Diversidade Cultural, Cultura e Etnocentrismo
A Diversidade Cultural e o Conceito de Cultura
Para falar de diversidade cultural vamos, primeiramente, discutir e entender melhor o conceito de cultura a partir do ponto de vista da antropologia, disciplina que tem a cultura – ou as culturas – como objeto de estudo por excelência. O termo cultura também é utilizado no senso comum e em outros campos do saber, que não o da antropologia, com significados distintos, sendo frequente o seu uso para fazer referência ao desenvolvimento intelectual do indivíduo em termos de educação e instrução escolar. Nesse contexto, uma pessoa considerada instruída pela via da escolarização seria culta e outra que não tenha recebido instrução escolar, seria inculta.
Na antropologia, entretanto, os termos culto e inculto não são utilizados como parâmetros para discutir o conceito de cultura, e as culturas não são abordadas ou analisadas a partir de juízos de valor, ou em termos de superioridade e inferioridade, já que nenhuma cultura é considerada superior ou inferior à outra. Para o desenvolvimento do nosso argumento, neste texto vamos partir de dois princípios básicos já reconhecidos pela ciência antropológica:
- A capacidade de produzir cultura é inerente ao ser humano;
- Toda e qualquer sociedade possui cultura.
Na história do pensamento antropológico, o conceito de cultura passa por várias transformações, à medida que os conhecimentos sobre o tema vão se ampliando e as experiências dos antropólogos, em contato com outros povos e modos de vida diferentes dos seus, se diversificam. Assim, não existe um consenso formado acerca do conceito de cultura, pois ele se diferencia tanto de acordo com as correntes teóricas quanto com o seu desenvolvimento cronológico que, desde o final do século XIX, vem sendo construído e reelaborado a partir de distintos significados e condições sócio-históricas.
Roque de Barros Laraia, em seu livro Cultura – um conceito antropológico, recorre a produções teóricas das distintas vertentes antropológicas e de seus vários autores e realiza um estudo panorâmico e introdutório sobre o conceito de cultura, iniciando pelo desenvolvimento do conceito até as teorias mais recentes sobre o assunto (LARAIA, 1987, p. 25). Um dos principais aspectos ressaltados como base para a compreensão do conceito de cultura é o reconhecimento de que, a despeito da unidade biológica da humanidade, esta se caracteriza por uma grande diversidade cultural, a qual se manifesta por meio de modos de vidas distintos, de formas específicas de organizar, entender e de explicar o mundo, bem como de atender às necessidades materiais e simbólicas e de resolver problemas.
Vejamos a seguir alguns desses enfoques e seus principais teóricos: 1) Edward Tylor (1832-1917) – antropólogo responsável pela primeira elaboração conceitual da antropologia, sobre a concepção de cultura da forma mais próxima à que compreendemos hoje:
“A cultura, no seu amplo sentido etnográfico, é um complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes, ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”
(TYLOR, 1871).
Apesar de ter se passado mais de um século, o conceito, tal como elaborado por Tylor, continua tendo validade científica. Mas existem hoje várias abordagens acerca do conceito, sendo que algumas delas privilegiam os aspectos simbólicos da cultura e a consideram como um conjunto de ideias ou abstrações do pensamento. Outras abordagens ressaltam como mais importantes os seus aspectos materiais, e há as que consideram ambos os aspectos, ou seja, tanto materiais como imateriais ou simbólicos.
Página 4Para fins didáticos, de acordo com suas características gerais, essas distintas elaborações sobre o conceito de cultura são apresentadas nos manuais de antropologia sob determinados rótulos: evolucionismo, funcionalismo, estruturalismo, interpretativismo etc. Assim, nos primórdios da antropologia científica, datados da segunda metade do século XIX, teríamos, por exemplo, um conceito evolucionista de cultura formulado a partir de estudos de gabinete, local de trabalho, por excelência, dos primeiros antropólogos.
Esses primeiros antropólogos se ocupavam de sistematizar o conhecimento sobre povos não ocidentais, considerados “povos primitivos”. Os conhecimentos produzidos por eles afirmavam a unidade psíquica da humanidade, mas defendiam uma tese segundo a qual povos e culturas evoluíam de estágios menos desenvolvidos para outros mais desenvolvidos, indo de uma condição “primitiva” a uma condição “civilizada”. Essa forma de entender e de explicar as sociedades e as culturas foi posteriormente criticada no âmbito da própria ciência antropológica, que, reelaborando o conceito de cultura, buscava a superação dessa concepção evolucionista.
Numa fase posterior da antropologia (datada das primeiras décadas do século XX), temos o desenvolvimento de uma concepção e um conceito funcionalista de cultura. De acordo com essa nova vertente, a sistematização do conhecimento sobre outros povos se torna possível pelo contato direto do antropólogo com as sociedades estudadas, mediante trabalho de campo, de longo prazo, e observação participante, o que vai resultar na consagração da etnografia (modelo clássico) como método privilegiado da antropologia.
A antropologia funcionalista se contrapõe à concepção evolucionista de cultura. Em vez de pautar-se por uma classificação dos diferentes povos e culturas de uma forma linear e diacrônica, aborda cada cultura não a partir da comparação com outras, mas sim de acordo com sua própria lógica e a partir das funções de suas práticas e instituições. Assim, a cultura é vista como uma totalidade. Radcliffe Brown (Estrutura e Função nas Sociedades Primitivas) e Malinoviski (Os Argonautas do Pacífico Ocidental), principais expoentes dessa corrente teórica, concebem a cultura como um sistema: da mesma forma que um organismo humano, composto de órgãos e funções, a sociedade (e consequentemente as suas culturas) seria formada por um conjunto complexo de instituições e funcionaria como um todo interdependente e orgânico.
Outras teorias antropológicas possuem características mais idealistas – como é o caso do estruturalismo e do interpretativismo –, segundo as quais as culturas são compreendidas como sistemas cognitivos que devem ser analisados pelo antropólogo como modelos construídos pelos membros da comunidade a respeito de seu próprio universo. Assim, “cultura seria tudo aquilo que alguém tem de conhecer ou acreditar para operar conscientemente e de maneira coerente no contexto de sua sociedade” (LARAIA, 1984, p. 62).
Segundo o conceito estruturalista, a cultura é composta por sistemas estruturais. Para Levi-Strauss, seu maior representante, o pensamento humano age de acordo com princípios universais e com regras inconscientes que estruturam as culturas. Portanto, para essa concepção, existem lógicas universais válidas para toda a humanidade que nos ajudam a entender as diferentes culturas (lógicas de parentesco, lógica do mito, formas de classificação primitiva; lógica dos contrastes: natureza-cultura, bonito-feio, claro-escuro, dentro-fora, alto-baixo, sagrado-profano etc); mas, a despeito dessa unidade psíquica, existem as manifestações empíricas de cada sociedade, de cada povo, organizadas a partir de sistemas simbólicos específicos. Caberia ao antropólogo descobrir essas estruturas e explicar esses domínios culturais (mito, arte, parentesco, linguagem etc.)
Página 5O conceito interpretativista percebe a cultura como sistemas simbólicos. De acordo com Clifford Geertz, fundador dessa linha teórica, todos os homens nascem, do ponto de vista biológico, aptos a receber um programa que é determinado culturalmente. Assim, todos os homens nascem dotados de um equipamento genético capaz de ser socializado em qualquer cultura. Nesse sentido, a cultura não é um complexo de comportamentos concretos, e sim um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções etc. Estudar uma cultura é uma tarefa difícil e vagarosa, que envolve a interpretação de um código de símbolos como se fosse um texto, a fim de produzir uma descrição densa. A interpretação feita pela antropologia não é mais do que a interpretação da interpretação que os nativos fazem do seu próprio universo cultural.
Conforme já mencionamos, a concepção antropológica de cultura vem passando, desde o seu surgimento, por várias transformações. Essas modificações ocorrem tanto pelas críticas às limitações que apresentam quanto pelas inovações trazidas por pesquisas antropológicas recentes, as quais tornam acessíveis os conhecimentos sobre um número cada vez maior de modos de vida e de pontos de vista, inclusive nativos, sobre o assunto.
Novas práticas antropológicas resultam também em novas concepções sobre cultura, as quais são trazidas à tona por um novo direcionamento que se estabelece nas últimas décadas do século XX, a partir dos anos de 1980, denominado Antropologia pós-moderna. Representada principalmente por James Clifford e Georges Marcus, essa vertente faz duras críticas aos paradigmas teóricos da “autoridade etnográfica” do antropólogo. Nesse contexto, a antropologia nada mais é do que a arte da crítica cultural; o conceito de cultura é visto como um processo polissêmico, com múltiplos significados, que são interpretados tanto por antropólogos como por seus interlocutores. Há críticas ao modelo textual das etnografias clássicas e contemporâneas, colocando em evidência o caráter político presente na relação observador-observado na pesquisa antropológica.
Finalizando, cabe ressaltar que as correntes teóricas e os autores citados não são os únicos a discutirem o conceito de cultura na antropologia, existindo outras correntes que se configuram a partir de contribuições de umas e outras, tal como o culturalismo norte-americano e a importante contribuição teórica de Franz Boas e de seus discípulos, como é o caso de Margareth Mead e Ruth Benedict entre outros. Também de grande repercussão atualmente, no que se refere à abordagem pós-moderna da cultura, são os chamados estudos culturais, como é o caso dos trabalhos de Stuart Hall.
Entretanto, a despeito das muitas formas utilizadas pela antropologia para abordar o conceito de cultura, para discutirmos a noção de diversidade cultural o mais importante aqui é entendermos que a cultura não é transmitida por mecanismos biológicos e não depende de uma transmissão genética. Pelo contrário, a cultura possui um caráter de aprendizado. Concordamos, assim, que apenas em uma interação direta e constante com outros seres humanos somos capazes de aprender, adquirir e produzir cultura.
Diversidade Cultural e Etnocentrismo
Bom, já vimos que a capacidade de produzir cultura é inerente ao ser humano e que toda e qualquer sociedade possui cultura. Também já sabemos que apesar de a humanidade ser caracterizada por uma unidade biológica, em que todos são dotados de um aparato físico semelhante (corpo humano ou organismo humano), ela se caracteriza por uma grande diversidade cultural. Ou seja, diferentes sociedades, ou diferentes povos, se distinguem por suas especificidades culturais.
Assim, cada povo possui sua forma própria de se organizar, de entender e de explicar o mundo, de atender às suas necessidades materiais e simbólicas, bem como de solucionar seus problemas. Partindo dessas considerações, estamos reconhecendo que cada povo tem a sua própria cultura e que existe, portanto, uma diversidade cultural. Reconhecer a existência dessa diversidade cultural é de fundamental importância para o exercício da relativização cultural, ou seja, para entendermos as diferenças entre “nós” e os “outros” não como parâmetro de hierarquização entre nossos modelos e os modelos desses outros, mas sim como diferenças culturais que fazem parte da pluralidade e da riqueza cultural da nossa sociedade.
Página 6Entretanto, faz parte da natureza humana enxergar os “outros” a partir de nossos próprios modelos e concepções. Quando nos referimos a povos, ou a culturas, esse fenômeno é conhecido como etnocentrismo (etno – povo ou etnia / centrismo – o ato de se colocar como centro com relação a outros povos e a outras etnias). Esse termo é usado pela antropologia como uma noção que nos ajuda a entender e a relativizar essa tendência que temos de, ao nos compararmos com outros povos, nos colocarmos como o centro, como referência e como modelo mediante o qual enxergamos esses outros.
Um recurso frequente na literatura antropológica para explicar o fenômeno do etnocentrismo é a referência aos termos autodesignativos utilizados por vários povos para falarem de si próprios. Nos discursos de cada povo, o seu próprio grupo é destacado como os representantes dos mais legítimos dos seres humanos, como a referência mais forte de cultura e de sociedade e, por isso mesmo, defendida como sendo a mais coerente, a mais certa, a melhor, a mais bonita etc.
Se traduzirmos o significado dos termos autodesignativos de alguns povos, vamos perceber que eles se autodenominam como “gente”, “seres humanos”, “povo de Deus”, “povo verdadeiro”, “os homens”, “nós”, dentre outros, ao passo que usam termos depreciativos para se referirem aos “outros”: “agressivos”, “selvagens”, “bárbaros”, “não civilizados”, “de humanidade duvidosa”. Essa tendência universal dos povos ao etnocentrismo é, na maioria das vezes, a principal fonte do preconceito e de produção de atitudes discriminatórias com relação ao “outro”, ao “diferente”.
A compreensão do fenômeno do etnocentrismo e a discussão desta noção a partir da antropologia nos mostram a possibilidade de enxergarmos o mundo também partir de outras perspectivas ou de outros pontos de vistas, além daqueles nos quais fomos culturalmente socializados, de forma a respeitar e valorizar a diversidade cultural, considerando de forma positiva suas muitas manifestações.
Diversidade Cultural Brasileira
Para entendermos melhor a complexidade da diversidade cultural brasileira, vamos tomar como exemplo o caso dos povos indígenas, não nos esquecendo de que muitos outros exemplos poderiam ser utilizados: povos quilombolas, comunidades de imigrantes, tribos urbanas etc. No que se refere aos povos indígenas, sabemos, por meio de vários estudos e estimativas, que na chegada dos europeus ao Brasil existiam aqui mais de mil povos indígenas, somando uma população aproximada de dois a quatro milhões de pessoas. Atualmente, o território brasileiro abriga 227 povos indígenas, falantes de mais de 180 línguas distintas, sendo que a maior parte dessa população está distribuída em milhares de aldeias, situadas em terras indígenas que vão de norte a sul do país.
A população indígena do Brasil está concentrada principalmente nos estados do Amazonas e Mato Grosso do Sul, mas se distribui em quase todos os estados da federação brasileira. Esse contingente está estimado, segundo o Instituto Socioambiental, em aproximadamente 600 mil indivíduos, sendo que a maioria vive em aldeias situadas em terras indígenas. Parte significativa dessa população reside em pequenas e grandes cidades, principalmente capitais do país, como Manaus (AM) e Campo Grande (MS).
Vemos, assim, que existe no Brasil uma grande diversidade cultural indígena, visto que os mais de 200 povos falam línguas distintas e adotam modos de vida diversos. As distinções abrangem todos os aspectos da sua vida social: padrões estéticos e de beleza, práticas rituais e religiosas, formas de organização do trabalho, padrões e práticas de educação e de socialização de crianças e jovens, sistemas mitológicos etc. Entretanto, são frequentes as expressões “a sociedade indígena”, “a língua indígena”, “os índios”, “a cultura indígena”, como se todos esses povos fizessem parte de uma única e homogênea cultura. Mas, entendemos que a tendência à generalização não ocorre por acaso. Muitas vezes ela tem origem no nosso processo de socialização, faz parte do nosso imaginário e interfere na nossa visão de mundo e na forma de compreendermos a realidade, o que às vezes leva as pessoas a reproduzirem estereótipos e preconceitos
Página 7Não faz muito tempo, não mais de duas décadas, essa visão generalizante, que contribui para mascarar a diversidade cultural indígena do país, ainda estava muito presente no cotidiano escolar e principalmente nos conteúdos didáticos. As expressões “os índios”, “a cultura indígena”, “a língua indígena” eram correntes nos textos escolares. Além disso, outras expressões, tais como: “os índios viviam em ocas”, “falavam a língua tupi”, “caçavam e pescavam”, “usavam técnicas muito simples”, “viviam dançando e cantando” etc. davam a entender que já não existiam povos indígenas no Brasil. A imagem de um índio “preguiçoso” e “atrasado” também era frequente.
Poderíamos seguir relacionando exemplos similares, como a ideia de “índios mansos”, quando se quer referir àqueles que se tornaram mais parecidos conosco e que, teoricamente, se civilizaram, e de “índio brabo”, para fazer referência aos que adotam modos de vida muito diferentes dos nossos. Essa distinção é também acionada, evidenciando atitudes etnocêntricas.
Apesar das singularidades que distinguem as realidades de comunidades indígenas e negras no Brasil, muitas dessas considerações podem ser válidas para pensarmos também as relações que a sociedade brasileira estabelece com os seus segmentos negros. No que se refere à população brasileira negra, os exemplos acima, presentes nos textos didáticos, também podem ser aplicados, somados ainda às abordagens das telenovelas, uma vez que pessoas negras quase sempre aparecem na trama ocupando posições inferiores e raramente em posições de prestígio.
No caso dos povos quilombolas, existe um grande desconhecimento de suas formas de organização e modos de vida. Ouvimos falar, com frequência, de quilombos que se tornaram famosos por algum evento histórico registrado pela literatura científica, como é o caso de Palmares, mas pouco sabemos sobre as centenas de comunidades quilombolas que habitam o território brasileiro atualmente e que vivem em uma quase completa invisibilidade. Dois bons exemplos para que você conheça um pouco melhor duas populações quilombolas no Brasil (uma no Nordeste e outra no Centro-Oeste) estão no DVD que acompanha esta publicação: o livro-reportagem Alcântara – uma utopia espacial,de Flávia Maia e Janine Moraes, e o vídeo Kalunga: patrimônio imaterial, de Adriana Parada.
Entretanto, o mais importante no nosso papel como professores é termos a consciência de que as atitudes e expressões acima listadas ainda não foram eliminadas do nosso imaginário. É necessário perceber que, se por um lado reconhecemos que o etnocentrismo é um fenômeno comum a todos os povos, podendo interferir positivamente em sua autoestima, por outro lado a falta de conhecimento sobre outros modos de vida e a incapacidade de relativizar os próprios costumes e reconhecer e valorizar a diversidade cultural podem resultar em atitudes de intolerância e em situações de hostilidade e xenofobia contra os outros.
Voltando a falar do livro didático, um velho aliado do professor no Brasil, apenas nas últimas décadas (a partir dos anos de 1990) é que vamos ter o início de uma mudança de concepção acerca da diversidade cultural, que incorpora resultados de pesquisas recentes e revela um pouco mais dessa diversidade. Além disso, os direitos étnicos e culturais, que resultam tanto das reivindicações e demandas dos povos e segmentos diferenciados da população, como das ações de organismos internacionais de defesa dos direitos humanos, tanto dos indivíduos como dos povos e nações, vão sendo, aos poucos, incorporado pelas legislações nacionais e levados em conta pelas políticas públicas não só no Brasil, mas em todos os países com população multicultural.