, quantos famílias detém, talvez nos dedos de uma mão a gente possa contar, a grande parte da mídia nacional? Como enfrentar tudo isso? As rádios comunitárias, sem dúvida alguma, enquanto não estiverem perturbando talvez não sejam nem questionadas, mas a partir do momento que, de alguma forma, atentem contra os interesses econômicos e políticos desses grandes grupos elas sempre farão frente. Então, eu acho que dentro de um trabalho de pesquisa esse é um contexto interessante a se enfrentar. Parceria, caminhada unida e conjunta do Estado com o poder econômico. Isso não é de agora, vem da formação do Estado. As primeiras corporações de trabalhadores na Idade Média, quando formaram os seus grupos, também estiveram junto do poder econômico e assim atravessaram toda a história da humanidade. A humanidade conseguiu sobreviver a isso e eu acredito que vá sobreviver. São poucos e sem tantos reforços, eu digo no aspecto financeiro, que lutam pelas rádios comunitárias e por outras manifestações comunitárias também, mas que são importantes. Portanto, eu acho que nessa visão da ação do Estado e dos grupos econômicos, e sua influência, muitas vezes há redução ou impossibilidade de ação em instrumentos menores de comunicação como as rádios comunitárias.