Artigo 5) Bonecas Karajá como Patrimônio Cultural do Brasil: da pesquisa à salvaguarda
As bonecas cerâmicas no universo cultural Karajá
A confecção da boneca Karajá é um processo que demanda muitas etapas de trabalho e é realizado pelas mulheres. Eventualmente recebem colaboração dos homens da família da ceramista, marido, filho, genros, sobrinhos, netos, para algumas tarefas específicas, como a fabricação da cinza que é misturada ao barro como antiplástico na mistura de que é feita a boneca. Ela é um artefato confeccionado em barro através de técnica cerâmica. Quer dizer, depois de modelado, o objeto é submetido à queima para se tornar cerâmica. A seguir, descreveremos em linhas gerais, o processo de confecção da boneca Karajá.
Embora seja realizada em qualquer época do ano, há uma predominância na produção das ritxoko, bonecas de cerâmica, nos meses em que a região experimenta o tempo da seca que ocorre entre os meses de maio a setembro, justamente porque as peças, após serem moldadas, requerem um tempo ao ar livre para secarem antes de serem queimadas em fogueiras que são arranjadas também ao ar livre. Algumas das atividades da fabricação ora são realizadas coletivamente, integrando pequenos grupos de familiares, como a coleta do barro e a comercialização nas ruas e praças públicas, ora são feitas individualmente, como a modelagem, a queima e a pintura.
A primeira atividade realizada pela ceramista é a coleta da argila, às margens do rio Araguaia, depois de criteriosa pesquisa dos lugares de depósito da argila, após o movimento de baixa das águas, na estação seca que sucede às cheias do rio. Nos meses de novembro a março, com o período de chuvas intensas na região, o rio sobe e carrega muitos sedimentos que são depositados em suas margens, após o período chuvoso, formando os barreiros. As ceramistas experientes já conhecem os melhores lugares de depósito do barro e para lá se dirigem com ferramentas como cavadeiras e enxadões para coletar o barro, geralmente carregado em carrinhos de mão para as imediações de suas casas. O barro é geralmente armazenado em tambores ou outros vasilhames de alumínio ou plástico.
Depois de coado em peneiras industriais ou artesanais ⚑, a argila é misturada à água e à cinza, esta última resultante da queima da madeira adená, em português conhecida como cega-machado. Essa mistura é então sovada e separada em pequenas bolas que são a matéria da modelagem das bonecas. À medida que vão sendo modeladas, usando-se apenas as mãos umedecidas de tempo em tempo com água, são colocadas juntas num espaço da casa onde possam secar naturalmente. Quando as peças já estão quase secas, muitas ceramistas finalizam a modelagem usando pequenas facas realizando o que chamam de raspagem. Após raspadas e completamente secas, antes de serem submetidas à queima, as peças são ainda polidas com pedaços de tecido. As ceramistas contam que, no passado, a raspagem também era feita com conchas de uma espécie de caramujo encontrado em lagos da região e para o alisamento se usava uma folha de textura abrasiva de um árvore comum nas proximidades das aldeias.
Esse processo de pré-secagem dura aproximadamente cinco dias, dependendo das condições do tempo.
Depois, as peças são levadas ao fogo e transformadas em peças cerâmicas. As ceramistas denominam esse processo de assar ou queimar as bonecas. Ele é feito em duas fases: numa primeira, as peças são levadas ao fogo, dispostas em cima de pedaços de sucatas de objetos metálicos. Nesta fase, sofrem apenas o calor advindo da fogueira, porque as chamas não as atingem diretamente. Ao final do processo, as peças ficam cobertas de fuligem e adquirem a cor escura. São retiradas cuidadosamente do suporte que as mantêm em cima da fogueira e colocadas, em seguida, diretamente no fogo, em outra fogueira, feita de madeiras especiais. Nessa segunda fase, as peças, escurecidas pela primeira queima, adquirem uma cor clara, por serem submetidas diretamente à alta temperatura. Com isso, os processos de modelagem e queima se completam e as peças estão prontas para, depois de frias, receberem a decoração em pintura.
As ritxoko são decoradas com grafismos próprios da estética Karajá, que são também usados nas pinturas corporais e em outros objetos artesanais como esteiras, potes, colares, adornos de cabelos, etc. As tintas, nas cores preta e vermelha, são produzidas pelas ceramistas que também desenham as peças. Algumas ceramistas mais velhas, que estão com a visão comprometida, demandam jovens de seu grupo familiar para realizarem os grafismos sobre as peças. A tinta preta usada na decoração da cerâmica é produzida com a fuligem do carvão de panelas ou de borracha queimada, misturado com uma seiva extraída da casca de uma planta nativa chamada ixarurinã. A tinta vermelha, por sua vez, é obtida da semente de urucum esmigalhada e misturada, às vezes, com óleo de tucum, uma palmeira da região. Além da reprodução sistemática de padrões de grafismos, que se repetem em vários objetos da exuberante cultura material dos Karajá, as ceramistas também gostam de inovar, misturando aos padrões pequenas intervenções autorais.
As formas de comercialização das bonecas são bastante variadas. Ocorrem através de vendas nas casas especializadas em comércio de artesanato indígena – como a Casa de Cultura Indígena Karajá-Tapirapé, em São Félix do Araguaia, no Mato Grosso e o Centro Cultural Maurehi, em Aruanã, Goiás –; vendas diretas para turistas e interessados, nas ruas e praças públicas, especialmente nas temporadas de pesca no rio Araguaia; vendas diretas nas casas das ceramistas (geralmente advindas de encomendas prévias feitas por colecionadores e comerciantes de artesanato), entre outras modalidades.
O trabalho de confecção e comercialização das bonecas, como pode se depreender da descrição acima, ocupa uma boa parte do tempo das ceramistas Karajá, produz renda para suas famílias, permitindo que as mulheres possam adquirir produtos no comércio varejista das cidades do entorno, como roupas, alimentos industrializados, brinquedos e aparelhos eletrônicos, cada vez mais consumidos pelos Karajá, principalmente pelas gerações mais novas.
Página 207Observando, então, as práticas da confecção de bonecas e de sua circulação nas aldeias e na sua comercialização como objeto artesanal, pudemos perceber a importância desse artefato, pois ele é, ao mesmo tempo, brinquedo de crianças, formas de expressão míticas, cosmológicas e estéticas, representação das relações de trabalho, relações rituais e familiares, artesanato e fonte de renda para as famílias, entre outras coisas. Condensa muitas representações do universo simbólico do grupo e, por isso, desempenha papéis importantes na construção de relações identitárias entre as pessoas do grupo, sobretudo como instrumento de socialização das gerações jovens, além, é claro, de construir e expressar concepções estéticas dos Karajá.
A cerâmica figurativa Karajá inclui representações humanas, figuras sobrenaturais e míticas, bem como representação de animais da fauna regional. Com relação às primeiras, as figuras são muito variadas: vão desde pequenas formas humanas estilizadas, que possuem formas triangulares, que as ceramistas chamam hoje de hakana ritxoko (bonecas antigas), até cenas completas e complexas, em tamanhos variados, que podem incluir a representação de casais se alimentando, mulheres diante de túmulos em choro ritual, caçadas e pescarias, produção oleira feminina, partos, heróis míticos, guerreiros etc. Estas são chamadas de wijina bede ritxoko e se referem às bonecas do tempo atual.
A pesquisa etnográfica, incluindo pesquisa de campo e bibliográfica, empreendida pela equipe do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás pôde então demonstrar a importância cultural e econômica da boneca ritxoko na vida coletiva dos Karajá, o que foi imprescindível para que o Estado brasileiro, por meio do seu órgão gestor de políticas de patrimônio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) concedesse o título de patrimônio cultural imaterial brasileiro à boneca Karajá, através do registro desse bem cultural em dois livros, conforme mencionado acima.