Artigo 3) Ações afirmativas no paraíso racial: relações étnico-raciais e educação no Brasil
Parte 3
Na tentativa de alargar o conceito de cidadania definido como direitos e deveres políticos, civis e sociais assegurados e estabelecidos pela Constituição, chamamos a atenção para o fato de que nesses direitos e deveres comuns não estão contidas simbologias e valores que distanciam-se do valor nacional ou de um símbolo nacional. Para efetivar a cidadania é necessário romper com uma compreensão tão homogênea e hegemônica de cidadania. Gersem Baniwa, indígena, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), desenvolve o conceito de cidadania diferenciada, que compreende dimensões de raça, etnia, racismo, etnocentrismo. A cidadania diferenciada é aquela que pressupõe a diversidade cultural e a autonomia, ou seja, a emancipação de povos, como os indígenas que não compartilham desses valores e símbolos nacionais, mas que demandam por autonomia e autodeterminação. A autodeterminação assegura aos grupos não hegemônicos direitos, tais quais: o desenvolvimento de culturas, de línguas, de medicinas, de alimentos, de comidas, de vestiário, de religiosidade.
A cidadania diferenciada, que contempla a autodeterminação, abrange questões de reconhecimento de territórios como espaços étnicos. Com o alargamento do conceito de cidadania, nos aproximamos de uma efetivação de cidadania que prevê o reconhecimento de territórios étnicos e de territórios quilombolas. Desta perspectiva, apresento alguns questionamentos que ajudam a discutir as relações étnico-raciais no Brasil, esse "paraíso racial". O professor Florestan Fernandes destaca nos seus estudos a compreensão de que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito. Essa ideia demonstra como os brasileiros têm dificuldades em perceber o Brasil como um País que discrimina étnico-racialmente. Há uma dificuldade em reconhecer-se como agentes dessas discriminações. Há também atores importantes que devem executar papéis fundamentais nesse cenário das relações étnico-raciais do Brasil. Destaco aqui quatro atores que desenvolvem papéis importantes, capacidade de agência e potencialidade de intervenção em situações de preconceito e de discriminação.
O Estado que deve zelar pela reversão de situações historicamente opressoras de vários segmentos das sociedades, como negros e indígenas. O Brasil vem assinando acordos internacionais desde a década de 1950, nos quais assume a responsabilidade de reverter situações de preconceito e discriminação. Em que medida esse papel do Estado tem sido bem desempenhado, ou, esses acordos assinados pelo País têm sido cumpridos? O País tem promulgado leis, a Lei 10.639, de 2003, que obriga o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de ensino básico, tem sido efetivada? É possível cobrar do Estado mais eficácia no desempenho desse papel? Os indígenas brasileiros têm direito à educação diferenciada por conta de suas especificidades étnicas. O Estado tem assegurado essa educação diferenciada para povos indígenas? A partir do momento em que se pensa sobre o papel do Estado, emerge o segundo ator que é o Movimento Social Organizado.
Tanto o movimento negro, quanto o indígena tem provocado questões instigantes, que passam pelo reconhecimento da diferença e pela reivindicação de agência, tanto do Estado, quanto da sociedade e dos indivíduos. Qual é o papel do movimento social? Ele tem sido um instrumento de pressão ao Estado, para que questões de direito e de cidadania, de direitos culturais sejam assegurados aos sujeitos que foram historicamente alocados em um patamar inferior na sociedade nacional?
Página 193E as instituições têm assegurado equidade, ou têm colaborado para reafirmar lugares de subalternidade e de inferiorização de sujeitos? O professor Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo (USP), concedeu uma entrevista em que destaca que as escolas têm reproduzido, de maneira muito eficaz, situações de racismo. O que realça essa preocupação com o papel que as instituições têm desempenhado. Quando pensamos em racismo inconstitucional, que é aquele racismo reproduzido pelas instituições, como o Estado, a família, a igreja, a escola, nos indagamos sobre a possibilidade de um antirracismo institucional. Ou seja, é possível implementar ações no âmbito das instituições que visem combater preconceitos e discriminações ou as instituições têm se prestado somente a reproduzir situações de preconceito e de discriminação?
E um último ator, que ajuda a pensar sobre questões de reconhecimento e agência, é o próprio sujeito. Assim sendo, entendo que responsabilizar os sujeitos, os indivíduos, também colabora para revelar um agente importante de um racismo camuflado que é experimentado no Brasil. Como um indivíduo pode atuar para se não reverter, se não resolver, pelo menos trazer a tona, dar visibilidade para situações de opressão e de subalternização de outros sujeitos? A mudança de ambientes discriminatórios implica também em uma mudança individual. Obviamente, o Estado é um ator importante, o movimento social também, as instituições são importantes e devem começar a desempenhar bem o seu papel, mas a questão que colocamos agora é como um sujeito pode colaborar para reverter situações de preconceito e de discriminação?
Contribuímos para a efetivação do mérito individual e de direitos, quando assumimos o nosso papel, por exemplo, executando ações afirmativas, que também podem ser de âmbito individual; apoiando uma política pública emancipatória para povos indígenas ou uma ação governamental de inclusão de negros em determinados setores da sociedade. Destacamos que o mérito é uma possibilidade somente em uma sociedade em que o direito e a cidadania prevalecem. Somente em democracias livres podemos perceber méritos individuais. Desta forma, em sociedades nas quais vigora o privilégio, o mérito é uma impossibilidade. O mérito só pode ser medido em condições de igualdade, se os sujeitos partem de lugares diferenciados para concorrer a um mesmo bem escasso, não estamos diante de mérito.
Quando assumimos nosso papel, nos aproximamos também de situações de igualdade. Neste ponto, vale um destaque para o fato de que diferença não é mesmo que desigualdade. A diferença é um fato que deve prevalecer, diferentes todos somos, mas essa diferença não deve ser hierarquizada, não deve colocar sujeitos em segmentos distintos nos quais uns são inferiorizados por conta de sua diferença, seja ela étnico-racial, ou de sexo, ou de sexualidade, ou de idade. Sem o reconhecimento da diferença não é possível o alcance da própria dignidade humana e o que prevalece é a imposição de padrões arbitrariamente consolidados. A dignidade humana é atravessada por questões de reconhecimento da diferença e por questões de agência no âmbito estatal, institucional, no dos movimentos sociais organizados e no individual.
Página 194No que se refere à necessidade de posturas antirracistas, ou à adoção de ações afirmativas, não raras vezes nos deparamos com falácias que devem ser problematizadas. Destacamos aqui três mais recorrentes para que amadureçamos algumas ideias: A primeira falácia é de que as ações afirmativas, ou um direito cultural, destroem o princípio do mérito. Ora, o mérito é uma possibilidade somente em situações de equidade, se não há igualdade de direitos entre indivíduos, não há mérito, há privilégio. Uma segunda falácia é a de que ações afirmativas, ou uma política pública específica, aumentariam os índices de discriminação. Ora, o paraíso racial inexiste, portanto, não há situações de harmonia nas interações étnico-raciais. Ações afirmativas não aumentam índices de discriminação, mas revelam uma discriminação ocultada. E uma terceira falácia é que as ações afirmativas, ou uma postura antirracista, contrariam o princípio de igualdade. Igualdade, de acordo com nosso ordenamento jurídico, é tratar desigualmente aqueles que se desigualam na prática. Em uma sociedade plural e diversificada étnico-racialmente, na qual vigoram o racismo, o etnocentrismo, o machismo, o sexismo, a homofobia, não há situação de igualdade. Esta se realiza pelo reconhecimento da diferença.
A adoção de ações afirmativas faz com que vislumbremos a efetivação de direitos de cidadania. E, em contextos nos quais são adotadas medidas reparadoras de situações de preconceito e discriminação, os fluxos de saberes circulam mais fluidamente. Uma tendência que pode ser observada em cenários socioculturais, que foram alterados pela efetivação de direitos culturais, implementação de políticas públicas e adoção de ações afirmativas é uma nova prática antidiscriminatória e até antirracista. Uma espécie de aumento de tolerância à diferença, que altera práticas passa a vigorar com a incidência de uma naturalização de ambientes mais democráticos, de tolerância e respeito às diferenças. Em uma sociedade como esta, movimentos de naturalização atingem não mais o racismo, não mais o etnocentrismo, visam naturalizar o reconhecimento e o respeito à diferença e ao diferente, não mais tornado desigual. Em contextos de garantia de direitos culturais, de políticas afirmativas, a naturalização é de práticas mais democráticas, mais cidadãs, em que o direito, e não mais o privilégio, é instituído.
Questões de direito e de cidadania são uma necessidade para nossa sociedade contemporaneamente e estas questões podem ser ensinadas, sobretudo no ambiente escolar, mas em ambiente de educação que extrapola o ambiente escolar também. Nós aprendemos tão facilmente, tão fluidamente, tão naturalizadamente a discriminar, podemos investir energias em um aprendizado da tolerância, do respeito e da efetivação de direitos. Essa é a ideia central para fechar esta discussão, que ilustro com uma reflexão de Nelson Mandela que nos lembra que: "ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar."