PDCC - Webconferências 2016
 
Página 263

Artigo 10) A relação entre cultura e direito: mitos e fatos

Foi divulgado que a minha fala seria sobre "A relação entre cultura e direito: mitos e fatos", mas resolvi acrescentar um subtítulo que é "O município na proteção do patrimônio cultural". Qual a razão? É porque o assunto principal é muito teórico e foi a maneira que encontrei para dar-lhe maior concretude associando-o com um tema próximo da realidade de todos.

Essa relação entre cultura e direito, nos vários anos em que milito nas duas áreas, tenho percebido como de grande tensão e ao mesmo tempo de interdependência, características perceptíveis em assertivas que usualmente escuto, tanto de um lado como do outro, do tipo "o direito é um produto da cultura". Aliás, existe uma teoria para explicar todo o direito, chamada culturalismo jurídico, que visa exatamente demonstrar que direito é um fenômeno complexo resultante de fato, valor e norma. De acordo com essa teoria, não se entende as normas propriamente pelo que nelas está escrito, mas pelo valor que é agregado e dentro do seu conjunto cultural.

Outra premissa conflituosa da relação entre cultura e direito é vista nas operações que envolvem recursos públicos: as pessoas ligadas à cultura dizem que os Tribunais não entendem as peculiaridades do seu setor; por outro lado, o campo do direito diz que o pessoal da cultura não quer se submeter às regras que são próprias para todo mundo.

Há também conflitos resultantes de coisas mais fortes, como os assentados no entendimento preconceituoso de que a cultura representa o avanço, e o direito, a estagnação ou até o retrocesso.

Por tudo isso, eu decidi enfrentar esses lugares que se tornaram comuns para saber se realmente as coisas são dessa forma. No final das contas, nesse diálogo tenso, o que se percebe é a busca da primazia de um sobre o outro. E essa busca da preponderância da cultura sobre o direito ou do direito sobre a cultura fica muito evidenciada quando, por exemplo, se cogita algo do tipo, quem dá origem a que? A cultura realmente dá origem ao direito, como diz o culturalismo jurídico? Ou existe a possibilidade do direito dar origem à cultura?

Página 264

Uma fórmula para pensar sobre um assunto tão complicado é recorrer a todas as ferramentas que se colocam disponíveis, inclusive as mais inusitadas, como, por exemplo, as figuras de linguagem. Para o caso, fazendo uso de uma prosopopeia, que nos oferta a possibilidade de imaginar características humanas para os outros seres, poderia ser feita a pergunta: o que surgiu primeiro, o direito ou a cultura? Se um dos dois tiver surgido primeiro, há aí a grande possibilidade de ter dado origem ao outro.

Para descobrir qual dos dois surgiu primeiro são necessários parâmetros para se saber o que é cultura e o que é direito. Aqui, convém advertir que todos sabem - e isso não é uma hipérbole - que existem centenas de definições de cultura. Aliás, eu acabei de ler um livro de Denys Cuche, em que o autor sustenta que agora praticamente há uma definição de cultura para cada antropólogo. E por falar em antropólogo, geralmente se utiliza a definição antropológica de cultura, como aquela que consegue abraçar as demais, por estabelecer que é tudo aquilo que o homem faz.

Por outro lado, o que seria o direito? Quando o veríamos presente em nossas vidas? Há uma máxima muito compartilhada de que o direito se faz presente onde há sociedade. Se pensássemos na versão bíblica da criação do homem por Deus e subsequentemente a criação da mulher, a partir do homem, também por Deus, e se for exato que tudo que o homem faz é cultura, quando Adão apareceu na face da Terra aí já teria surgido a cultura. Diferentemente, o direito só teria surgido com a presença da segunda pessoa, porque uma das exigências para que ele se manifeste é que exista sociedade, que exista bilateralidade.

Mas as coisas não são tão fáceis assim... Parece que a cultura só tem sentido de ser se também for observada uma relação bilateral ou multilateral. Esse pensamento de que só existe cultura a partir da inter-relação das pessoas é uma ideia partilhada por Hannah Arentd ao dizer que o homem isolado é o homo faber, que até faz coisas, mas essas coisas não têm significados culturais, porque a importância da cultura está também na transmissão dos conhecimentos.

Página 265

Chega-se, assim, à reflexão, algo refinada, de que os dois - cultura e direito - só têm sentido diante da inter–relação entre as pessoas.

Agora é necessária uma pequena reflexão a respeito da natureza de um ou de outro, fazendo uso de mitos consagrados. Para representar o direito, Palas Atenas, a organizadora das relações políticas e sociais; e para iconizar a cultura, Prometeu, o Titã criador dos seres vivos, o violador das regras, aquele que deu os dons dos deuses aos seres humanos, dentre os quais a sabedoria, as artes e as ciências. Portanto, os dois mitos mencionados evidenciam que o direito tem natureza limitadora e a cultura tem a potência de superação de limites. Então, o embate entre ambos parece até natural, quando se compreende que eles surgem exatamente para coisas opostas, ou pelo menos para possibilidades opostas.

A rigor, eu imagino que a relação entre cultura e direito se assemelha muito mais ao mito dos irmãos Castor e Pólux, que eram filhos de Zeus (um deus, como sabemos) e Lêda (uma mortal); um deles nasceu com o dom da mortalidade e o outro da imortalidade e os dois eram guerreiros. Em uma determinada luta, Castor, o mortal, foi ferido fatalmente; Pólux pediu a Zeus que transferisse sua imortalidade para o irmão moribundo; Zeus assim o fez. Mas aquele que transferiu o dom de viver eternamente passou a morrer, e o irmão que agora tinha a imortalidade a devolveu, e ficaram incessantemente nesse jogo.

Transportando o mito para a relação da cultura com o direito, e lembrando que qualquer dos dois só surge quando existe relação entre pessoas, conclui-se que eles surgem simultaneamente, ou seja, um não deriva do outro, mas surgem ao mesmo tempo; têm a possibilidade de permutar suas vitalidades, dado que às vezes um está mais avançado que o outro; o que, na realidade brasileira, pode ser exemplificado com a situação da mulher, que é muito melhor no direito que na cultura, como o atestam as cotas para elas na política, bem como a proteção reforçada com a Lei Maria da Penha. Mas o oposto também se identifica de uma forma muito intensa; por exemplo, a letra da nossa Constituição diz que casamento é entre homem e mulher, e o Supremo Tribunal Federal, num lapso forte de sensibilidade, disse que essa literalidade está contra as evidências da realidade e, nesse caso, a cultura fez com que o direito avançasse.

Portanto, a relação entre cultura e direito é mais complexa do que se imagina, e com o que foi dito, rompe-se com a ideia de que este seria apenas um produto daquela, pois como foi visto, o inverso também ocorre. Rompe-se, igualmente, com a convicção de que estão sempre em conflito, que de fato existem, mas às vezes há convergência e transferência da vitalidade de um para com o outro. É caricaturada, ainda, a ideia de que a cultura representa avanço e o direito o retrocesso. Nem sempre é assim; a cultura nem sempre usa da sua potência para superar o que está posto; às vezes é o contrário: é frequente, por exemplo, evocarem-se padrões culturais petrificados para fazer coisas que o direito já superou, como os jogos que envolvem tortura com animais, que geralmente são defendidos sob o argumento de que se trata de tradição cultural. Em resposta, o Supremo Tribunal Federal já julgou que a farra do boi e a rinha de galo, para o direito, não são manifestações culturais; podem ser para outros campos, mas para o direito, não.

Portanto, a síntese dessa primeira parte consiste em dizer que só se entende bem a relação entre direito e cultura se for perceber que eles têm suas forças potencializadas em sentidos opostos, como o Yin e o Yang. Todavia, isso não significa necessariamente algo equivocado, porque uma força precisa da outra. Deixar de ter essa compreensão é permitir que eles só se encontrem em momentos de antagonismo, o que elimina os também necessários momentos de cooperação entre ambos. 

Página 266

Feita essa localização, em respeito às pessoas que têm problemas práticos para resolver, eu gostaria de tentar aplicar esses mitos e fatos ao campo da gestão jurídico-cultural.

A grande dicção do papel do município na proteção do patrimônio cultural está desenhada na Constituição do Brasil, no artigo 30, inciso IX, que diz o seguinte: Compete aos municípios promover a proteção do patrimônio histórico e cultural local, observado a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. Esse texto dá aparência de uma grande amarra para o município na sua atuação porque, pela literalidade, deve ser feita observando duas legislações e duas ações fiscalizadoras, que são a federal e a estadual. Contudo, se for observada essa configuração jurídica dentro do contexto histórico-cultural do município na vida brasileira, chega-se a outras conclusões.

O município é o mais longevo ente político da história brasileira atualmente em funcionamento. Ele é mais antigo do que a União, que só surgiu em 15 de novembro de 1889, a mesma data em que surgiram os estados. Ele não é contemporâneo dos primeiros tempos de colonização, baseado nas capitanias hereditárias, mas logo se estabeleceu e dos primeiros tempos remanescem sinais que hoje em dia são muito peculiares e caros ao patrimônio cultural, como as casas de Câmara e Cadeia. Uma casa de Câmara e Cadeia é algo que traz uma revelação histórica da importância dos municípios, que foi sendo amesquinhada ao longo do tempo: o próprio poder sobre a locomoção das pessoas estava com a municipalidade.

Então, o município é importante culturalmente não apenas por esse histórico de poder. Por outro lado, como toda estrutura que tem a mão humana, é cheio de ambiguidades, com experimentos de avanços e retrocessos, presenças de vanguardas e retaguardas, como nos exemplos de São Paulo (SP) e a Semana de Arte Moderna de 1922; Redenção (CE) e libertação dos escravos quase cinco anos antes da Lei Áurea; Porto Alegre (RS) e os orçamentos participativos.

Ressaltar a rica história do município, nesse contexto do estabelecimento dos sistemas nacional e estaduais de cultura, é importante para livrá-lo o máximo possível de amarras que possam inibir a sua criatividade e o seu poder de vanguarda, características que fazem lembrar o mito de Prometeu.

Para entender o que há de mito e de fato a respeito do papel do município na proteção do patrimônio cultural, é preciso fazer referência à grande mudança conceitual sobre o tema ocorrida a partir da Constituição de 1988. Para se ter uma ideia, a palavra "memória", que é a matriz justificadora da herança cultural, nas oito constituições que o Brasil já adotou, só aparece em duas: uma no ato das disposições transitórias da primeira constituição republicana de 1891, determinando que a casa em que faleceu Benjamin Constant deveria ser conservada; portanto, o patrimônio protegido era o que resguardasse a história oficial, dos vultos importantes e dos bens edificados segundo o padrão europeu. E quando chega a Constituição de 1988, estabeleceu-se uma revolução na compreensão do que é patrimônio cultural, ao defini-lo como aquele conjunto imenso formado pelos bens materiais e imateriais importantes para a memória e para a ação dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Página 267

Isso representa uma revolução que ainda não foi compreendida, porque se continua a proteger o patrimônio cultural a partir de estruturas de outra época: os mesmos conselhos de patrimônio cultural e as mesmas legislações, inclusive. O ponto mais relevante desta revolução reside no pressuposto democrático e pluralista de que o Estado deve proteger o patrimônio cultural com a colaboração da comunidade. Onde está a comunidade? Principalmente nos próprios municípios.

Ademais, o município pode conjugar, em favor da proteção do patrimônio cultural, outros instrumentos que se associam a ela. Não diretamente, mas por rubricas como a da organização urbana, a exemplo do Estatuto das Cidades, que determina, dentre outras coisas, a definição de áreas especiais em função do valor histórico e cultural.

Fora isso, não se pode esquecer do grande direito cultural reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos - ONU - 1948, que é o de participar da vida cultural da comunidade, postado ao lado do direito à instrução e do direito à educação, setores sobre os quais o município tem ou deve ter atuações diretas e profundas.

Portanto, chega-se à conclusão de que é necessário intensificar a formação da cidadania, sobretudo, a partir do município; é necessário aprofundar também a democracia pluralista, porque cidadania e democracia formam o patrimônio básico para qualquer outro patrimônio, e dele pode resultar o respeito ao próximo, a reverência à lei legítima para que tenhamos uma convivência cidadã e o preparo para fluir e conservar o patrimônio cultural.