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Artigo 5) Bonecas Karajá como Patrimônio Cultural do Brasil: da pesquisa à salvaguarda

Da pesquisa à salvaguarda

As ações de salvaguarda voltadas para o patrimônio cultural imaterial no Brasil são um conjunto difuso de ações empreendidas pelo IPHAN em parceria com outras instituições e com as comunidades detentoras dos bens registrados, voltadas para a proteção, continuidade e reprodução desses bens culturais. O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) foi criado pelo IPHAN, em 2000, através do seu Departamento de Patrimônio Imaterial que dá início a uma política direcionada para o fortalecimento do patrimônio cultural brasileiro, com o objetivo de valorizar e dar visibilidade aos aspectos imateriais da cultura, considerando, sobretudo, as manifestações culturais de povos indígenas, quilombolas, e de outros segmentos da população brasileira. Os pedidos de registro passam pela avaliação técnica de equipes do IPHAN e do seu Conselho Consultivo, as quais precisam ter acesso a um conjunto de informações sobre o bem cultural a ser registrado permitindo que aquele bem possa ser avaliado e compreendido com algo significativo, ou não, para o povo que o produz e, portanto, merecedor, ou não, desse reconhecimento público.

O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) foi criado pelo Decreto nº. 3.551, de 4 de agosto de 2000, tendo como objetivo promover a identificação, o reconhecimento e a salvaguarda da dimensão imaterial do patrimônio cultural brasileiro, visando também a proteção dos direitos difusos ou coletivos relativos à preservação desse patrimônio. Conforme divulgado na sua homepage “...Trata-se de um programa de apoio e fomento que busca estabelecer parcerias com instituições dos governos federal, estaduais e municipais, universidades, organizações não governamentais, agências de desenvolvimento e organizações privadas ligadas à cultura e à pesquisa” para o desenvolvimento de projetos referentes ao patrimônio cultural imaterial brasileiro (www.iphan.gov.br). 

No caso das bonecas Karajá, essa proteção e valorização têm início a partir do momento em que o bem cultural obteve o registro como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Após a deliberação positiva sobre o pedido de registro, seguida da atribuição do título aos Karajá, todas as ceramistas receberam um diploma, cujo valor simbólico é estendido a todo povo Iny, que se vê reconhecido pelo Estado Brasileiro. Posteriormente a entrega do título, as informações etnográficas da pesquisa serão publicadas pelo IPHAN em um Dossiê que se encontra em processo de edição e que será distribuído em nível nacional para as bibliotecas, escolas e outros órgãos públicos, o que faz com que a cultura Karajá seja divulgada nacionalmente, representando já uma ação de proteção desse patrimônio, mesmo antes de terem início as ações de salvaguarda propriamente ditas. Enfim, trata-se de ações que acabam por proteger esse patrimônio, não apenas devido a um reconhecimento formal, mas, principalmente, porque as pessoas envolvidas se veem valorizadas gerando um potencial de empoderamento político dessas comunidades.

O primeiro bem cultural indígena registrado no Brasil foi a arte Kusiwa, pintura corporal e arte gráfica do povo Wajãpi, em 2000. A partir de então uma série de outros bens culturais indígenas e não indígenas tem sido registrada como patrimônio cultural imaterial brasileiro, sendo as bonecas de cerâmica Karajá o vigésimo quinto bem a ser registrado.

Ao conceder o registro às bonecas de cerâmica Karajá como patrimônio cultural do Brasil, o IPHAN assume o compromisso de acompanhar o desenvolvimento do bem registrado, inicialmente por dez anos, apoiando a sua reprodução e a continuidade dos seus modos de fazer e contribuindo para a transmissão dos saberes a ele associados às novas gerações.

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Assim, concluída a pesquisa e garantido o registro das ritxoko como patrimônio cultural imaterial brasileiro, estamos iniciando, em parceria com o IPHAN e com os Karajá, uma nova etapa do processo, que consiste em ações voltadas para a salvaguarda do bem registrado. Esse novo projeto, que se encontra em fase inicial, já não tem a pesquisa como objetivo principal, tratando-se agora de parte de uma política nacional de salvaguarda que será desenvolvida por meio de ações e atividades de extensão universitária, tendo o Museu Antropológico da UFG como órgão executor.

Nosso principal objetivo agora é assessorar os Karajá no referido processo de salvaguarda e, ao mesmo tempo, contribuir para a criação de uma competência entre eles que os permitam lidar com o seu patrimônio cultural de forma cada vez mais autônoma, sendo capazes de propor, elaborar, executar e gerir os seus próprios projetos.

Estamos agora, nesse segundo momento, colaborando com o IPHAN e com os Karajá na fase inicial de uma política pública voltada para a valorização e fortalecimento da boneca de cerâmica Karajá como patrimônio cultural brasileiro. Como representantes da instituição que realizou a pesquisa, fomos convidadas a participar das primeiras reuniões realizadas pelo Departamento de Patrimônio Imaterial/IPHAN para discutir o assunto. Posteriormente, concorremos a um edital de chamamento público com o projeto Bonecas Karajá como patrimônio cultural do Brasil: contribuições para a sua salvaguarda, que foi contemplado com recursos previstos para ações de salvaguarda de bens culturais registrados.

O projeto prevê quatro metas que deverão ser alcançadas no decorrer de dois anos e que deverão contemplar atividades de divulgação; formação de gestores e de documentaristas indígenas; intercâmbio entre as aldeias e fortalecimento e valorização do artesanato tradicional e, finalmente, ações de fortalecimento da língua Inyribè.  As metas foram elaboradas considerando demandas vindas das comunidades Karajá, tendo sido definidas a partir de reuniões, conversas e negociações com essas comunidades e considerando as características de cada uma delas.

A primeira meta está voltada para a divulgação do projeto de salvaguarda e valorização da cultura Karajá entre populações não indígenas que vivem nas imediações do território Karajá. Entre as atividades a serem executadas, está prevista a elaboração e distribuição de material gráfico de divulgação, além de reuniões e palestras com a participação de ceramistas e professores indígenas e envolvendo autoridades públicas, professores e estudantes das cidades vizinhas às aldeias Karajá. Acreditamos que essas ações poderão contribuir para a construção de relações menos assimétricas entre os Karajá e esses outros segmentos da população brasileira, bem como para sensibilização da população não indígena local, ressaltando a importância da cultura Karajá para a diversidade cultural da região.

A segunda meta consiste na formação de gestores de projetos culturais e de documentaristas indígenas. Como já mencionado anteriormente, um dos objetivos do projeto é contribuir para a criação de uma competência e de uma autonomia por parte do povo Karajá, sobretudo dos seus jovens, no sentido de documentar e de administrar o seu patrimônio cultural. Não podemos ter a pretensão de resolver os problemas do povo Karajá no que se refere ao assunto. Além de nos escapar as condições de solucionar esses problemas também comungamos a ideia de que não devemos continuar legitimando uma mentalidade tutelar, que sempre caracterizou a relação do Estado brasileiro com seus povos indígenas, ao longo da nossa história, que parte de pressuposto de que esses povos são incapazes e que, por isso, podemos continuar falando por eles, ou agindo como seus porta-vozes.

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Ao contrário disso, hoje temos uma legislação que formalmente rompe com esse caráter tutelar. Também presenciamos os movimentos indígenas avançando na conquista dos seus direitos, da autonomia e da cidadania de seus povos. No caso dos Karajá, são mais de 20 comunidades bilíngues, em Inyribè e Português, que conta, em geral, com escolas de educação básica onde o ensino ocorre nas duas línguas. A maioria dos professores é nativa e passaram por processos de formação escolar voltados para o magistério indígena, seja de nível médio ou superior. Essas comunidades também contam com uma parcela significativa de jovens com escolaridade e domínio da linguagem escrita em ambas as línguas suficientes para passarem por processo de formação que poderão habilitá-los a atuarem em políticas voltadas para o patrimônio cultural Karajá. Assim, acreditamos que o nosso papel, enquanto pesquisadoras e representando uma instituição universitária pública, é contribuir com a formação de pessoas nessas comunidades para dar continuidade ao processo de salvaguarda das bonecas Karajá e para gestão do seu patrimônio cultural. Assim, ofereceremos dois cursos de formação, sendo um em gestão do patrimônio cultural e o outro de formação de documentaristas indígenas. Ambos terão a duração de seis meses e serão organizados em etapas de aulas teóricas na UFG e aulas práticas a serem realizados nas aldeias Karajá.

Um dos problemas enfrentados pelas instituições públicas responsáveis pelas políticas de patrimônio ao trabalhar com comunidades indígenas é a dificuldade de repassar recursos diretamente para elas. Para isso, seria necessária a existência de associações ou outras entidades funcionando regularmente e aptas a receberem recursos públicos e de pessoas com formação na área de gestão de projetos, o que nem sempre, ou quase nunca, ocorre. As associações indígenas, muitas vezes, se encontram inadimplentes e não funcionam com regularidade. Às vezes conseguem captar recursos, mas não conseguem geri-los adequadamente. Ocorrem casos em que essas comunidades, após serem contempladas com recursos públicos, recebem uma parte dos mesmos, mas não chegam a receber o restante, ou porque suas entidades se encontram em situação irregular ou devido a uma dificuldade técnica na prestação de contas dos referidos projetos. Por isso consideramos de fundamental importância a formação de gestores indígenas em projetos culturais, contemplando também conhecimentos necessários à criação e manutenção de associações, o que consistiria em passos iniciais para que essas comunidades não necessitem, no futuro, de intermediários para receberem recursos públicos.

A terceira meta prevê a realização de oficinas envolvendo ceramistas e outros artesãos e artesãs de todo o território Karajá, promovendo intercâmbios entre essas aldeias e a troca de saberes entre as ceramistas e outros/as artesãos/ãs e especialistas. As comunidades da maioria das aldeias Karajá são ceramistas. Entretanto, algumas são reconhecidas como centros difusores da produção das bonecas de cerâmica, tanto como instrumentos socializadores e representativos da identidade Karajá, como na qualidade de artesanato voltado para a venda. Outras produzem mais objetos utilitários, tais como potes, panelas, bacias e pratos. Existem ainda casos em que são produzidas apenas as bonequinhas que são usadas como brinquedos, mas que não são comercializadas.

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A ideia é fazer com que as ceramistas possam circular entre as aldeias. Provavelmente, muitas mulheres Karajá, ainda que não trabalhem com a cerâmica, conhecem as técnicas de produção da mesma, já que essa prática produz um saber coletivo, ao qual todas têm acesso. Com a realização das oficinas, contando com a participação das ceramistas mestras e outros/as artesãos/ãs especializados/as, essas mulheres serão incentivadas a aprender ou a colocar em prática o saber já adquirido no que se refere à produção das ritxoko, pois além delas serem instrumento de produção e fortalecimento da identidade Iny, também geram renda, o que tem motivado mulheres jovens a se especializarem no ofício de ceramistas, depois que viram o seu bem registrado.  Enfim, os intercâmbios entre as aldeias têm como objetivo formar ceramistas, incentivar as novas gerações no que se refere a aprender o ofício, recuperar técnicas e saberes perdidos e valorizar o artesanato Karajá, inclusive como fonte de renda para as famílias.

A quarta meta será voltada principalmente para a comunidade escolar das aldeias, com o objetivo de fortalecer a língua materna Karajá, o idioma Inyribè, e de incentivar a reflexão sobre o patrimônio cultural Karajá no âmbito das escolas. Para atingir esta meta, pretendemos trabalhar juntamente com os professores e estudantes Karajá por meio de oficinas de produção de material didático bilíngue, em Inyribè e em Português. São basicamente essas as metas do projeto e o nosso compromisso para os próximos dois anos.