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Artigo 3) Ações afirmativas no paraíso racial: relações étnico-raciais e educação no Brasil

Parte 2

Para avançar um pouco nas discussões, apresento aqui algumas categorias conceituais que demandam por aprofundamento e maior refinamento. É necessário compreender, com mais clareza, alguns conceitos para começar a transitar mais seguramente por esse terreno das relações étnico-raciais, tais quais são vivenciadas no Brasil.

O conceito de racismo é o primeiro deles, e, para compreender que existe discriminação no Brasil, é fundamental que se compreenda também o que é racismo, compreendendo-o como estando além de um conjunto de teorias, de crenças e de práticas que estabelecem uma hierarquia entre as raças, e assevero, existem raças humanas. O professor Antônio Sérgio Guimarães destaca, em seu livro Racismo e Antirracismo no Brasil, a importância do reconhecimento da existência das raças humanas. Ainda que tenhamos uma única espécie, as sociedades humanas se organizaram de forma a hierarquizar sujeitos diferenciados em estamentos hierarquizados na sociedade. Nesse sentido, o racismo pode ser entendido como uma doutrina ou um sistema político, em que se acredita na superioridade de determinadas raças em detrimento de outras que são consideradas como inferiores, sobre as quais recairá toda uma carga de racismo, de preconceito, de discriminação contra as quais a luta deve ser empreendida.

Um segundo conceito importante é o de raça. Raça pode ser entendida como uma noção que se configura no pensamento ocidental e se fortalece logo depois do período colonial. A raça será utilizada como elemento que vai justificar a opressão a determinados sujeitos trazidos do continente africano, ou a sujeitos autóctones dessa parte do planeta. A raça, socialmente consolidada, passa a justificar a própria situação de subalternidade e de inferioridade.

Raça, nesse sentido, embora seja uma noção que não tenha tanta eficácia biológica, é um conceito que guarda uma forte significância sociológica e social. Exatamente porque a raça ordena, orienta, organiza as relações e as interações sociais vivenciadas no Brasil. Raça é um marcador importante que define quem vai ser a pessoa que vamos namorar, com quem vamos casar, com quem vamos nos relacionar no âmbito do trabalho. Se é um marcador importante no âmbito empírico e no âmbito social de interação sociocultural, a raça deve ser considerada também para melhor compreender as relações étnico-raciais que envolvem, de maneira subalternizada, negros e indígenas.

Para enriquecer um pouco mais aquele nosso terceiro pressuposto, que é essa necessidade de interferência em situações degradantes da existência humana, desumanizantes do próprio sujeito. Um terceiro conceito, relativamente novo na história do País, o de ações afirmativas, mas que guarda uma proximidade com o conceito de políticas públicas, por exemplo, quando a gente fala de ações afirmativas, ou medidas especiais, temporárias, que são tomadas pelo Estado de forma espontânea ou compulsoriamente e que tem o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo situações de igualdade e quebrando, destruindo ou, pelo menos, problematizando situações de desigualdade, de discriminação, de marginalização que sejam decorrentes desses marcadores que já falamos anteriormente que são a raça e a etnia. Mas, outros também como elementos de religiosidade, de gênero dentre tantos outros marcadores, as ações afirmativas visam eliminar e combater efeitos acumulados em virtude de discriminações sofridas. Essa definição de ações afirmativas é importante para adentrarmos de vez nesse terreno reflexivo que são as relações étnico-raciais vivenciadas no Brasil. Acerca da existência de discriminação étnico-racial no Brasil, vale a pena chamar a atenção de que no País ainda prevalecem o racismo direcionado a negros e o etnocentrismo direcionado a povos indígenas. O etnocentrismo ainda é uma realidade e tem sido responsável por situações de degradação de seres humanos. Essa tendência que os grupos têm de privilegiar o próprio grupo, como sendo superior, tem afetado sujeitos que têm experimentado violações ao exercício da própria diversidade cultural. Da mesma forma que negros urbanos do Brasil têm experimentado situações que os impedem de elevar-se socialmente, de usufruírem de espaços de tomada de decisão e de poder, de adentrarem em espaços importantes desse País plural.

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Chamo aqui a atenção para o fato de que há discriminação étnico-racial no Brasil, necessitamos reconhecer que essa discriminação tem provocado sofrimentos. Não combatemos inimigos invisíveis, para combatê-los precisamos enxergá-los. Para que o racismo e o etnocentrismo sejam combatidos é necessário reconhecer sua existência. O movimento social organizado desempenha bem este papel e reivindica o tempo inteiro visibilidade para a especificidade de segmentos da sociedade que têm vivenciado situações de sofrimento profundo, de violação tremenda de direitos básicos, como direitos culturais, por exemplo, que estão relacionados às artes, mas que são relacionados também a uma memória coletiva. Não é mais admissível que esses direitos sigam sendo negados, é o que denunciam os movimentos sociais.

Políticas públicas são também a possibilidade de exercício de direitos constitucionais, já que favorecem intervenções e alterações de realidades injustas. E há uma voz que reivindica existência e também audiência às denúncias de situações de marginalização, exclusão, subalternização e inferiorização que devem ser superadas. Para combater situações que degradam seres humanos é necessário ampliar um posicionamento que é reflexivo, analítico, intelectual, mas que deve ser também político, portanto, de grupo e sociocultural, por permitirem problematizar a forma como os direitos culturais estão sendo efetivados. Questionamentos importantes devem ser feitos, tais como: como assegurar direitos relacionados às artes, à memória coletiva, ao fluxo de saberes, a produção de saberes a sujeitos que foram historicamente discriminados, relegados a um patamar extremamente inferiorizante da sociedade. Os direitos culturais deveriam assegurar uma possibilidade de conhecimento e utilização do próprio passado cultural que exerce força sobre o presente vivenciado. Um presente que recebe interferência ativa desses sujeitos. Assim, os direitos culturais, além de garantirem e assegurarem o conhecimento de saberes do passado, via essa intervenção presente, devem assegurar, também, uma possibilidade de previsão sobre o futuro. Assegurar direitos culturais aos sujeitos humanos seria assegurar também direitos humanos, já que quando se fala de direitos culturais, implicada está a própria dignidade humana. Um desdobramento dessa primeira problematização seria como assegurar direitos culturais em cenários de colonialidade do saber, utilizando aqui termos de Aníbal Quijano. Em cenários nos quais vigoraram a empresa colonial, que instauraram degradações absurdas de sujeitos. Como assegurar direitos culturais a esses sujeitos? Como promover políticas públicas? Como realizar ações afirmativas? Como garantir que sejam executados conjuntos de programas, de ações, de atividades, que podem ser desenvolvidas pelo Estado de maneira direta ou indireta, e que visem assegurar direitos de cidadania? Como promover políticas específicas para segmentos específicos, atravessados por questões de étnico-racialidade? As políticas públicas correspondem a direitos garantidos constitucionalmente, e ações afirmativas também caminham por essa área, mas as políticas públicas de que falamos se afirmam também graças ao reconhecimento da sociedade e do poder público dos novos direitos, aqueles que permitem reconhecer a da diferença. Nesta perspectiva, direitos não são somente relativos à igualdade, mas ao reconhecimento da diferença e de questões de identidades, estas construídas como instrumentos políticos. A educação, por exemplo, é um direito universal constitucionalmente garantido, mas a educação carece de políticas públicas para que ela verdadeiramente se universalize. Estamos falando aqui de uma educação que fundamenta e é atravessada por questões de cultura, uma educação que assegura fluxos de saberes. Esta educação admite políticas públicas específicas, para segmentos específicos.