Artigo 6) As ceramistas Karajá e o registro de suas ritxoko: relatos e experiências de pesquisa
Parte 1
Através das bonecas Karajás as mulheres conseguem representar situações do cotidiano, bem como da cosmologia de seu povo. Assim, elas representam as faixas etárias, o nascimento, a morte e os afazeres do dia a dia, que envolvem a comunidade. Exploram, por meio da modelagem, cenas que retratam o trabalho familiar, o cuidado com as crianças, a produção do alimento, a caça, a pesca, bem como inúmeras atividades que são realizadas dentro e fora das aldeias. Além disso, elas também modelam figuras que fazem parte do imaginário Iny/Karajá, como seres lendários presentes nas narrativas orais e nos rituais e demais festas celebrativas.
A confecção das bonecas envolve assim situações que vão desde o aprendizado e conhecimento do social, uma vez que as crianças, em especial as meninas, aprendem a modelagem ao observar e a brincar com as bonequinhas, desde questões que dizem respeito à sustentabilidade e à subsistência, uma vez que essas bonecas, assim como outros artesanatos produzidos pelos Karajá, também são comercializadas. As bonecas são assim uma referência para o aprendizado, bem como um instrumento para o fortalecimento identitário do povo Karajá, uma vez que transitam dentro e fora das aldeias, ocupando inclusive lugares em espaços acadêmicos, museus, lojas de artesanato, que, de certo modo, propagam e dão visibilidade às ceramistas e seu povo.
Quando me refiro à visibilidade que o trânsito físico e comercial confere especialmente as ceramistas é porque o fazer das bonecas é uma prática associada ao feminino, é uma atividade essencialmente atribuída às mulheres. Ainda quando meninas, elas são presenteadas por suas avós, mães ou tias, recebendo cestinhas feitas de palha contendo um conjunto de pequenas bonequinhas que representam a família. E brincando com os conjuntinhos de bonecas que recebem, elas vão aprendendo elementos socioculturais que lhes servem de referência para a sua formação e que despertam também o interesse para a modelagem das ritxoko, caso queiram dar continuidade ao ofício de suas avós, mães e tias.
Durante a pesquisa, percebi que, além da questão do aprendizado e também da comercialização das bonecas, outras questões motivam a modelagem das bonecas, e que algumas delas ganharam mais força após o registro. O fazer ritxoko confere às mulheres, em especial às ceramistas consagradas mestras, dentro e fora das aldeias, certo prestígio social, que engloba também a família da qual fazem parte. Assim, uma jovem aprendiz goza de maior prestígio social, sendo pertencente a uma rede de ceramistas reconhecidas, ainda que seu trabalho não tenha a mesma qualidade técnica de uma ceramista mais experiente. Fazer parte de uma rede familiar de ceramistas reconhecidas gera certa facilidade, inclusive em termos de comercialização. Por outro lado, as ceramistas que não participam de tal rede, ou que não gozam do mesmo prestígio, acabam recorrendo a outras estratégias para apresentar o seu trabalho e assim motivar as jovens aprendizes de sua família a dar continuidade ao ofício. Enquanto algumas ceramistas recebem a visita de representantes institucionais e de turistas em sua residência, outras ceramistas necessitam se deslocar para apresentar o seu trabalho e falar sobre o seu ofício.
Página 216No caso das ceramistas de Santa Isabel do Morro, por exemplo, o deslocamento para São Félix do Araguaia é uma prática comum, especialmente quando se trata de grupos ou redes familiares de ceramistas que não possuem a mesma visibilidade social em relação às ceramistas “consagradas”. Na temporada de praia elas se reúnem para fretar o translado até São Félix do Araguaia, ocupando as calçadas da Avenida Araguaia para a venda de seu artesanato. Organizam-se em pequenos grupos, onde, geralmente, uma das mulheres fica responsável pela comunicação com o turista, uma vez que nem todas se sentem a vontade para se comunicar em língua portuguesa. Além de falarem sobre a importância das bonecas, também percebi na fala de algumas delas a menção ao registro como patrimônio cultural para o convencimento do turista.
No caso das ceramistas de Buridina, na cidade de Aruanã, pude observar outra realidade em relação às práticas de transmissão do ofício de ceramista, bem como da circulação e comércio das ritxoko. Diferente de Santa Isabel do Morro, Buridina é uma aldeia considerada urbana. A cidade de Aruanã cresceu de tal modo que se confunde com o próprio espaço da aldeia. É comum o trânsito de turistas e há associações específicas organizadas pelo cacique e pelas mulheres para a venda do artesanato. Ao conversar com uma das representantes das associações de mulheres que trabalham com a modelagem das ritxoko, pude perceber uma preocupação com o resgate da tradição, no sentido de se realizar um resgate dos locais onde eram coletadas as matérias-primas, bem como o resgate das narrativas orais e da língua materna. Também há uma maior apropriação da fala institucional sobre patrimônio imaterial, resinificada durante o discurso das ceramistas, principalmente em ocasiões em que elas são convidadas a realizar oficinas e palestras fora das aldeias.
Bem, há muito o que dizer sobre a pesquisa, mas o que gostaria de destacar, diante desta oportunidade de fala, é o empoderamento e fortalecimento das mulheres Karajá, que iniciou antes mesmo do registro. Durante a realização da pesquisa e antes mesmo dela, outras protagonistas nasceram dentre o povo Karajá. Mulheres experientes, outras ainda jovens, que passaram a ocupar um espaço de destaque, de representatividade diante de seu povo, e que, de certo modo, deram outra interpretação para o que seja patrimônio cultural. Na fala de muitas dessas mulheres, percebia uma interpretação de “patrimônio” que referenciava a família, o coletivo, o social. E muito me marcou a fala de uma das ceramistas ao dizer que “até quando a boneca morria, a gente chorava”. Voltando à ciranda da “interpretação das interpretações”, percebi meu trabalho neste contexto, como um pequeno pontinho de aproximação do olhar das ceramistas, que ao pensarem sobre si, sobre o seu coletivo, faziam/fazem uma conexão entre o que lhes é íntimo, ao familiar, mas também ao que lhes é externo. E o seu “patrimônio” não diz respeito apenas à boneca em si, ao seu registro, mas o ato de se aprender dentro do ambiente familiar, de formar redes de solidariedade, de comunicação, que vão direcionar o seu agir dentro e fora das aldeias. A partir da compreensão do seu mundo cultural, social, elas criam e recriam estratégias para lidar com o que vem de fora, se apropriando do que é mais significativo e que, de certo modo, seja fortalecedor de sua família e de seu grupo como um todo. Bem, gente, há muito que explorar e dizer, mas humildemente procurei apresentar para vocês, aquilo que a experiência de pesquisa me proporcionou de mais significativo: a família como o grande patrimônio Karajá, as articulações familiares bem como as estratégias que essas mulheres criam para garantir a transmissão de saberes e a sua subsistência, além da apropriação do registro como um instrumento de fortalecimento cultural e de empoderamento das ceramistas.