PDCC - Webconferências 2016
 
Página 237

Artigo 7) A Memória e o Patrimônio no Espaço Urbano: a Avenida Goiás em Goiânia

Questionamentos

Quais foram os desafios e as vantagens da pesquisa com fontes orais?
Uma das vantagens é que você pode navegar no passado conversando com as pessoas, você pode perguntar o que quiser para elas, que elas vão te falar e isso não acontece dessa forma com as outras fontes. Consultando outras fontes você vai saber aquilo que foi registrado. Há muitas vantagens em se trabalhar com esse tipo de fonte. Mas é delicado conduzir todo o processo da entrevista, você tem que aprender a acompanhar, ter paciência, repetir várias vezes as sessões caso não consiga fazer o registro, estar atento, porque talvez você não tenha uma segunda chance. E também exige escolher as formas para fazer uma análise do material coletado. Nesse caso, optei por uma análise de conteúdo temático, dessa forma, foi bem prazeroso lidar com esses dados.

Qual foi a parte mais difícil do seu projeto?
As partes mais difíceis foram a delimitação do tema, do problema e a escolha do método, porque fui levantando material e depois fiquei sem saber muito bem como organizar isso. Conversei muito com meu orientador e chegamos ao método de análise progressivo-regressivo elaborado por Henri Lefebvre. O que foi fantástico! Dessa forma, consegui organizar meu trabalho, só que sempre é complicado a delimitação do tema, a definição do objeto. Então, antes de começar é muito bom pesquisar bastante e tentar estruturar essa parte do trabalho. Isso porque, depois, quando você chegar lá na frente e já tiver pesquisado um monte de coisa, de repente pode ter que voltar lá atrás, porque quando estava levantando o material não explorou o que você delimitou posteriormente.

Com a revitalização da Av. Goiás o conceito de patrimônio se perdeu para a população. Muitas pessoas veem o Coreto, o Grande Hotel e a Torre do Relógio apenas como elemento decorativo. Como reverter esta situação?
Bom, primeiro é a questão da educação, porque as pessoas não vão notar os objetos cotidianos se não houver alguém para dizê-las. É interessante que o meu noivo morava em um setor afastado do centro, quando ele começou a conviver comigo, comecei a apontar para ele e ele começou a me falar: - Eu não tinha percebido isso. Então, é essa mesma questão com a população, é você ensinar a enxergar, porque se não tiver ninguém para mostrar, ninguém vai ver, pois tomamos a paisagem atual com certa naturalidade, como se todos os elementos que estão lá sempre existiram, não necessariamente como uma construção histórica.

 

Olá, em meu município estamos com um problema parecido, pois a prefeitura está "modernizando" o centro da cidade e assim mudando corredores arborizados e prédios antigos. Neste ponto, questiono como a comunidade goianiense busca preservar os prédios e espaços históricos mesmo não sendo Art Déco? Sua pesquisa flui sobre estes aspectos?
Bom, na verdade não flui, mas de acordo com os meus estudos penso que a sociedade civil deve se organizar para propor e contestar projetos. É importante que a sociedade se manifeste e diga: - Olha, isso é importante pra gente. É importante que a cidade se reconstrua, é essencial a adequação das formas antigas às novas funções, faz parte da dinâmica urbana. Mas em determinados momentos a população deve se manifestar e dizer: - A gente prefere que o trânsito seja mais lento, mas queremos conservar essa casa. O posicionamento da sociedade é importante para que alguns espaços da cidade sejam conservados.

Página 238

 

Danielle, você ressaltou a necessidade da memória, principalmente dos idosos, a oralidade. Você considera que falta a memória em outros documentos, como escritos, por exemplo?
Não, de certa forma documentos escritos também são a memória. A questão é onde você busca esses documentos, por que eles foram escritos? A gente tem um tipo de memória, no caso, se você procurar nos documentos oficiais vai encontrar a memória oficial. Assim, a gente tem que pensar que temos uma abundância de pontos de vista dos mesmos tempos, então, temos diversidade de memórias. No meu caso, eu quis procurar a memória cotidiana, portanto, eu pesquisei moradores comuns, mas eu sinto que tem poucas pesquisas que trabalham com esse tipo de público. Eu vi muito sobre relato de memória dos fundadores e das pessoas importantes da cidade, mas eu quase não encontrei sobre os moradores comuns que viveram em outros lugares ou até em outras regiões sem ser o centro da cidade. Por isso eu acho que precisamos muito disso, de pesquisas que explorem as memórias desses moradores comuns.

Concordo quanto à educação ser fundamental para reverter uma situação. Mas ainda assim continuo a questionar como trabalhar essa educação em forma de ação educativa, ou não seria um projeto educacional direcionado às escolas públicas? Pois, infelizmente, o centro urbano de Goiânia é utilizado como meio de locomoção e as pessoas não tem tempo para apreciar e "ser educada". Como transformar essa realidade?
É por meio de projetos educacionais mesmo. Eu vejo assim, projetos voltados para a educação pública que deem um incentivo a esses alunos buscarem os pais, os avós, os mais velhos para fazer esse tipo de trabalho que é a integração da escola e da comunidade. Porque se colocamos o passado em uma posição de valor, devemos também colocar os idosos nessa posição, pois eles vêm perdendo espaço na sociedade. Então, é uma forma até mesmo de devolvê-lo ao idoso, porque eles, em outros tempos e outras sociedades, eram considerados fontes de sabedoria, de conhecimento. Podemos observar que antes do conhecimento ser tão fácil como é agora, clica o mouse e está no Google, eles eram consultados com mais frequência. Portanto, acredito que um processo que envolva a família e a comunidade e que incentive os alunos a conversarem com os avós seja um dos caminhos. Dessa forma, vejo uma possibilidade.

Você disse que em certo momento da pesquisa percebeu que as entrevistas individuais eram mais difíceis do que trabalhar com os coletivos (memórias coletivas). Essa mudança alterou algo no decorrer do seu trabalho?
Alterou para melhor porque alguns dos entrevistados realmente não conseguiam desenvolver as narrativas de forma individual. O que eu mais escutava era: - Ah, mas eu não lembro isso, fala com fulana que ela vai falar melhor. Quando eu reuni todo mundo, lógico que tive que optar por grupos de quatro pessoas ou três, porque muitas vozes tornariam complicado fazer a transcrição, pois surgiam muitas conversas cruzadas. O positivo foi que um lembrava a mesma coisa que o outro, cada um de uma forma, então, havia debates, discussões e comentários. Dessa forma, a narrativa do outro, a memória do outro era estimulada. Parece que o processo de evocação de lembranças era estimulado quando a pessoa tinha um interlocutor que viveu e conviveu na mesma época.

Página 239

Em sua opinião, qual modelo de política pública deu certo e que poderia ser seguido por outros estados no que tange à questão patrimonial de Goiás?
Bom, eu não sei dizer, porque cada região tem suas especificidades, então, o que deu certo aqui, talvez não desse em outra. Eu acredito que as políticas públicas de requalificações de espaços devam ser desenvolvidas junto com os moradores.

Olá Danielle, tendo em vista as suas pesquisas, você conseguiu identificar se a população goiana consegue discernir a importância e o valor dos patrimônios culturais do centro de Goiânia ou ela acha que são meros enfeites para a paisagem da cidade?
Na verdade é engraçado, porque não há uma reflexão sobre isso por parte da população em geral, só entre alguns grupos específicos. Há aquilo que as pessoas sabem que existia desde sempre, sabem que, de alguma forma, é valioso porque é antigo. Mas não entendem muito bem o porquê. Aí eu bato na mesma tecla, que é a questão da falta de diálogo das novas com as velhas gerações. É falta de você ter um diálogo com o seu avô, para perguntar e ele te falar sobre o passado. Só comecei a ter esse olhar em relação à Avenida Goiás, sobre seu passado, porque tive quem conversava comigo sobre isso. Minha tia-avó Lili me contava histórias do lugar desde que eu era criança. Toda vez que andava com ela pela avenida, me contava:
- Olha, aqui antes eu usava para fazer o vai e vem, ali era a única sorveteria que tinha.
Eu tive alguém para me abrir esse olhar. Foi assim que consegui enxergar. Então é isso que acontece com essas outras pessoas, precisam de alguém para direcionar o olhar. Eu percebo que a maioria delas realmente não sabe o motivo de algo ser tombado ou não, e o porquê da importância em se conservar algumas coisas. Agora a questão do Art Déco explodiu tanto aqui em Goiânia que por várias vezes abri um jornal e os jornalistas falavam sobre casas que foram destruídas dizendo que a orientação estilística delas era Art Déco. E por muitas vezes nem era, mas eles falam que sim só porque era antigo e porque têm como referência esse processo de tombamento ocorrido em 2002. Mas o que eu percebo com isso? Percebo que agora a consciência histórica patrimonial está sendo discutida de alguma forma e isso é importante. Pelos novos meios de comunicação, pelas redes sociais, conseguimos incentivar essa questão.

E você conversou com muitos moradores para fazer esse trabalho?
Formalmente não. Conversei inevitavelmente com amigos, com o resto da família, mas como a minha pesquisa era qualitativa eu tive que fazer um recorte com um grupo pequeno, senão eu teria um trabalho de anos. Mas acabei trocando ideias com pessoas de diversas idades e percepções da cidade.

Página 240

Professora, o que acha que seu trabalho mudou e mudará em relação à cidade, história e vida das pessoas que convivem neste local?
Bem, o meu trabalho dá um direcionamento de olhar, o que acredito ser necessário para as pessoas pensarem as formas da cidade de forma crítica. Espero que a leitura da minha pesquisa possa auxiliá-las a andarem pela cidade e refletirem sobre o porquê da Avenida Goiás ter o formato de hoje. Estou estudando a aplicação pedagógica, material didático, do método de análise que utilizei.
E tem também a questão do alerta para as memórias dos mais idosos, pois acredito que isso é a chave pra descobrirmos muita coisa que não foi documentada. Além da importância da ocupação do espaço urbano, que foi algo que explorei menos nessa fala minha. Mas é porque são várias coisas na dissertação - ela é bem extensa – e esse é um dos viéses, porque a rua é um espaço essencialmente democrático, é um espaço de transição de um lugar entre o outro. É um ambiente que gera lembranças, portanto, ela é nossa e temos que decidir como ocupá-la.
Essa é a questão de ocupação da rua que eu considero importante. Vejo, por exemplo, a Avenida Goiás totalmente abandonada e este é um espaço para realizações, é um espaço para a sociedade, é um espaço para as reivindicações, para as manifestações artísticas e nem sempre isso é explorado, também influenciado pelos problemas da segurança pública. Portanto, a partir dessa percepção da ocupação da rua, uma série de discussões também pode ser levantada.

Outro ponto. Ao estudarmos a história da construção de Goiânia, vemos a existência de uma primeira rua onde ficavam os trabalhadores da construção, questiono nas lembranças das memórias pesquisadas por você se há algum relato referente a esses trabalhadores e seus destinos?
Falo sobre o bairro popular. Esse é outro recorte que fiquei muito interessada em explorar, mas não pude, porque o trabalho já estava bem extenso. Tomo a Avenida Goiás como a primeira rua oficial, mas tenho consciência dessas outras ruas formadas por esses trabalhadores, porém, não pude explorar essa parte. Acredito que um estudo sobre a história dos trabalhadores e os espaços que eles habitavam seria de muita valia, além de extremamente necessário.
 Houve até um processo de demolição nessa região do bairro popular que foi para construir o estacionamento do Mutirama, que é outra parte que está totalmente fora dos livros históricos da nossa cidade, e onde temos construções extremamente antigas. Já o grupo específico que pesquisei vivia abaixo da Avenida Paranaíba, que cruza a Goiás.
Essa divisão também é percebida, pois a parte do bairro acima da Paranaíba, em direção à Praça Cívica, era o local comercial e onde viviam as pessoas mais ricas, indo até as casas da Rua 20, as primeiras casas residenciais construídas oficialmente. E na parte do Setor Central que fica abaixo da Paranaíba, morava o pessoal do bairro popular e a minha família, que são os sujeitos dessa pesquisa. Moravam na primeira quadra, logo abaixo da Paranaíba. Eles vieram de Morrinhos para Goiânia, em uma situação de classe média, então, não consegui obter relatos dos trabalhadores de fato de Goiânia, não estavam no meu recorte.
Em relação às contradições, o engraçado é que não consegui encontrar, até porque eu não localizei nenhuma pesquisa ou nenhum documento que fosse extenso sobre a modificação da paisagem. Dessa forma, as pessoas não conseguiam localizar exatamente o que elas estavam me relatando. Elas conseguiam se lembrar: - Porque na época de 70 era assim, assim e assim... E isso me ajudou a pesquisar, ir nos arquivos e descobrir recortes e relatos, e eu nunca encontrei muitas diferenças e discrepâncias entre os documentos oficiais e as narrativas.

Página 241

Você falou que abordou apenas alguns aspectos aqui. No trabalho você aborda também algo relacionado à arte urbana? Existem manifestações de cultura visual nessa linha na Avenida Goiás?
Eu não abordo porque o recorte também não permitiu, mas é uma das coisas que andam acontecendo com maior frequência, inclusive depois que eu havia terminado a minha dissertação, eles fizeram a galeria aberta na Avenida Goiás, onde diversos artistas pintaram as portas de aço do comércio. Eu vejo isso como extremamente positivo. Existem os que acham que isso atrapalha a paisagem do patrimônio que existe edificado, já eu acho que tem que ter vida e a arte de rua é vida, não podemos querer conservar só uma temporalidade.
Há um projeto que diz que pretende ‘apagar’ os prédios de outros tempos e outras orientações com cores neutras, para poder ressaltar os prédios em Art Déco. Não concordo com essa proposta, pois acho que nossas memórias e os nossos patrimônios não devem congelar um tempo e uma coisa específica. Então, para mim essa manifestação de arte urbana é extremamente importante para a nossa cidade e também um registro histórico.

Como você observou nos discursos dos entrevistados aquilo que derivava da memória e o que respectivamente poderíamos caracterizar como “imaginação criativa”, “ilusória” de um passado? Você levou essa hipótese em consideração ao analisar os áudios coletivos? Como lidou com esse desafio? Parabéns pela pesquisa.
Obrigada. E sim, uma preocupação que temos quando lidamos com narrativas memoriais é a questão da verdade. Mas nenhuma fonte te revela de fato “o que realmente aconteceu”. Trabalhei com a categoria paisagem, então, não me prendi muito a essa questão. O que acontecia era a confusão com datas, mas isso sendo confrontado com outras pessoas e fontes resolveu-se rápido. Se fosse a análise, se pautasse em história de vida, podia vir algum fato ou outro que na verdade viria da imaginação, mas no caso de trabalhar com uma percepção que é de certa forma objetiva, em relação ao que era visto e com o que acontecia no espaço, eu não tive grandes problemas.

Nas pesquisas que já fiz em minha cidade, percebi que a rua tinha um valor diferente de hoje, seu simbolismo é diferente. Todos que moravam nas cidades queriam estar mais próximos da rua, era um local de socialização, hoje as ruas de antes tem um caráter mais comercial. Em seu trabalho você percebeu esta mudança também?
Sim, porque a rua era o local de socialização, as pessoas iam para conversar, para encontrar amigos. Atualmente, as ruas, e principalmente as grandes avenidas, são lugar de trocas comerciais. Acredito que isso seja herança da ditadura militar em que as pessoas não podiam se encontrar na rua. Rua era lugar de circular e não de ficar conversando, então, creio que até por uma questão histórica a relação delas com a rua mudou. Só que no nosso atual contexto podemos tentar reabilitar a função da rua como lugar de convivência e não só de trajeto.

Página 242

Obrigada Danielle pelo esclarecimento. Você fala sobre a busca e o resgate da memória coletiva de pessoas mais idosas que vivenciaram a historiedade dos nossos patrimônios, mas observamos que cada vez mais as pessoas não têm esse tipo de diálogo, devido à inserção das tecnologias e suas ferramentas que intermediam as mais diversas relações sociais. Você acha que as políticas públicas e os projetos realizados atualmente estão caminhando de mãos dadas com essas novas tecnologias ou elas se constituem como novas barreiras para a conscientização do cidadão goiano?
Eu acho que na verdade elas são mais uma ferramenta, que usadas da forma correta – apesar de não saber se há uma forma correta – podem influenciar nas questões a partir da forma como é utilizada. Pela minha experiência, as redes sociais estão sendo úteis. Por exemplo, uma casa modernista estava sendo demolida perto da minha casa, fomos lá, fizemos fotos do que havia restado. Foram feitos posts no facebook e surgiu uma série de pessoas reclamando e dando opiniões. Então, percebemos que as redes são um instrumento de coesão social. Devemos nos adaptar às novas tecnologias para usá-las para os fins que acreditamos ser corretos. Assim, não vejo como uma barreira, mas como um meio de educação e conscientização.