PDCC - Módulo I
 
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Diversidade Cultural, Reconhecimento de Identidades e Cidadanias Diferenciadas

Existem várias modalidades de identidades: identidade nacional, identidade regional, identidade étnica, identidade cultural, identidade sexual ou de gênero, identidade religiosa, identidade indígena, identidade quilombola, identidade profissional etc. As identidades resultam tanto da autoidentificação quanto da identificação atribuída externamente. Ou seja, uma identidade é legitimada quando o próprio indivíduo ou grupo se reconhece e é reconhecido como tal. Neste tópico abordaremos, em linhas gerais, o reconhecimento da diversidade cultural e étnica, bem como das identidades dela derivadas como instrumento de diálogo intercultural entre grupos sociais distintos e de construção de cidadanias diferenciadas

Nos dois exemplos mais explorados neste texto – os casos das sociedades indígenas e quilombolas no Brasil –, a diversidade cultural implica também em uma diversidade de identidades, não só culturais, mas também identidades étnicas, visto que se vinculam a grupos étnicos ou povos específicos. As identidades étnicas são construídas por um processo de autoidentificação e de atribuição externa e a partir do contraste evidenciado nas relações estabelecidas entre grupos distintos, os quais buscam no seu repertório cultural traços diacríticos ou características que possam distingui-los uns dos outros.

As identidades étnicas não são, portanto, categorias fixas e essencializadas de identificação de indivíduos e grupos. Pelo contrário, elas se atualizam e se refazem em cada situação vivida por seus atores em oposição aos outros. A etnicidade é, assim, um processo ancorado em condições históricas concretas (BARTH, 1998).

No Brasil, nas últimas décadas, essas noções de grupo étnico e de identidades étnicas passaram a orientar as ações de antropólogos e outros especialistas envolvidos em trabalhos de reconhecimento e regulamentação de territórios tradicionais indígenas e quilombolas. Entre outros aspectos, isso se deve a duas questões principais. Primeiro, a atual Constituição Federal do país, promulgada em 1988, com base em instrumentos jurídicos e convenções internacionais referentes aos direitos humanos, como é o caso das Convenções 107 e 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorpora no seu texto a previsão de vários direitos culturais.

Segundo, a ciência antropológica e áreas afins têm, cada vez mais, se dedicado aos estudos dos fenômenos ligados às identidades e ao seu reconhecimento. Isso ocorre não só do ponto de vista da compreensão, interpretação e explicação desses fenômenos, mas também da produção de subsídios operacionais para as políticas públicas voltadas para o reconhecimento das identidades étnicas e culturais e para a construção de uma cidadania que contemple essas diferenças. 

Partindo das considerações anteriores, podemos dizer que não só a sociedade brasileira, mas as sociedades multiculturais, em geral, se caracterizam por uma grande diversidade cultural e por uma variedade de identidades. O reconhecimento dessas identidades, sejam culturais ou étnicas ou de outra ordem, se configura em vários níveis, envolvendo atitudes individuais (das próprias pessoas individualmente) e coletivas (dos próprios grupos e de outros grupos) e ações do poder público nos campos jurídico-legal e das políticas governamentais.

Ou seja, teoricamente teríamos, num primeiro nível, o autorreconhecimento da pessoa e o seu reconhecimento pelo grupo como parte dele; segundo, o reconhecimento do grupo como um coletivo diferenciado por outros grupos e povos; e, finalmente, o reconhecimento jurídico-legal e político de determinadas identidades individuais e coletivas pelo poder público. Vemos, assim, que a noção de reconhecimento, não só como instrumento analítico, mas também operacional, pode auxiliar as discussões relacionadas às identidades e às diferenças étnicas e culturais, além de subsidiar demandas por cidadanias diferenciadas.

Em diálogo com outros autores, como Charles Taylor e Will Kymlicka, acreditamos que o reconhecimento em todos os seus níveis, ou a falta dele, interfere na forma como as identidades são construídas/moldadas, aceitas pelos outros e assumidas pelos seus portadores, podendo, em última instância, levar os indivíduos ao autorreconhecimento, caracterizado por atitudes positivas diante da sua identidade, ou a atitudes negativas que resultam em situações de autodepreciação. Assim, não é raro que muitas demandas por reconhecimento de diferenças étnicas, culturais e de outras ordens ocorram paralelamente aos esforços dos grupos considerados subalternos, no sentido de promover a valorização de suas identidades e de romper com uma autoimagem depreciativa (TAYLOR, 1992).

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O reconhecimento da diversidade cultural pelo poder público, quer seja do ponto de vista jurídico-legal, quer seja pela criação de condições para a efetivação dos direitos étnico-culturais, por meio das políticas governamentais, tem avançado no Brasil e no mundo nas últimas décadas, a partir de duas fontes inspiradoras. Uma delas diz respeito às demandas sociais organizadas coletivamente em movimentos diversos: movimentos indígenas, movimentos negros, migrantes e outras categorias sociais que não se caracterizam precisamente pela natureza étnica ou cultural, mas pela diferença propriamente dita, tais como homossexuais, mulheres, pessoas com necessidades especiais, dentre outros. A outra refere-se aos instrumentos jurídicos e às convenções internacionais que preveem a garantia desses direitos e pressionam os países com populações multiculturais a incorporarem esses princípios nas suas legislações nacionais.

Para finalizar, falta relacionar a discussão acima realizada, bem como os conceitos orientadores da mesma, à noção de cidadania que emerge em contextos de reconhecimento das identidades acima mencionadas. Para tanto, recorremos a autores como Gullermo de la Peña e Will Kymlicka e Charles Taylor, que abordam a questão da diversidade cultural e do reconhecimento de direitos diferenciados nas Américas, oferecendo importantes contribuições para pensarmos essas diversidades e entendermos fenômenos relacionados a elas.

Analisando especialmente asociedade mexicana, do ponto de vista da diversidade étnica e cultural, de La Peña recorre à noção de cidadania étnica como um possível resultado do reconhecimento das distintas demandas dos povos indígenas, por parte do poder público, as quais abrangem um conjunto de aspectos, dentre eles os sociais e culturais. Will Kymlicka, por sua vez, para falar do reconhecimento de identidades, parte da noção de cidadania multicultural, a qual abrange, além do reconhecimento dos direitos considerados universais, os direitos culturais e linguísticos de nações, povos minoritários ou grupos étnicos, bem como de outras categorias sociais inseridas no âmbito dos Estados Nacionais. Finalmente, Charles Taylor discute a noção de cidadania em sistemas multiculturais e ressalta os sistemas democráticos como alternativas para a realização das políticas de reconhecimento do outro, ou seja, da diversidade.