PDCC - Webconferências 2016
 
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Artigo 10) A relação entre cultura e direito: mitos e fatos

Questionamentos

Boa noite, professor. Sua palestra foi realmente muito boa, mas gostaria de saber se na prática os nossos patrimônios estão sendo realmente protegidos?
É o seguinte: essa observação não depende de uma resposta jurídica; basta que o cidadão olhe a realidade do seu ambiente e de sua cidade. Certamente, há muitos casos de plena ausência de proteção, outros de proteção parcial e até os de satisfatória proteção.

Professor Humberto, excelente explanação. Como seria, na sua concepção, a educação patrimonial na educação formal? E nos cursos de Direito?
Eu acho que uma das coisas importantes é trazer para dentro dos cursos de Direito a cadeira dos direitos culturais, que ainda não está popularizada nas universidades. Nós compreendemos essa necessidade aqui na Universidade de Fortaleza, que foi a primeira a instituir essa cátedra específica. Hoje em dia, na grande maioria das universidades, eles são estudados de forma esparsa e deslocada e, portanto, a partir das premissas de outras disciplinas jurídicas que não têm a sensibilidade específica dos direitos culturais.

É muito bom agregar novos conhecimentos, principalmente vindo de um baluarte da defesa dos Direitos Culturais e Patrimoniais no meio acadêmico: Professor Humberto, num rápido ranking, o Brasil estaria em que lugar como conservador de seus patrimônios?
Eu acho que não é dos últimos. Acabamos de ver o "estado islâmico" destruindo os ícones de civilizações antigas, quebrando múmias, estátuas e criações de outras épocas. Não é o melhor, também. O Brasil vem experimentando uma construção ainda não visível e muito menos suficiente de garantias para os direitos culturais, o que inclui a proteção patrimonial. Então, não é a pior nem a melhor situação. Portanto, pode-se avançar bastante com as lutas que precisam ser travadas cotidianamente.

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Existe a possibilidade de atuar sem a dependência do município ou do estado?
Existe sim. Uma vez eu fiz essa apresentação em um congresso lá em Madri, no qual defendi uma estrutura jurídica nova, para instituir "o bem cultural de comunidade". No que consistiria isso? O bem cultural de comunidade seria protegido por deliberação da própria comunidade. Já tem um paralelo no direito: uma família, se quiser, pode excluir um bem de qualquer execução, de qualquer pagamento de dívida, registrando em cartório que aquele é um "bem de família" e não pode ser afetado por nada. É algo semelhante, mas para o campo dos direitos culturais.

É claro que as grandes guardiãs do patrimônio cultural são a comunidade e a sociedade. Se nós observarmos o conjunto de elementos culturais que temos, embora os acervos dos museus sejam imensos, os conjuntos arquitetônicos de alguma forma protegidos pelo poder público, mesmo em grande quantidade, não representam nem meio por cento daquilo que efetivamente a elas pertence e que tem valor cultural.

Aqui na minha cidade, que é Goiás, o município procura levar muita cultura através da Secretaria de Cultura, mas a comunidade não participa muito. O que está faltando fazer?
Eu acho equivocada toda política cultural, toda política de uma maneira geral, que não conte com a participação da cidadania, e isso se agrava mais fortemente no campo cultural. A minha tese de doutorado foi sobre a representação de interesses em relação o ambiente cultural, especificamente sobre o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), que é um programa técnico de aportes financeiros para essas atividades. Se até em programa de natureza técnica como esse, feito a princípio simplesmente para analisar e deferir projetos, precisa da participação social, imagine nas políticas finalistas que se estabelecem para cultura. Eu recomendo e discuto, nessa tese de doutorado, que se faça uso da representação de interesses legítimos na formulação de políticas culturais, o que é indispensável, segundo a Constituição Brasileira. Aliás, minha tese foi formulada assim: do mesmo jeito que a Constituição confere autonomia a certos entes políticos, como a União, os Estado e os Municípios o faz também para certos segmentos sociais, como o dos esporte e o das comunidades indígenas e, de forma implícita, ao setor cultural. Então, é indispensável a participação dos interessados, na feitura das políticas culturais, para materializar a autonomia cultural.

Parabéns, professor. A palestra foi ótima. A dificuldade na efetivação das garantias com relação aos direitos culturais seria o baixo investimento financeiro na área?
Eu acho que é um dos problemas, mas devo lembrar que os direitos culturais têm múltiplas facetas. Quando a Constituição diz que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais, isso não significa que necessariamente ele dará dinheiro para a cultura, porque ocasionalmente se garante o exercício dos direitos culturais com as abstenções do poder público. Às vezes, a garantia está naquilo que os juristas chamam de não fazer; por exemplo, para o direito cultural de expressar-se artisticamente, a grande garantia está no Estado se abster de censurar. Ademais, nem todas as pessoas que estão no campo cultural são necessitadas dos incentivos públicos, basta pensar na faceta que se costuma designar como indústria cultural, a qual desenvolve atividade culturais especificamente em função de uma reprodutibilidade das criações culturais e que ganham muito dinheiro com isso; nessa situação, eu acho é que devem pagar tributos e somente como exceção receber incentivos. A Constituição determina que o papel mais ativo por parte do Estado, no campo cultural, é o resguardo da memória, investindo em espaços como os arquivos públicos e os museus. Nestas searas, percebe-se que falta, sim, muito recurso. Porém, insisto, não é apenas a falta de recurso que emperra o bom exercício dos direitos culturais.

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Professor, e como podemos fazer para que as pessoas com deficiência possam ter maior parte no patrimônio cultural de nosso país, já que boa parte deles não dá acesso?
Uma das coisas que aprendi nessa relação que eu tento manter com os dois campos, o do direito e o da cultura, é que o direito não tem resposta para tudo. Eu acho que a resposta a uma pergunta dessa natureza só pode ser bem construída com a demanda das pessoas que têm as deficiências. Uma coisa interessante a ser dita nessa especialização, que também é de direitos humanos, refere-se à única convenção até agora incorporada ao direito brasileiro com o status constitucional, exatamente a da pessoa com deficiência, que busca, em todos os domínios, viabilizar a acessibilidade, segundo o tipo de deficiência. Porém, a adequada construção de soluções depende diretamente dos interessados e dos que estudam a matéria, que podem subsidiar a ação do poder público.

Obrigada pela resposta! Mas o Estado não tem que garantir o ir e vir das pessoas? E por que as pessoas com deficiência ficam quase sempre de fora de nossa cultura e dos patrimônios? Desculpe estar insistindo nesta questão das pessoas com deficiência, mas é porque eu sou uma!
Tem um preceito na Constituição que diz o seguinte: nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. Isso significa que, se for necessário, podemos recorrer à Justiça para garantir nossos direitos; porém, antes disso, é importante que as demandas cheguem aos formuladores das políticas e das legislações. Eis um exemplo de caso em que o antagonismo entre cultura e direito deve abrir espaço para a mútua colaboração. Com mais razão porque há uma ignorância fortíssima das pessoas que não têm deficiência para com as pessoas que as têm. Eu sei disso porque uma vez eu fui convidado para uma palestra exatamente sobre a convenção relacionada às pessoas com deficiência e algo simples me fez perceber como estamos despreparados para entender a problemática das pessoas que têm deficiência, não por maldade, mas por falta de preparo e educação.

No evento a que me refiro, estavam pessoas cegas, surdas, amputadas, e com outras deficiências. Na ocasião, a primeira reivindicação dos cegos foi para que a pessoa que estava falando (e que lhes foi descrita por alguém que enxergava) deixasse de falar no microfone, pelo menos por um instante, para que eles soubessem qual a posição do palestrante no ambiente em que estavam, porque, pelo sistema mecânico de ampliação da voz, o som fica uniforme e a pessoa que usava da palavra poderia estar em qualquer lugar.
Essa situação me fez perceber a minha ignorância e o meu despreparo para lidar com a deficiência, no caso, dos cegos. Esses defeitos meus só poderiam ser superados se eu recebesse as indicações de quem estava sofrendo o problema da exclusão. Então, eu acho que Estado pode e deve ter a abertura nessa tarefa de acessibilidade para as pessoas com deficiências, mas precisa dos indicativos, porque o legislador que enxerga, que anda, que caminha, que não sofre as problemáticas de uma deficiência, talvez não tenha essa preocupação e precisa ser sensibilizado por quem sofre de limitações.

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O que eu quis dizer foi o seguinte: o direito é tão importante quanto insuficiente para a solução desses graves problemas, e que é necessária a colaboração, na sua feitura e na sua aplicação, dos diretamente interessados. Isso é a melhor garantia para a efetivação dos direitos culturais, inclusive os peculiares às pessoas com deficiência.

Quando o senhor disse que a cultura existe desde os primeiros tempos, está querendo dizer que tudo que o homem faz é cultura?
Isso é uma definição antropológica de cultura. Para o direito, que mesmo não podendo desconhecer as definições sociológicas, filosóficas, antropológicas, etc., quando vai se relacionar com o ambiente cultural, o faz a partir de suas próprias premissas e de sua natureza, que é uma natureza de limitação. É por isso que, como eu disse em minha fala, a farra do boi e a rinha de galo podem, eventualmente, ser consideradas por alguns, pelos prismas sociológico e antropológico, como manifestações culturais, mas para o direito atualmente posto no Brasil não é; seriam violação da proibição de não maltratar animais.

Professor, acredito que a educação patrimonial deve ser implantada desde as séries iniciais para que possamos ter futuros cidadãos com uma nova consciência. O que o senhor acha, estou correta no meu raciocínio?
Quem sou eu para dizer que você não está correta?! Eu acho que não é uma questão propriamente de acerto ou de erro, mas de convicção. É claro, se somos estimulados e sensibilizados para determinado campo desde a infância, a probabilidade de que realmente adquiramos essa sensibilidade é muito maior do que se tivermos contato com esse campo só na idade adulta. Eu acho que todos os pedagogos dizem que a idade primordial para o melhor aprendizado é realmente a infância. Então, o que eu posso dizer, não é que está certa ou errada, mas que compartilho com você dessa opinião.

Nesse caso das garantias podemos dizer que é a ação cidadã individual ou coletiva que "garante" o direito já instituído?
Garantias são todos os elementos que convergem para a efetivação de um direito. Essa é uma fórmula muito abrangente para entendê-las. Às vezes, um direito recebe o reforço de uma garantia que nem se imagina. Para exemplificar, conto o caso do videoconferencista que anteriormente dialogou com vocês aqui, o professor Marcus Pinto Aguiar, que foi meu orientando em mestrado e continua sendo meu orientando no doutorado, presentemente. No mestrado, ele desenvolveu um trabalho que, inclusive, está publicado em livro, o qual recomendo para esta especialização, que é sobre a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos; foi o caso de um rapaz, o Damião Ximenes, que tinha deficiência mental. A Corte Interamericana entendeu que ele foi espancado até morrer numa clínica psiquiátrica aqui no Estado do Ceará. O Brasil se aproveitou - não como oportunista - dessa condenação para convergir força na aprovação da lei antimanicomial, porque a sociedade não queria uma lei nesse sentido, infelizmente, pois estamos impregnados da ideia de excluir as pessoas diferentes. Ou seja, nesse caso, houve a garantia de um impacto externo, que contou com certa impulsão internacional. Portanto, não se pode fechar um número ou dizer os nomes das garantias, porque, insisto, elas são formadas por todos os elementos que convergem para que o direito se materialize.

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Professor, em nossa cidade (Goianésia, GO), a Câmara dos Vereadores tem um projeto que faz homenagens anualmente aos cidadãos e cidadãs do nosso município, como: Medalha do Fundador, Medalha Cidadão Goianesiense, Comenda Cultural (Escritores, Escultores, Artistas Plásticos, Artesãos, etc). Pergunto: Este tipo de projeto não seria um dos caminhos para aproximar o Poder Público dos Direitos Culturais no âmbito geral, tão criticado no meio cultural?
Eu não conheço o projeto, mas vou dar uma resposta com base na Constituição: ela diz que os diferentes segmentos étnicos nacionais têm legitimidade para fixação de suas datas comemorativas. Então, algo equivalente pode acontecer com o destaque de pessoas que são verdadeiramente importantes para os segmentos culturais. Em princípio, não vejo problema. Aliás, o campo cultural, às vezes, para o seu desenvolvimento, precisa mais de reconhecimento do que dinheiro. Por exemplo, nos estados que reconhecem determinados cidadãos e cidadãs como mestres da cultura, esse vínculo de pertencimento reativa de uma maneira espetacular uma atividade cultural que poderia estar moribunda; passa a ter até repercussão nas contratações, na difusão, na microeconomia criativa, por assim dizer, resultante dessas manifestações reconhecidas.

Professor, nesta relação entre mitos e fatos, o patrimônio cultural no Brasil está sendo mais um mito ou um fato?
Depende do foco da observação. É um fato que a gente tem um patrimônio cultural muito rico, é um fato que a Constituição determina a proteção desses patrimônios, é um fato que os entes públicos costumam declarar que efetivamente o protegem, mas quando observamos a realidade, parece que essa declaração é apenas um mito, na pior acepção que se pode ter dessa palavra. E muitas vezes isso ocorre não em virtude de uma deficiência ou de um desconhecimento dos gestores, mas porque esse campo da cultura, de uma forma absurda, é tido como secundário, o que se espelha nos orçamentos a ele destinados e, em última instância, provoca os desastres na proteção patrimonial.

Foi realmente maravilhosa a relação que o professor fez sobre cultura e direito com a mitologia. Professor, ao seu entender os municípios são os maiores responsáveis pelos direitos culturais? Sabemos que existem municípios que nem têm secretaria de cultura. Qual a posição do direito para se ter uma educação patrimonial em todos os municípios?
O direito é uma ferramenta de quem o comanda; se é um autocrata, um ditador, vai ter "as feições" desse comandante. Numa democracia, o direito deve corresponder à vontade geral, que não se confunde com a vontade da maioria. A nossa democracia se configura de uma maneira tal que há direitos que são, sim, da maioria; há outros direitos que são das minorias e também direitos que são das individualidades. Então, essa configuração pluralista do direito deve ser reivindicada precisamente por quem deseja que ele tenha a modulação mais adequada à situação concreta.

Eu fiz todo esse discurso para dizer o seguinte: os que defendem e sabem formular as propostas de educação patrimonial é que devem modular o direito e não o contrário; o direito deve ser o instrumental da cidadania e, portanto, corresponder à formulação dos que propõem, com conhecimento de causa, a educação patrimonial; a cidadania é que deve cuidar da modulação do direito.