Artigo 7) A Memória e o Patrimônio no Espaço Urbano: a Avenida Goiás em Goiânia
A Paisagem Atual da Avenida Goiás
Projetada para ser o eixo norte-sul da composição urbana de Goiânia, a Avenida Goiás é a principal avenida do centro da cidade. Possui cerca de 1.700 metros de extensão e estima-se que mais de 200 mil pessoas transitam diariamente em suas calçadas e ilhas. Desse modo, podemos dizer que o fluxo de pessoas nesse espaço se daria por dois motivos principais: o deslocamento de um lugar ao outro devido à sua estrutura de transporte urbano e em função do comércio local.
Quanto aos canteiros centrais, podemos observar que os bancos da avenida são constantemente ocupados por pessoas que estão esperando o ônibus, casais namorando, turma de amigos conversando e indivíduos que estão somente descansando ou observando o movimento. A paisagem atual da Avenida Goiás apresenta bancas de revistas, prédios residenciais e comércios. Em suas ilhas centrais temos jardins, bancos, pérgulas com vegetação, calçada para passeio e pontos de ônibus. Podemos observar alguns prédios que passaram por processo de restauro, mas já estão todos pichados, o que é um problema comum entre as edificações, e ainda uma forte presença do comércio ambulante.
Pesquisando a história da avenida percebi que ela foi e ainda é espaço de manifestações, foi local de passagem de paradas LGBT e de acampamento de estudantes em uma greve da Universidade Estadual de Goiás (UEG), entre outras, e inclusive foi palco de uma grande manifestação em 2013. Em consulta a outras fontes e escutando as narrativas, percebi que a Praça do Bandeirante, que se localiza na Avenida Goiás no cruzamento com a Avenida Anhanguera, também era um local de intensas discussões políticas durante a década de 1950.
Realizando uma análise de fotografias da Avenida Goiás, pude observar o processo de metamorfose espacial do lugar. Em uma vista aérea do local na década de 1930, podemos encontrar somente o Grande Hotel ao fundo, que foi a primeira construção da avenida. Nas imagens das décadas de 1940 e 1950 podemos observar as ilhas centrais jardinadas com alguns bancos distribuídos por elas. Hoje o espaço encontra-se semelhante a essas imagens, foi a inspiração dessa época que trouxeram para os dias atuais.
Já em fotografias das décadas de 1980 e 1990 encontramos ilhas centrais sem jardins e com palmeiras imperiais. Durante a semana, além do movimento de pessoas e ônibus, o que mais chamava atenção eram as lonas azuis que tomavam conta de todo espaço da ilha. Essa é a imagem que guardo do tempo da minha infância, quando tinha medo do lugar. Não dava para transitar e aproveitar os espaços da avenida, era só comércio informal e ônibus, era bem agitado.
Página 233Entendemos o patrimônio, então, como uma forma de abordagem da memória, mas temos consciência também que o discurso patrimonial reproduz a narrativa da história oficial, privilegiando alguns elementos do tempo em detrimento de outros. No caso do processo ocorrido em Goiânia, o acervo arquitetônico urbanístico Art Déco privilegia a época da construção dos primeiros tempos da cidade. Se focarmos a atenção somente no acervo arquitetônico urbanístico Art Déco não estaremos levando em conta as outras temporalidades, como várias construções da década de 60 e 70, por exemplo, que também são relevantes arquitetonicamente, mas não entraram no processo de tombamento justamente por suas características. Porque quando um tombamento nacional é proposto, deve haver um significado e um recorte que entra em consonância a determinado período da história da nação, além dos significados regionais.
Realizando um estudo do dossiê de tombamento, percebi que o significado nacional e o valor do bem se relacionam com a época de retomada da construção de novas cidades, cidades planejadas, da Marcha para o Oeste da política de Getúlio Vargas. Nesse sentido, Goiânia representa um novo momento de criação de cidades no País. Algumas pesquisas dizem que Brasília foi possível porque a existência de Goiânia deu suporte para a sua construção. Assim podemos perceber que a história que é evocada é a narrativa oficial dos primeiros tempos da cidade, pensando na perspectiva regional.
E o que significam as formas do Art Déco? O Art Déco foi um movimento artístico derivado das artes decorativas e tem como característica o uso de traços retilíneos. As construções conseguiam causar uma impressão monumental sem grandes gastos. Dizem que o Art Déco foi uma das orientações arquitetônicas preferidas dos estados totalitários. Assim, vemos a relação das formas com o governo do Getúlio Vargas, ou seja, ela representa uma época.
Se formos olhar os significados regionais para o uso dessas formas, observamos a vontade de rompimento com o passado. Quando Pedro Ludovico resolveu transferir a capital da Cidade de Goiás para Goiânia, ele queria que a cidade representasse a modernidade e naquele momento a modernidade possível foi o Art Déco. Podemos observar o uso dessas formas em filmes futuristas, como o alemão Metrópolis. O uso desse estilo foi comum entre os prédios públicos e não tão comum nas construções dos moradores da cidade. Nesse sentido, Llorenç Prats (1998, p. 64) diz que a construção do patrimônio cultural é um processo de legitimação simbólica das ideologias porque consistiria na seleção de determinados bens a partir de determinadas fontes de autoridade.
Portanto, nesse trabalho, propus um deslocamento de foco para além da memória oficial representada pelo processo de tombamento arquitetônico e urbanístico. Fomos em busca de uma memória cotidiana da avenida. Para isso, selecionei um grupo específico: duas gerações de uma mesma família.
Quanto aos procedimentos metodológicos, foi realizado o levantamento bibliográfico, documental e entrevistas semiestruturadas. Para a composição do trabalho, nos baseamos em Ecléia Bosi (1994, p. 99-200), que diz “cada geração tem de sua cidade a memória de acontecimentos que são pontos de amarração de sua história”. Então, a geração representada por Lidoneta, Maricota, Helena, Joaquim e Cacilda viveu a Avenida Goiás mais intensamente nas décadas de 50 e 60, que é a época da juventude deles, os idosos focam suas narrativas no passado em que eram jovens.
Página 234Já a geração de Eliane, Luciana e Cristiana nos apresentou narrativas memoriais que se iniciam na década de 70 até os dias atuais, que se referem também à época de infância e juventude delas. Como já disse anteriormente, nessa primeira etapa tentamos realizar entrevistas individuais, só que depois percebemos que sempre falavam: Chama fulana, ela tem melhor memória do que eu. Logo, a gente partiu para as entrevistas em grupo, que chamei de entrevistas dialógicas.
A coleta e organização de todos esses dados, toda a documentação e a forma de construção da minha dissertação foram feitas à luz do método progressivo regressivo do Henri Lefebvre. Primeiro observei e descrevi o objeto no presente. Tem uma parte na dissertação que só descrevo a Avenida Goiás como ela é hoje, o que é realizado, o que as pessoas fazem nela, pra quê ela serve, o que representa no momento para a trama urbana da cidade e como se apresenta a paisagem atual.
Num segundo momento vou para o passado. Realizei pesquisas documentais para entender como ela se construiu e foi construída pela população e pelo poder público. Como as relações e as contradições que hoje existem nela foram geradas. Depois volto ao presente e relaciono o presente ao passado. Eu tento descobrir onde surgiram as questões apresentadas pelo presente. Além disso, meu orientador me propôs um exercício que foi, na verdade, um desafio: fazer uma projeção para o futuro.
Para realizar essa leitura de futuro usei como base projetos que estão em andamento, como a construção do BRT (Bus Rapid Transit) de norte a sul afetando a paisagem da avenida, cuja execução no trecho ainda está em estudo. Acredito que isso se deve aos limites impostos pelo processo de tombamento que não permite a modificação das dimensões da via. Outros projetos que podem impactar diretamente a dinâmica da Avenida Goiás são o processo de requalificação da Praça Cívica e a restauração do prédio da antiga Estação Ferroviária.
Nas narrativas sobre a Avenida Goiás encontramos coisas interessantes. A Luciana, que hoje está na casa dos 50 anos, disse: - A nossa vida se resumiu onde? Nas Avenidas Goiás e Araguaia, não é? Ela disso isso conversando comigo, com a mãe e com as irmãs. Aí a Eliane falou: - A Avenida Goiás representou muito na minha vida em termos de emoção, de sentimento, nossa vida girava em torno dela duas vezes por semana; o tempo que eu passava lá na minha avó, que a gente ia passear, era o trajeto para chegar ao Teatro Goiânia e nos cinemas, tinha que obrigatoriamente passar pela Avenida Goiás, então era marcante. A Eliane é filha de Maricota e neta de Clementina, a matriarca da família. Então, até mesmo os filhos que moravam no interior do estado iam para casa dela todos os finais de semana para ir à missa e almoçar.
Página 235Alguns elementos se repetiram em vários trechos das entrevistas. A primeira geração falou muito sobre o footing, que era esse vai e vem que a juventude comparecia para flertar; falaram muito sobre a Brasserie Bandeirante, que era a sorveteria da época. E na entrevista com Joaquim, o único homem entrevistado, surgiu o bar Royal, que era onde os rapazes da época ficavam tomando cerveja.
Outras coisas que apareceram de uma forma muito forte foram os desfiles militares e as paradas cívicas, atividades das quais os representantes da segunda geração mais assistiram do que participaram. A primeira geração participou ativamente, porque estudavam em escolas e os desfiles e as paradas cívicas aconteciam na região da Avenida Goiás. A feira Hippie também foi muito citada pelas duas gerações; ela existe até hoje, perdeu seu caráter artesanal, mas sobrevive na Praça do Trabalhador. Essa feira começou na Praça Cívica e passou grande parte do tempo na Avenida Goiás. A segunda geração que viveu isso diz que lá tinha artesanato e que era promovida por “hippies de verdade”.
Uma coisa fantástica que encontrei nas narrativas foi a vista da rodovia quando se olhava para Goiânia. Eliane via o que chamava de “bolo de noiva”, que eram os primeiros prédios da Avenida Goiás e da cidade com mais de cinco pavimentos. Ela disse que vindo da cidade de Trindade para Goiânia via um “bolinho de noiva”. Dessa forma, podemos notar a verticalização da paisagem da Avenida Goiás nas narrativas e a metamorfose da paisagem. As pessoas entrevistadas falam sobre o cenário que puderam vivenciar, falam sobre as modificações nos canteiros centrais da avenida, na diminuição do tamanho da via para a implantação de corredores de ônibus e de outros elementos que foram se modificando no decorrer do tempo.
Com essas narrativas, podemos perceber que há uma memória compartilhada da Avenida Goiás que está presente nas vozes desse grupo familiar, que por meio das recordações individuais nos permitiram conhecer as paisagens, os espaços e suas práticas, que foram elaborados na Avenida Goiás entre os anos de 1950 e 1990. Essas pessoas acompanharam tanto as mudanças das paisagens, do espaço físico, quanto das apropriações das práticas socioculturais que ocorreram na avenida.
Antes de falar do desdobramento da patrimonialização, falarei um pouco sobre como o patrimônio aparece nessas narrativas memoriais. Alguns dos elementos que foram incluídos no processo de tombamento, como o Grande Hotel e a Torre do Relógio, aparecem nas narrativas memoriais, mas não por ocasião de festas ou eventos. Quando li memórias publicadas de fundadores da cidade e de pessoas consideradas importantes para a história de Goiânia, grandes festas no Grande Hotel eram frequentemente mencionadas, mas percebi que somente uma elite esteve presente. Já nas narrativas coletadas na pesquisa, as calçadas do Grande Hotel aparecem como o local de lazer e passeio.
Quanto à Torre do Relógio, por sua própria função, ela aparece como o lugar em que se marcava o horário para se encontrar. As edificações aparecem em relação ao seu uso, não necessariamente vinculadas à sua forma arquitetural ou seus significados. Já o Coreto era usado para as bandas de música se apresentarem e até mesmo para discursos políticos. Assim, pude perceber a forma como o patrimônio se relaciona com essas narrativas do cotidiano.
Página 236Um dos desdobramentos do processo de tombamento foi a requalificação paisagística da Avenida Goiás e a execução parcial do projeto Cara Limpa, que tinha como objetivo ressaltar os prédios de orientação Art Déco por meio de utilização de cores específicas. Enfim, para concluir, a memória patrimonial nos revela nuances dos primeiros tempos da cidade, a ideologia dos seus idealizadores e de seus construtores.
Já as narrativas memoriais cotidianas nos permitiram acessar cicatrizes da Avenida Goiás, sua historicidade e suas contradições. Essas testemunhas nos indicam que, para além das formas físicas, existe um espaço que foi praticado e apropriado de acordo com os arranjos socioculturais de cada época. Tentamos nesse trabalho demonstrar as dimensões temporais da Avenida Goiás, as normas e cotidianos foram abordados, projetos do passado e do presente mudaram a morfologia e a dinâmica urbana do lugar. O futuro da paisagem da Avenida Goiás será determinado pela escolhas do presente. Essas modificações serão realizadas pelo poder público, conforme os seus próprios interesses e os do mercado. Cabe à sociedade civil se organizar para reivindicar e promover a execução de projetos que lhe sejam úteis, relevantes para melhorar as condições de vida e garantir o acesso aos espaços da cidade, principalmente aqueles que fazem parte de uma memória social coletiva.
Temos que observar a questão da rua, do espaço urbano, como parte da vida cotidiana. Se a sociedade civil não se organizar e reivindicar seus locais de memória, o poder público vai continuar decidindo por si. Podemos perceber aqui a importância das políticas patrimoniais, principalmente nesse momento de reconstrução da cidade que estamos vivendo, que do dia para a noite prédios históricos em Goiânia são destruídos para darem lugar a comércios e estacionamentos. O tombamento serviu para conservar essa nuance do passado do município, mas devemos prestar atenção nos objetos patrimoniais e nos valores que eles possuem do ponto de vista da população. O alerta que fica é sobre a questão dos guardiões da nossa memória e de uma memória que por muitas vezes não é registrada; outra abordagem e outro ponto de vista sobre as histórias oficiais das cidades.
Goiânia tem 81 anos. Os nossos idosos que viram essa cidade, suas práticas, o que acontecia nos primeiros tempos já estão falecendo. Durante a minha pesquisa, três dos meus entrevistados, representantes da terceira geração, faleceram antes da conclusão do trabalho. Se eu não tivesse feito as entrevistas antes eu não teria esses dados aqui hoje, não da forma em que apareceram. Então, deixo essa observação para os estudantes e curiosos das histórias das cidades, busquem suas testemunhas, façam logo o registro de suas narrativas. Escutem as histórias de seus idosos, pois essas vozes podem ser caladas a qualquer momento.
Referências
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 7. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CARMO, Danielle do. Memória e patrimônio no espaço urbano: a Avenida Goiás em Goiânia. 2014. Dissertação Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural)–Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2014.
PRATS, Llorenç. El concepto de patrimônio cultural. Política y Sociedad, n. 27, p. 63-76, 1998.