Artigo 6) As ceramistas Karajá e o registro de suas ritxoko: relatos e experiências de pesquisa
Questionamentos
Michelle, você poderia falar sobre o seu cronograma de pesquisa?
A pesquisa foi realizada em dois anos. Como havia dito anteriormente, além da elaboração do projeto final para a submissão ao comitê de ética, realizei um levantamento bibliográfico sobre os instrumentos legais que regulamentam a legislação sobre patrimônio. Então a pesquisa foi dividida em quatro momentos: levantamento bibliográfico; análise da documentação que subsidiou o processo de registro das ritxoko como patrimônio cultural; etnografia itinerante, acompanhando o trânsito das ceramistas fora da aldeia e, por último, a elaboração de um quadro interpretativo para análise dos discursos e redação da dissertação.
Você relatou que as mulheres Karajá compreendem o que é o patrimônio cultural, sobre como elas se vêem. O que significa o registro das bonecas? O que você pode nos apresentar sobre o resultado encontrado?
Durante a pesquisa, pude conversar de modo mais formal com um grupo de 12 ceramistas e boa parte delas fez parte da pesquisa que subsidiou o processo de registro das ritxoko. Para algumas destas mulheres, principalmente para as mais jovens, o registro das bonecas como patrimônio cultural brasileiro parece ser visto como uma ferramenta para fomentar o comércio das bonecas: ampliar os pontos de venda, criar associações, divulgar o trabalho com a cerâmica, entre outras questões ligadas a circulação das bonecas. Ainda que para elas haja uma preocupação com a permanência do ofício, com a transmissão dos saberes e técnicas associados à boneca para as gerações mais jovens, percebi que houve uma expectativa em relação ao aumento da comercialização das bonecas e que algumas delas se sentiam frustradas em relação a isso. Mas isso em relação às ceramistas de Santa Isabel do Morro, especificamente as que não possuem “prestígio social” em relação a outras. Agora, para as ceramistas mestras não há tanta preocupação com a garantia de sustento. Para elas, o registro veio conferir uma forma ainda maior de empoderamento. Então elas têm uma compreensão institucional do que seja patrimônio e se apropriam desse discurso de patrimonização até pra poder divulgar o trabalho, mas também fazem uma releitura desse discurso a partir do que elas próprias compreendem como patrimônio. Então, às vezes, estava conversando com uma ceramista ou com uma filha de ceramista e elas falavam que o maior patrimônio era a família, as redes familiares e a sua centralidade no contexto social Karajá, apesar de você ter a boneca, o objeto em si e o conhecimento a ele associado. Muitas delas falavam sobre a importância da família para criação, recriação, reinvenção e permanência da continuidade dos elementos culturais. Então havia ceramistas que se apropriavam do registro para conquistar prestígio político e social. Mas, por outro lado, havia ceramista que já ocupava uma posição de status tanto dentro, quanto fora da aldeia e que o registro pareceu realçar ainda mais essa sua posição de destaque. Então pude perceber que essas mulheres tinham diferentes formas de organização em função da confecção das bonecas, conforme sua organização dentro das redes familiares e também de acordo com o seu local de origem.
Você falou de uma disputa entre as ceramistas. Não entendi muito bem essa disputa.
Eu dizia para vocês que as mulheres formam redes de fortalecimento, inclusive da prática de cerâmica, mas que é uma característica do povo Karajá. Eles se organizam socialmente em famílias extensas, que geralmente moram desde os avós até os netinhos. E tem famílias que são consideradas aliadas, possuem certas afinidades. E tem famílias que já não são, digamos, aliadas; e isso assim, numa mesma aldeia. Então, há relações de conflitos e de disputas não só pela liderança, mas pelo território Karajá, que são tratadas em várias etnografias do povo Karajá desde os primeiros registros que a gente tem sobre eles. Isso também se reflete na forma como essas mulheres se organizam em relação à produção cerâmica. Você tem, por exemplo, as famílias que são tradicionais na arte da confecção da cerâmica e elas não necessariamente são aliadas.
Como você enxergou o impacto da questão financeira no comportamento e nas relações intrafamiliares das ceramistas, considerando que após o registro houve uma busca maior pelas bonecas?
Percebi que, depois da maior divulgação das bonecas, algumas mulheres, as quais tive a felicidade de acompanhar durante a pesquisa, conseguiram trazer pra casa e pra família extensa alguns benefícios que, até então, não tinham muito acesso. Não digo só em relação à venda, mas também em relação à visibilidade da família fora da aldeia. Tinha algumas ceramistas que faziam sozinhas, mas depois que os maridos ou genros perceberam que as bonecas estavam rendendo para essas mulheres, além de outras questões próprias da sociedade Karajá, de ordem financeira, eles começaram a incentivar, a motivar. Elas sempre traziam e vendiam essas bonecas, mas o processo deu visibilidade para algumas delas. Então, você tem que observar inclusive a questão dos homens nas famílias, para que essas mulheres continuem fazendo as bonecas. Porque é algo que vem em benefício financeiro da família como um todo, que é gerado para a família toda. Essa forma de renda, que é gerada dentro da família, fica para a família e é tudo dividido para o povo que está na casa. Essas mulheres passaram a adquirir coisas para a casa que, até então, não tinham tanta possibilidade para adquirir. A maioria delas fala que com a venda dessas bonecas passaram a comprar coisas para a casa, como mantimentos, roupas, eletrodomésticos e outras coisas que achavam interessantes para ter no dia a dia e que, às vezes, tinham mais dificuldade para conseguir. Elas conseguiram juntar esse dinheiro e as bonecas são usadas nesse sentido. Você tem essa percepção também por parte dos companheiros, dos mestres, dos genros, que as bonecas são importantes. E, além disso, há um outro enfoque, o do prestígio social da família que representam. Se uma ceramista vai fazer uma palestra fora, ela vai falar sempre da família dela, vai fazer menção da sua atividade citando alguém que lhe ensinou, que veio antes; uma pessoa que tinha todo o conhecimento e que foi compartilhado. E, se ela tem hoje esse conhecimento é por causa de fulano, fulano e fulano. Tem sempre uma formação dentro das famílias voltada para pensar as gerações. A família de fulana de tal, que esta aparecendo e tendo este prestígio, tem esse ganho também.
Você colocou a importância da mulher, mas não deixou claro qual a sua relação no cotidiano além da função de ceramistas.
Página 219As mulheres exercem diversas funções dentro da sociedade Karajá. E claro que é uma sociedade que tem uma marcação de gênero, com atribuições tipicamente masculinas e outras femininas. Muitas dessas mulheres acabam transgredindo e conseguem inovar até essa questão do que seria um papel de mulher e um de homem. Além de ceramistas e de conhecerem outras artes de domínio do povo Karajá, elas também têm um conhecimento que está associado à narrativa, a aquilo que é mais importante para o povo Karajá, aquilo que tem de mais rico que é a narrativa e o conhecimento de como que são organizadas essas redes, as peças e a metodologia. Elas representam nessas bonecas o cosmológico e os seres de elemento cultural. Falamos de uma forma de tentar mostrar que essas bonecas não são do cotidiano, mas são de momentos específicos de festividades da religiosidade Karajá, digamos assim, e que elas têm esse poder, detém esse conhecimento. Acaba que não fica só, por exemplo, no chefe ritual saber o que é uma Aruanã, porque as mulheres não só sabem, mas elas modelam o Aruanã. Inclusive trouxe uma bonequinha nos slides, que é justamente esse conhecimento do cosmos, da intelectualidade, de uma filosofia e de uma religiosidade do povo Karajá que elas têm. Elas exercem esse papel de ceramista, de artesã, seja dentro da cerâmica ou de outra arte que seja. A maioria delas faz inúmeras outras coisas, não só boneca, mas também, tem um papel de socialização e de educação. Geralmente, quando as mulheres têm filhos e elas normalmente os têm muito jovens, quem fica responsável por cuidar e criar eles são as avós. As crianças crescem sendo cuidadas pelas avós e tias. E elas vão ensinar as informações e socializar essas crianças nesse contexto Karajá. E aí, por exemplo, você tem um menino, que quando tiver por volta de uns oito anos de idade, entrando na puberdade, passa a ir para a casa dos homens que é impedido às mulheres. Mas eles já têm um conhecimento desse universo Karajá por meio do ensino da avó e da tia. E, da mesma forma, as meninas, então as mulheres, de certa forma, são as primeiras educadoras. Além de ter esse papel fundamental no seio familiar e, também, como ceramistas, por serem desenvolvedoras dessa atividade, elas também têm uma questão pedagógica que está ligada a boneca e ao papel dela enquanto mulher. As mulheres envolvem essa questão de educadora, de pedagoga, de serem elas as responsáveis por passar aquilo, as impressões que são mais importantes, mais profundas e mais fortalecedoras para o povo Karajá, para as crianças. As crianças ficam muito com as mulheres, as mais pequenininhas, e, além disso, tem um trânsito, porque disse que as mulheres não necessariamente ocupam esses papéis. Socialmente você tem um tipo ideal que seria uma mulher Karajá boa ceramista. Mas elas transgridem. Tem várias mulheres que pilotam o barco, pega a lenha, faz todo o serviço que seria do homem. Elas também exercem o papel masculino. As mulheres têm uma complexidade de ações. O que é bem interessante e rico, porque você tem o que é tradicional e o que é inovador sempre caminhando juntos. É sempre uma recriação e elas vão inovando sempre, sempre, sempre é interessante.
Fora a coleta da matéria-prima como é a participação dos homens nesse processo? O que eles acham dessa tradição?
Página 220No começo do processo da pesquisa, por exemplo, a comunidade, é claro, faz a solicitação do processo de registro, mas alguns homens se mostraram muito resistentes à pesquisa com as bonecas, alegando que existem outros elementos culturais do povo Karajá que são tão representativos quanto. Só que a questão que está por trás disso também não é só não uma representatividade da boneca em si. Porque realmente a boneca é extremamente representativa, tanto é que a maioria dos homens fez questão de apoiar o registro e fez a solicitação do registro. Mas, por outro lado, algumas pessoas tinham maior resistência porque começaram a perceber que as mulheres conquistaram maior espaço pra falar, inclusive. Como em qualquer outra comunidade, tem gente que se mostra mais resistente a esse maior empoderamento feminino, que incomodava algumas pessoas. O fato de você fazer uma reunião e mulheres colocarem as coisas numa pauta, em sentir e falar as suas opiniões, isso, para algumas pessoas mais conservadoras, trazia algum desconforto, mas, de um modo geral, a maioria dos homens não só apoia, mas como também faz questão de ajudar na produção ou na pesquisa de outros locais que possam ter matéria-prima representativa. Eles estão sempre juntos, inclusive os filhos com as mães e sogras, mais a sogra do que a mãe, porque ele acaba indo morar com a sogra, que é sua prioridade, e tem uma maior proximidade e interação por conta desse fazer da cerâmica. E dos benefícios que, de alguma forma, ela trouxe para a comunidade Karajá. Inclusive, ela reforça o prestígio social masculino também porque vai pra fora, tem toda uma questão de um diálogo com a comunidade, que também contempla as lideranças que, na maioria, são masculinas – cacique e chefes. Por outro lado, tem mulheres que se sentem motivadas por meio desse processo de pesquisa e que agora também começam a ocupar postos de poder. Nessa reunião que mencionei, que ocorreu em São Felix, era para definir as primeiras das ações de salvaguarda e tinha já uma primeira mulher que era cacique. Achei isso incrível, porque tinha mulher que era xamã e, geralmente, xamã era uma posição importante e ritual e que é desempenhada pelos homens, normalmente. Tinha essa inovação, essa abertura também para essas mulheres de serem xamã.
O registro de patrimônio agregou maior valor comercial de venda para essas mulheres? Acho que, de certa forma, você respondeu um pouco quando falou, por exemplo, que algumas vendiam a 30 reais e aumentaram para 50 reais ao perceber isso.
Sim, algumas mulheres fizeram e fazem o uso dessa linguagem da patrimonização para falar porque que a boneca dela vale mais, por exemplo, às vezes você chega em Aruanã e vai falar com a ceramista e aí ela esta vendendo a boneca por um preço um pouco mais alto, mas ela faz questão de falar: “olha esse aqui e um elemento identitário, ela foi patrimonializada, é reconhecida”. Eles fazem uso dessa linguagem institucional para vender a boneca. Não é o caso de toda ceramista, mas algumas delas utilizam esse recurso para agregar maior valor monetário a essas bonecas. Inclusive não só as mulheres, mas, também, as pessoas que atravessam as peças e que as vendem extremamente mais caro.
Quando nos envolvemos numa pesquisa, ficamos envolvidos pelo trabalho e, algumas vezes, não nos preocupamos com o legado que deixaremos ou objeto de pesquisa. Na sua opinião, qual a contribuição que você deixou ao povo karajá?
Durante a pesquisa eu ficava o tempo inteiro pensando nisso, porque além das cópias das coisas e dos produtos que a gente faz e que são frutos da pesquisa, acho que algo a mais tinha que ficar, até para ser algo recíproco. Conversava com as mulheres e numa dessas conversas perguntava sobre a expectativa que elas tinham em relação a minha pessoa. Obtive algumas respostas interessantes. Algumas mulheres me ajudaram muito como tradutoras, como interpretes. E elas falavam: “olha, Michelle, nós, como ceramista e mulher, temos valorizado muito a presença de pesquisadores aqui. Porque é uma forma da gente estabelecer novas redes, pensar alternativas, inclusive, para a questão do comércio das bonecas, dos atravessadores que é algo que precisamos resolver. E também tem a visibilidade e o prestígio. Estou te dando esta boneca porque sei que você vai levar e vai colocar no museu e a minha família vai ter visibilidade, por meio dessa boneca que você colocou no museu”.
Fiquei super surpresa, porque é uma atitude extremamente interessante. E claro que eles sabem que não estou lá à toa e também sei que tenho um compromisso que vai além da devolução do trabalho fazemos, mas também de pensar coisas novas e juntas. Tem pesquisador que fez o trabalho também na faculdade e que está desenvolvendo o projeto junto com a comunidade e futuramente pretendo fazer algo em parceria também em relação às bonecas, que seja oficinas, alguma programação ou outra ação que a gente consiga intensificar ainda mais essa relação de compartilhamento de troca. Os Karajás sempre tiveram essa relação com o museu antropológico, de estar em constante diálogo. Acho que são coisas que podemos pensar juntos. Várias mulheres têm ideias e tem a salvaguarda que está chegando. O plano de salvaguarda da boneca vai iniciar esse ano, então são questões pra pensar e sigo nessa junto porque tenho pensando em como eu posso, de alguma forma, contribuir de maneira mais efetiva com a comunidade e, principalmente, com as mulheres Karajá.
De acordo com o que você relata sobre todo esse conhecimento das bonecas, da representação social, na sua visão, em relação às ceramistas você percebe ou pode perceber durante suas pesquisas se as mulheres indígenas conseguiram sua autonomia no mercado de trabalho ou de seus casamentos?
Página 222Falar de autonomia é sempre complicado, porque vamos falar da nossa forma de sociedade. Eu tinha essa questão dentro de mim e ficava angustiada porque a mulher era sempre colocada como secundária. Mas nessa pesquisa pude perceber um pouco que as mulheres têm uma forma de atuação que são equivalentes às questões masculinas, arriscaria dizer. Têm mulheres que são cacique agora, que está começando a ocupar cargos que são considerados só masculinos, mas também têm relatos de mulheres que tinham igual poder. É uma questão complexa. De fato, o registro das bonecas trouxe sim um maior empoderamento, principalmente para as mulheres que já eram consideradas grandes ceramistas. Em termos de venda de valor dessa boneca, uma mulher que é considerada uma exímia ceramista, teve seu trabalho mais valorizado no mercado. Não posso falar que seja um mercado de trabalho, que a boneca, apesar de ser comercializada, ela não tem um apelo tão exagerado nesse sentido pra venda, só tem uma questão do aprendizado. As meninas continuam brincando com as bonequinhas, porque as mulheres continuam fazendo as bonecas. Elas fazem para as crianças, mas, também, elas fazem para vender e não necessariamente elas vendem. Não são todas que vendem as bonecas, tem mulher que faz para trocar com outras coisas, porque a boneca, além desse valor de mercado, desse valor em dinheiro de papel moeda, pode ser usada como objeto de troca nas aldeias. A boneca é moeda de troca por outras matérias-primas, elementos ou por objetos de outras aldeias. Se uma aldeia tem mel e estou precisando de mel, então vou fazer a boneca e a troco pelo mel. Tem toda essa questão e elas são extremamente criativas nesse processo de troca. Isso já existia sabe, então o processo de registro fomentou sim a venda, não tem como falar que não, mas não necessariamente para todas as mulheres da mesma forma, são maneiras diferentes, são experiências diferentes, independente da ceramista, da rede de pesquisa.