PDCC - Webconferências 2016
 
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Artigo 5) Bonecas Karajá como Patrimônio Cultural do Brasil: da pesquisa à salvaguarda

Considerações preliminares

As bonecas de cerâmica Karajá, chamadas em Inyribè, idioma Karajá, de ritxoko ou ritxoo , foram tornadas patrimônio cultural imaterial brasileiro, através de dois registros: Ritxoko: expressão artística e cosmológica do povo Karajá, no livro das Formas de Expressão, e Saberes e práticas associados ao modo de fazer bonecas Karajá, no livro dos Saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

O povo Karajá habita todo o eixo do rio Araguaia. Sua população se distribui, de Norte a Sul, em partes dos Estados do Pará, Mato Grosso, Tocantins e Goiás, se concentrando principalmente na Ilha do Bananal. Os Karajá são parte do grande grupo Iny, que se subdivide em três subgrupos: os Iny Xambioá que, vivem na região de Conceição do Araguaia (PA); os Iny Javaé, que habitam o rio Javaé, ou braço direito do rio Araguaia (TO) e os Iny Karajá, propriamente ditos, que se situam na Ilha do Bananal (TO) e nos Estados de Mato Grosso e Goiás. O povo Iny pertence ao tronco linguístico macro-Jê e à família linguística Karajá ou Inyribé. Os Iny Karajá, propriamente ditos, vivem em mais de 20 aldeias e somam uma população de aproximadamente 3 mil pessoas.

A pesquisa Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia, que deu origem ao reconhecimento nacional acima mencionado, foi realizada com o objetivo de produzir informações etnográficas para compor a documentação referente ao processo de registro, por uma equipe do Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás. No presente texto faremos um relato da pesquisa e de alguns dos seus desdobramentos, principalmente do projeto Bonecas Karajá como patrimônio cultural do Brasil: contribuições para a sua salvaguarda, em fase inicial também no Museu Antropológico sob a coordenação das autoras.

Esta comunicação foi originalmente proferida nos Ciclos de Webconferências, realizados pela parceria do curso de Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania da Universidade Federal de Goiás com o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais, Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza. A conferência teve a finalidade de relatar como se deu a pesquisa que subsidiou o processo de registro das ritxoko, seus objetivos e metodologias, bem como seus desdobramentos atuais, de modo a contribuir para a compreensão da implantação de políticas públicas voltadas para o patrimônio cultural no Brasil.

De início, o projeto foi elaborado pelo/as pesquisadore/as e, em seguida, discutido e avaliado com as comunidades Karajá de Buridina e Bdè-Burè, de Aruanã, Goiás e de Santa Isabel do Morro, JK, Wataú e Werebia, da Ilha do Bananal, Tocantins. Foram feitas reuniões com caciques, lideranças locais e ceramistas destas localidades com o intuito de criar campos de interlocução com as populações envolvidas, bem como de obter anuências das comunidades para, em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), encaminhar o pedido de registro da boneca Karajá como patrimônio cultural brasileiro e colaborar para a produção de conhecimentos sobre o bem cultural a ser registrado e o contexto sociocultural e histórico de seus produtores, bem como com os trâmites institucionais do processo.

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A cada reunião que acontecia nas aldeias íamos compreendendo a necessidade de estreitar as relações com as lideranças e com as ceramistas, a fim de alcançarmos os objetivos que traçamos para o projeto, discutindo e avaliando os impasses que iam surgindo ao longo do percurso de pesquisa. O propósito de trabalhar em conjunto com as comunidades Karajá não nos abandonou em nenhum momento. No decorrer dos três anos de duração da pesquisa, o esforço cotidiano era de fazer com que o projeto de pesquisa fosse assumido em parceria procurando estabelecer relações as mais simétricas possíveis entre o/as pesquisadore/as e os Karajá. Buscávamos produzir informações científicas – etnográficas – sobre a boneca de cerâmica e, para isso, intensificávamos o estudo in loco sobre os modos de fazer a cerâmica e cotejávamos análises e interpretações documentais do acervo de bonecas do Museu Antropológico com a bibliografia pertinente e seus múltiplos e atuais significados e usos.

O projeto, que demandava muitas viagens de campo, tanto no Estado de Goiás como no Mato Grosso e Tocantins, teve o financiamento de duas instituições: a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por meio da Superintendência de Goiás. As viagens para São Félix do Araguaia, distante mais de mil quilômetros de Goiânia, eram realizadas por via aérea e as para Aruanã, a 314 quilômetros de distância, eram feitas em veículos cedidos pela Universidade Federal de Goiás. Geralmente fazíamos três viagens por semestre e ficávamos nas aldeias entre uma semana a dez dias, observando as mulheres ceramistas confeccionar a boneca e, através desse processo, buscando entender como operava a transmissão dos modos de fazer a boneca cerâmica, ao mesmo tempo em que se dava a transmissão e a construção-atualização de valores, crenças e modos de ver o mundo.

Os três anos de pesquisa realizada nas aldeias Karajá permitiram à equipe de antropólogo/as obter um conjunto expressivo de conhecimento sobre as motivações, as técnicas e métodos de confecção das bonecas, bem como o lugar significativo que as bonecas ocupam na cultura Karajá, como objetos-representação marcadores de gênero e de ciclos de idade; como expressão de adornos e estética corporal; como materialização de mitos e lendas da cosmologia Iny, entre outras coisas. Esse conhecimento está registrado num acervo textual – relatórios técnicos e dossiê descritivo do modo de fazer bonecas Karajá – e imagético – registros fotográficos e um filme documentário Ritxoko, editado em língua Inyribè, português e inglês.

Tradicionalmente, a boneca é feita para ser um brinquedo das crianças Karajá. No entanto, a intensificação dos contatos dos Karajá com a sociedade nacional agregou novas utilidades àquele artefato: a boneca passou a ser vendida para não indígenas interessados em torná-la objeto de decoração. A comercialização das bonecas, agora como artesanato indígena, juntamente com outros objetos produzidos pelos Karajá, passou a gerar renda para as famílias Karajá, especialmente para as mulheres ceramistas detentoras da tecnologia oleira Karajá. Falaremos disso mais adiante, na próxima seção.