Da cooperação cultural e dos princípios de administração democrática - 8º e 9º artigos da Declaração de Direitos Culturais
Marisa Damas Vieira
Conforme destaca o artigo 1º da Declaração de Direitos Culturais (ou Declaração de Friburgo), os direitos culturais, enquanto parte integrante dos direitos humanos, devem ser interpretados de acordo com os princípios de universalidade, indivisibilidade e interdependência que os norteiam. O 8º e 9º artigos do documento, que tratam da cooperação cultural e dos princípios de administração democrática refletem claramente essas diversas interdependências e interfaces, tanto entre si quanto com os demais artigos que o compõem. Meyer-Bisch & Bidault ressaltam, a respeito, que o artigo 8º
Declaração de Direitos Culturais, Friburgo-Suíça, 2007.
“...desenvolve o conteúdo do direito de participar da vida cultural (art. 5º) sob o ângulo da cooperação, isto é, a interação nas e entre as comunidades tendo em vista a criação de obras comuns. Ele também opera um vínculo mais explícito entre a participação na vida cultural e a tomada de decisões em diversos níveis no campo cultural; esta podendo aparecer como modalidade daquela. Devendo sempre ser combinado com o direito de se referir a comunidades culturais (art. 4º), esse artigo prenuncia as disposições da Declaração dedicadas à implementação dos direitos” (MEYER-BISCH, BIDAULT, 2014, p. 107, grifo nosso)
MEYER-BISCH, Patrice; BIDAULT, Milène. Afirmar os direitos culturais – comentário à Declaração de Friburgo. São Paulo: Iluminuras, 2014. 107 p.
O artigo 8º da Cooperação Cultural destaca o direito à participação, individualmente ou em grupo, do desenvolvimento cultural das comunidades das quais se é membro; da execução e da avaliação das decisões que nos dizem respeito e que influem no exercício de nossos direitos culturais; bem como do desenvolvimento da cooperação cultural em seus diversos níveis. Trata-se, então, de compreendermos a cultura e de exercermos os direitos culturais a partir da visão de compartilhamento, de reciprocidade, possibilitando que outros pontos de vista, outras experiências, interajam com os nossos e que nos asseguremos o exercício de participação, simultaneamente, enquanto agentes e enquanto sujeitos de direito.
Essa participação se dá também no sentido de tomada de decisões, as quais vão influenciar diretamente no exercício da cidadania cultural de cada pessoa e do grupo como um todo. Nessa mesma direção, o compartilhamento ocorre tanto no âmbito de nossas comunidades culturais quanto na relação de interação entre distintas culturas, “diferenciando-o dos conflitos que surgem em virtude de atos preponderantemente violadores da diversidade cultural, para que tais partilhas sejam estimuladas em seus processos, clareadas em suas responsabilidades e divididas em seus frutos” , conforme abordou recentemente o V Encontro Internacional de Direitos Culturais, que em 2016 teve como tema “Partilhas Culturais: processos, responsabilidades e frutos”
Disponível em: <https://doity.com.br/eidc/>. Acesso em: 9 dez. 2016.
Evento realizado no período de 03 a 08 de outubro de 2016 na Unifor, em Fortaleza, Ceará, no qual tive o prazer de comparecer e participar enquanto representante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal de Goiás, como convidada para a condução do Simpósio Temático Patrimônio Cultural. O Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais e o Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Constitucional da Unifor realizaram o evento.
Quanto ao artigo 9º da Declaração de Friburgo, Meyer-Bisch & Bidault destacam que ele “...introduz uma série de artigos dedicados às obrigações e responsabilidades, contribuindo para mostrar como a realização dos direitos culturais implica uma participação democrática exigente no princípio de toda governança democrática” (2014, p. 113). Em seus comentários à Declaração, os referidos autores destacam como o conjunto dos direitos culturais está ligado intrinsecamente ao direito de participar da vida política e como algumas alíneas do artigo 9º estabelecem uma relação direta com o 6º e 7º artigos no que concerne à formação e informação.
No seu conteúdo dos Princípios de Administração Democrática, o artigo 9º delega a todas as pessoas, e à coletividade como um todo, as obrigações de respeitar, proteger e implementar os direitos culturais. No âmbito de uma administração democrática, atores públicos, privados ou civis são responsáveis por interagir e, se necessário, por tomar iniciativas para:
“...a. velar pelo respeito dos direitos culturais, e desenvolver meios de consultação e participação, a fim de assegurar a realização, em especial, das pessoas mais desfavorecidas, devido à sua situação social ou por pertencer a uma minoria;
b. assegurar, em particular, o exercício interativo do direito a uma informação adequada, de maneira que os direitos culturais possam ser considerados por todos os atores na vida social, econômica e política;
c. formar o seu pessoal e sensibilizar o seu público à compreensão e ao respeito ao conjunto dos direitos humanos e, particularmente, os direitos culturais;
d. identificar e ter em consideração a dimensão cultural de todos os direitos humanos, a fim de enriquecer a universalidade pela diversidade e favorecer a apropriação destes direitos por qualquer pessoa, individualmente ou em coletividade” (Declaração de Friburgo, artigo 9º, 2007).
Portanto, ambos os artigos (8º e 9º) trazem em seu bojo as diversas questões tratadas nos vários outros artigos da Declaração de Friburgo vistas sob o viés da cooperação e da obrigação de todos para com todos no campo da cultura, visando a participação, a troca, o respeito, a proteção e a implantação dos direitos culturais em uma perspectiva democrática e de interação entre agentes e entre atores culturais, sejam eles públicos, privados ou civis. Nesse sentido, as responsabilidades para com os direitos culturais são inerentes a esses agentes, cada qual com seu nível de obrigações e com seus papéis e atribuições distintos, mas, simultaneamente integrados e sem reduzir cada qual em um campo limitado, conforme evidenciam em sua análise Meyer-Bisch & Bidault, acima citados.
Oito dos projetos de intervenção desenvolvidos pelos alunos da Especialização Interdisciplinar em Patrimônio, Direitos Culturais e Cidadania, relatados nesta publicação, apresentam essa aproximação mais direta com o conteúdo a que se referem o 8º e 9º artigos e com a perspectiva da Cooperação Cultural e os Princípios de Administração Democrática. A proposta de “Criação de uma entidade do terceiro setor no município de Planaltina-GO”, por exemplo, trabalho desenvolvido pelo aluno Alessandro Leite, reuniu militantes de vários movimentos culturais locais em torno da criação da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e do Círculo de Agentes Culturais de Planaltina. Uma clara demonstração de atendimento às premissas de participação, cooperação, compartilhamento e mobilização dos agentes e atores no processo de fortalecimento visando a construção e a articulação de políticas culturais locais e regionais.
55Em seu trabalho intitulado “Memórias da Luta Antimanicomial em Goiás: Visões a Partir dos Usuários do Centro de Convivência e Cultura Cuca Fresca”, Carolina Machado nos apresenta uma proposta para trabalhar a educação patrimonial com o cidadão que se utiliza dos serviços de saúde mental, partindo principalmente de uma identidade política. Indo além do que propõe o artigo 6º da Declaração, onde estão inseridas as iniciativas de formação e educação, o trabalho nos traz uma perspectiva de administração democrática e de cooperação cultural a partir da atuação de uma “unidade, ou dispositivo, mais popularmente conhecido por Cuca Fresca...(que) flutua entre as fronteiras das políticas públicas em cultura e saúde...”, conforme descreve a aluna em seu relatório.
A intervenção de Carolina, desenvolvida com questionamentos de “Como reivindicar o direito à cultura aos indivíduos que são sistematicamente isolados do convívio social?”, nos remete, particularmente, às iniciativas de interação e de atuação dos atores culturais nesse processo. O trabalho coaduna com a alínea a. do artigo 9º, acima citada, que tem como premissa o desenvolvimento de meios de consultação e participação que velem pelo respeito aos direitos culturais, em especial das pessoas mais desfavorecidas em função de sua situação social ou pelo fato de pertencerem a uma minoria.
Em outra vertente, voltada para as discussões que tratam de espaços não convencionais como potenciais patrimônios, a aluna Dinaira da Costa e Silva nos traz como tema o Cemitério São Miguel da Cidade de Goiás. A intervenção “Elos Patrimoniais: Imaterial e Imaterial, Cemitério e Museu” inicia o debate junto à comunidade e aos gestores da cultura local sobre a arte funerária e a preservação do patrimônio no referido cemitério.
O trabalho parte do princípio da formação cultural, prevista no artigo 6º da Declaração, e é inicialmente desenvolvido a partir de ações de educação patrimonial com os alunos do curso de Turismo da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Mas, ao optar por realizar as ações com esses futuros gestores e agentes da área do turismo, a aluna amplia essa perspectiva e propõe a discussão sobre o papel das políticas e dos gestores culturais diante desses novos olhares sobre o cemitério como bem cultural. Busca, também, o envolvimento do setor público nessa discussão por meio de outro projeto de um dos professores do curso de Turismo e a Secretaria de Assistência Social, direcionado aos idosos.
Desta forma, esta intervenção reforça a necessidade de vários setores da comunidade estarem inseridos nesse processo, pois, apesar de em vários locais os cemitérios já serem considerados patrimônio e estarem abertos à visitação turística, em muitos outros, como na Cidade de Goiás, ainda são um assunto considerado “tabu”, por sua ligação com a morte. O trabalho desenvolvido por Dinaira, portanto, se insere no que propõem os Princípios de uma Administração Democrática do artigo 9º a partir da interação entre agentes e atores culturais, visando assegurar o direito a uma informação adequada, à formação e à sensibilização para o assunto em questão, tendo em vista o conjunto dos direitos culturais.
No mesmo direcionamento, de assegurar o direito à informação adequada, propiciando uma melhor formação à comunidade local, o aluno Diogo Ribeiro discute o processo de formação do “Povoado de Santa Rita do Novo Destino Antes e Após a Emancipação Política”. O trabalho, inicialmente desenvolvido como atividade de educação histórico-patrimonial com alunos do 3º ano do ensino médio, amplia o seu viés ao propor o registro da história de formação da cidade como leitura para a geração atual e para as futuras gerações, tendo como perspectiva os fatores econômico, social e político da memória histórica local e, consequentemente, da memória cultural do município. Portanto, nos remete principalmente à alínea b do artigo 9º, que destaca as iniciativas dos atores culturais no sentido de assegurar o “exercício interativo do direito a uma informação adequada, de maneira que os direitos culturais possam ser considerados por todos os atores na vida social, econômica e política” (Declaração de Friburgo, artigo 9º, 2007).
56Aluane de Sá da Silva desenvolveu o tema “Reflexões acerca do Estatuto de Museus e as ações realizadas pela Rede de Educadores em Museus de Goiás no Museu de Arte Contemporânea de Goiás – Centro Cultural Oscar Niemeyer”. Na perspectiva do que propõem as políticas públicas museais no Brasil, o trabalho aborda a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009 que, entre outras providências, institui o Estatuto de Museus. Com base na referida lei, a autora pondera sobre as ações desenvolvidas pelo Museu de Arte Contemporânea de Goiás com vistas a atender à sua função social.
Nesse sentido, o trabalho apresenta os resultados do I Encontro da Rede de Educadores em Museus de Goiás (Gestão 2015/2016), com o tema “MAC - Goiás, Público e Esplanada”, o qual oportunizou uma visita à exposição “Um Só Corpo: Arte Contemporânea nos Países do MERCOSUL”, em um horário diferenciado, e viabilizou reflexões sobre Artes, Museus e Acessibilidade – AMA, para o público espontâneo frequentador da Esplanada JK. Com base no que preconiza o artigo 9º, observa-se, portanto, que esta intervenção evidencia as ações necessárias a uma administração democrática e a responsabilidade de interação dos seus diversos atores, públicos, civis e privados, com iniciativas que assegurem o exercício e a apropriação dos direitos culturais.
A intervenção “Resgatando a Memória da Fazenda Escola Bona Espero, desenvolvida em grupo por Amanda Torres, Cristiana Chamberlain e Cristiane Meireles busca registrar e divulgar a história desta instituição de ensino situada na zona rural de Alto Paraíso de Goiás. As autoras destacam a convivência entre várias culturas nesse ambiente, que se comunicam por meio do idioma Internacional Esperanto, bem como as características ímpares das memórias culturais que a Bona Espero propiciou enquanto um espaço com formas diversas de manifestações linguísticas, de relacionamento, de trabalho com a terra, culinária, entre outras ações desenvolvidas.
O trabalho, portanto, valoriza todo o patrimônio e a memória cultural construídos e compartilhados na instituição, que por mais de 50 anos desenvolveu atividades voltadas para educação, agricultura agroecológica e assistência social na região de Alto Paraíso, participando do desenvolvimento cultural do local. Daí sua estreita vinculação com o artigo 8º da Declaração de Friburgo, da Cooperação Cultural, que é percebida principalmente nas ações de intercâmbio entre várias culturas, a partir da convivência entre os membros colaboradores da instituição, oriundos de diversas regiões e países com os habitantes da própria região. O que resultou em muitas trocas e aprendizagens simultâneas de hábitos, costumes e tradições, evidenciando o partilhamento, já destacado por nós neste artigo.
Já sob outro ângulo, não excludente, mas complementar, percebe-se também uma grande aproximação desta intervenção com o artigo 9º da Declaração de Friburgo, Princípios de uma Administração Democrática, principalmente no que se refere a um dos objetivos previstos e alcançados no projeto, que foi a implantação da Casa de Memória - Verda Klubo (Clube Verde) e sua abertura à visitação pública. As autoras, enquanto atores culturais nesse processo, apoiadas pela própria instituição onde desenvolveram seu trabalho, tomaram para si “as obrigações de respeitar, proteger e implementar os direitos culturais”, que compõem o artigo 9º, tomando iniciativas que propiciem “desenvolver meios de consultação e participação” e de “Assegurar, em particular, o exercício interativo do direito a uma informação adequada”.
Consideramos, enfim, que ao leitor será muito útil e prazeroso conhecer os trabalhos aqui elencados. A você, nosso desejo de uma ótima leitura, aquisição de conhecimentos e fruição cultural!
Goiânia, 2017.