Licenciatura em Artes visuais Percurso 3
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Pensamento e Investigação em Arte e Educação

Autor

Dr.Raimundo Martins Professor Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), é Pós-Doutor em Arte e Cognição pela Universidade de Londres (Inglaterra) e em Arte e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona (Espanha). É Doutor em Educação/Artes pela Southern Illinois University (EUA) e Mestre em Artes pela Andrews University, Michigan (EUA). É pesquisador do Laboratório Imagem e Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) da Universidade Federal de Santa Maria e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (GPCVE) da Universidade Federal de Goiás. Membro do Conselho Editorial de várias revistas no Brasil e no Exterior, é Editor da Coleção Desenredos – Núcleo Editorial da FAV/UFG. Tem artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior e coordena (c/Irene Tourinho) a Coleção Cultura Visual e Educação, publicada pela Editora da UFSM, cujos títulos já lançados são: Processos & Práticas de Pesquisa em Cultura Visual & Educação(2013); Culturas das Imagens: desafios para a arte e para a educação (2012); Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos (2011); Cultura Visual e Infância – quando as imagens invadem a escola... (2010); Educação da Cultura Visual: narrativas de ensino e pesquisa (2009). É membro da International Society for Education Through Art (INSEA) e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). No semestre letivo 2013/2014, foi professor visitante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona.

Saiba mais

Apresentação

Depois que trabalhamos juntos na disciplina Arte, Percepção e Aprendizagem, me sinto mais próximo de vocês, mas devo revelar que me sinto também mais familiarizado com a dinâmica, as características e, principalmente, as peculiaridades do ensino a distância. Em alguns momentos dessa disciplina, nossa caminhada será intrigante, em outros, nos deixará curiosos e inquietos diante de dúvidas e incertezas que podem ser dissolvidas ou incrementadas à medida que percorrermos o caminho.

Maneiras de abordar e pensar a pesquisa em arte/educação serão privilegiadas e terão como foco a pesquisa qualitativa. Cotidiano, diversidade, pesquisa, cultura e experiência são alguns temas que compõem esse itinerário visando tornar mais operacional o nosso trânsito entre noções/conceitos como teoria, prática, método, sujeito, individual, coletivo etc. Faremos, também, um exercício de pesquisa etnográfica, ou seja, utilizaremos esta técnica de coleta de dados, informações e imagens para o desenvolvimento da investigação. Espero que essa nova caminhada seja produtiva, mas, sobretudo, uma experiência educacional enriquecedora.

Unidade 1: Pesquisa qualitativa e cotidiano

1.1. Bases teóricas e características da pesquisa qualitativa

O espaço da pesquisa qualitativa é o mundo da experiência vivida. Quando falamos do ‘mundo da experiência vivida’, estamos nos referindo a um espaço dinâmico e complexo onde “crença individual e ação se intersectam com a cultura” (DENZIN & LINCOLN, 2003, p. 12). Esse entrecruzamento entre crença individual — que todos temos de alguma maneira — ação e cultura caracteriza o modo como a pesquisa qualitativa configura abordagens que situam e localizam o indivíduo no mundo.

A pesquisa qualitativa pode significar coisas diferentes para diferentes pessoas, mas, apesar das divergências, há alguns princípios que são comuns. Nesse sentido, podemos dizer que a pesquisa qualitativa envolve

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Um conjunto de práticas materiais e interpretativas que fazem o mundo visível. Essas práticas transformam o mundo. Elas tornam o mundo uma série de representações, incluindo notas de campo, entrevistas, conversações, fotografias, gravações e anotações pessoais. (DENZIN & LINCOLN, 2003, p. 4)

Fazer o mundo visível ou transformar o mundo para fazê-lo visível pressupõe estudar processos envolvendo o uso, a apreciação ou a valoração de coisas, objetos e manifestações no ambiente em que esses fenômenos acontecem, transformam-se e/ou são transformados. A pesquisa busca interpretá-los levando em consideração o significado que as pessoas dão ou atribuem a essas práticas envolvendo suas relações, sentidos e significados.

Essa relação entre cultura e significado explica porque cada prática concreta e interpretativa, cada abordagem de pesquisa e análise de fenômenos podem fazer o mundo visível de um modo diverso. Em diferentes contextos culturais — sociedade, comunidade, instituição etc. — a mesma prática, atitude, conceito, objeto, pode ter sentido ou significado diversificados que não são fixos nem estáveis.

Assim, fica evidente que a pesquisa qualitativa se preocupa em propor explicações — mais do que buscar respostas — para questões que enfatizam como a experiência social é criada e as múltiplas maneiras como sentidos e significados são construídos. Tenta estudar e compreender “a natureza socialmente construída da realidade, a relação íntima entre o pesquisador/a e o que é estudado e as condições/limites que configuram a pesquisa” (DENZIN & LINCOLN, 2003, p. 13).

Em razão das características da pesquisa qualitativa, as competências comunicativas e de observação dos pesquisadores ganham importância e se constituem em instrumentos chave na coleta de informações. Uma implicação decorrente desse modo de conceber e abordar a pesquisa é compreender que não há neutralidade no papel dos pesquisadores, pois a pesquisa é, de certa forma, uma intervenção em um sistema social e, portanto, representa uma intrusão no cotidiano da instituição, da comunidade, da sociedade.

Nesse sentido, a entrada em campo para a coleta de dados/informações deve se desenvolver, desde o início, como uma relação de respeito mútuo e confiança para que a pesquisa seja acolhida e o acesso aos ambientes e sujeitos com os quais se pretende estudar seja facilitado. Quando falamos em coleta de dados e informações, não nos referimos apenas a entrevistas, questionários, depoimentos ou relatos, mas, principalmente a imagens, fotografias, vídeos e filmes, informações visuais que estão sendo cada vez mais utilizados na pesquisa qualitativa. Assim, é importante compreender que o pesquisador faz escolhas e define pontos de vistas, mas, precisa negociar suas decisões em acordo com as circunstâncias e condições que encontra no campo de pesquisa.

Olho vivo

Sempre que você encontrar no texto o ícone [V], você terá o desafio de pesquisar o significado da palavra e acrescentar ao glossário da disciplina. Converse com seu professor sobre o formato mais interessante para construir esse importante espaço de pesquisa.

Este reconhecimento da importância e necessidade de utilização dos meios/recursos visuais pode se atribuir ao “desejo por parte do pesquisador de ultrapassar os limites da análise das próprias ações em sua decorrência natural” (FLICK, 2004, p. 171). Este modo de trabalhar, de fazer pesquisa valorizando a coleta de dados [V] empíricos e buscando espaços coletivos, dialógicos, é uma iniciativa no sentido de permitir que outras vozes (alunos, professores, pais) sejam incorporadas à pesquisa, não apenas como “uma maneira de inscrever [o] trabalho em um movimento político coletivo”, mas, principalmente, como “uma maneira de praticar” o que os pesquisadores dizem (BRAIDOTTI, 2000, p. 81).

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Praticar o que dizemos, ou seja, exercitar e viver no cotidiano as convicções, crenças e princípios que orientam nosso trabalho como professores pesquisadores é fundamental para a prática da pesquisa qualitativa. É uma maneira adequada de lidar com questões humanas, artísticas e educacionais alicerçadas em princípios éticos. É, também, uma maneira eficaz de construir uma prática de pesquisa pautada na honestidade acadêmica.

Vale salientar que este tipo de pesquisa exige esforço, mas, sobretudo pressupõe disponibilidade para ver o mundo de diversas maneiras e flexibilizar [V] posições de sujeito, para buscar um “modo de tornar realidade a ideia de deslocar o ‘eu’ do centro do projeto de pensamento e somá-lo a um projeto coletivo” (BRAIDOTTI, 2000, p. 81). Somos educados para ver o mundo a partir de um ponto de vista - em geral o nosso, individual — e nos comportamos como se esse ponto de vista fosse o único ou o melhor. Assim, nosso olhar tem uma projeção unidirecional, ou seja, de mim para o outro, posição que reforça ao mesmo tempo em que reduz as possibilidades de experimentar muitas outras maneiras de ver e abordar o mundo, o outro, o ensino de arte, a docência e, principalmente, a prática da pesquisa. Assim, deslocar o ‘eu’ do centro do projeto de pensamento e somá-lo a um projeto coletivo, como propõe Braidotti (2000), quer dizer considerar e dialogar com outras ideias, outras práticas de pesquisa, estar aberto para outras visões de mundo e de ensino de arte que podem ser mais adequadas, mais ricas, pertinentes e ousadas que a nossa.

Desse modo, devemos estar atentos para o fato de que a perspectiva qualitativa não se limita à prática investigativa. Pelo contrário, ela

abarca a aprendizagem e o ensino, e questiona o processo de ‘ditatorialização’ do sujeito que se dá inclusive pelos muitos olhares a partir dos quais estamos vendo, controlando, medindo, despindo e vestindo nossas subjetividades. Aprender e ensinar a partir desta perspectiva significa deter-se – para debater e interrogar – nos tipos de investimentos afetivos que são escolhidos e despendidos entre e com os sujeitos nas salas de aula (MARTINS e TOURINHO, 2005, p. 98).

A pesquisa qualitativa nos ajuda a “ver o invisível... e a duvidar do que se vê” (ESTEBAN, 2003, p. 200). Auxilia no desenvolvimento de um olhar mais acurado para farejar e localizar temas e questões aparentemente desprezíveis e irrelevantes. Tais temas e questões podem mediar articulações e relações complexas, além de apontar outros modos de viver e pensar presentes na dinâmica de processos sociais e educacionais. A pesquisa qualitativa pode, também, ampliar nosso repertório e contribuir para entender diferentes possibilidades de interpretação do cotidiano com as incertezas que assediam as práticas escolares, mas que dão sentido à nossa atividade profissional como arte educadores.

Unidade 2: Cotidiano e diversidade

O cotidiano é o espaço onde se constrói e se vive aquilo que é comum e habitual ao ser humano. Pode ser tratado também como palco das experiências vividas no dia-a-dia, lugar que ambienta a relação de espaço e tempo no qual nossas vivências acontecem. Ser professor de arte e trabalhar com pesquisa qualitativa não é apenas uma busca para perceber ou mapear o invisível ou duvidar do que se vê. É, ainda, uma maneira de expor constantemente o nosso trabalho a análise e a avaliações coletivas.

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A canção [V] Cotidiano, de Chico Buarque, é um exemplo que ilustra com clareza hábitos e coisas que fazemos ou se sucedem todos os dias na nossa rotina diária. Leia, ouça ou cante a canção refletindo sobre o tipo de cotidiano que o autor descreve.

Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca
De hortelã...

Todo dia ela diz
Que é pr’eu me cuidar
E essas coisas que diz
Toda mulher
Diz que está me esperando
Pr’o jantar
E me beija com a boca
De café...

Todo dia eu só penso
Em poder parar
Meio-dia eu só penso
Em dizer não
Depois penso na vida
Prá levar
E me calo com a boca
De feijão...
Seis da tarde
Como era de se esperar
Ela pega
E me espera no portão
Diz que está muito louca
Prá beijar
E me beija com a boca
De paixão...

Toda noite ela diz
Pr’eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pr’eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor...

Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca
De hortelã...

Todo dia ela diz
Que é pr’eu me cuidar
E essas coisas que diz
Toda mulher
Diz que está me esperando
Pr’o jantar
E me beija com a boca
De café...

Todo dia eu só penso
Em poder parar
Meio-dia eu só penso
Em dizer não
Depois penso na vida
Prá levar
E me calo com a boca
De feijão...

Seis da tarde
Como era de se esperar
Ela pega
E me espera no portão
Diz que está muito louca
Prá beijar
E me beija com a boca
De paixão...
Toda noite ela diz
Pr’eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pr’eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor...

Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a
boca
De hortelã...

Atividade

O cotidiano de professores de arte é povoado por rotinas administrativas, escolares e artísticas que envolvem tarefas e responsabilidades como fazer planejamento, preparar aulas, organizar material didático, organizar visitas a exposições, fazer avaliações, atender a pais de alunos etc. Reflita sobre o seu cotidiano como professor, aluno ou profissional e elabore uma narrativa em forma de prosa, versos ou imagens (narrativa visual) sobre a sua atividade de um dia. Se a narrativa for escrita, não deve exceder uma página. Se for visual, não deve exceder quinze imagens.

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Apesar das rotinas que configuram o nosso dia-a-dia, é necessário reconhecer que o cotidiano, aparentemente simples, é complexo e sempre vem acompanhado de surpresas, flagrantes e informações que se entrecruzam com ideias e sentimentos de alegria, tristeza, desejos, decepções, prazeres, arrependimentos e expectativas que nos invadem e influenciam nosso modo de pensar, ver e nos relacionar com o mundo. Esses aspectos caracterizam a nossa condição como seres humanos e, sobretudo, a nossa vulnerabilidade como arte educadores. Em decorrência, convivemos com sentimentos que nos angustiam ao mesmo tempo em que expõem a nossa incapacidade de compreender e responder questões sobre a morte, a contradição, a resistência ao outro e assim por diante.

Em razão da nossa condição humana, podemos dizer que, apesar da complexidade, conforme vimos acima, o cotidiano é regido por um dualismo esquemático que envolve dois tipos de perspectivas: as generalistas e as especializadas.

2.1. Duas perspectivas de mundo e suas representações

As Perspectivas Generalistas (PG) têm como característica as representações intelectuais que tomam como referência a [V] abstração (ideias, noções, conceitos etc.). A ênfase das perspectivas generalistas está na construção, na crítica, nos mecanismos e concepções que se desenvolvem através de práticas consideradas racionais. As Perspectivas Especializadas (PE) têm como característica representações que se constroem via empatia, ou seja, a tendência para ser solidário, para sentir situações ou circunstancias vividas por outra pessoa. Assim, a ênfase das perspectivas especializadas está na sensibilidade, na percepção, nos processos que se desenvolvem através de [V] metáforas, via [V] imaginação.

Tanto as PGs quanto as PEs têm regras próprias, atendem a interesses e motivações específicos e, consequentemente, estão orientadas para a escolha e estudo de determinados temas, fenômenos e objetos. No campo da pesquisa, as PGs têm mais tradição e, portanto, são mais conhecidas, ou, dizendo melhor, elas são a referência histórica no processo de construção do conhecimento no Ocidente. Além da tradição, isso se deve também ao fato de que as PGs estão originalmente associadas aos conceitos de [V] ciência e [V] cientificidade, à ideia de medida, [V] quantidade e erudição — um tipo de formação que se acreditava acessível apenas a indivíduos talentosos, inteligentes ou bem dotados, ou, ainda, àqueles devidamente selecionados e iniciados na pesquisa. As PGs deram origem à noção de conhecimento ‘universal’ alicerçado nos princípios da [V] probabilidade e da [V] mensuração, e que, durante quase três séculos, dominou a prática da pesquisa se tornando referência para as várias áreas de conhecimento.

Ao contrário das Perspectivas Generalistas, as Perspectivas Especializadas têm um caráter descritivo e interpretativo, destacando o significado que as pessoas dão às coisas, salientando a [V] qualidade de processos e produtos simbólicos situados num determinado contexto. Desse modo, as PEs têm como foco práticas de pesquisa que revelam parte da realidade ao mesmo tempo em que ocultam outros aspectos. A pesquisa qualitativa nos ajuda a compreender que o que conhecemos, ou seja, aquilo que construímos ou consideramos presente em narrativas históricas, artísticas, institucionais e individuais, são visões de mundo que apresentam apenas parte de uma totalidade. Imersas numa multiplicidade de discursos, práticas e relações de poder marcadas pela diferença ou pela exclusão, esses pedaços de realidade nos instigam, desafiam e, de certa forma, justificam a nossa busca e investigação das partes ausentes. Assim, no contexto das PEs ou da pesquisa qualitativa, o conhecimento se constrói a partir de indícios, sintomas e fragmentos interpretados que formam uma trama de sentidos e significados que tecem a pesquisa.

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As Perspectivas Generalistas também são chamadas de Paradigmas Deterministas e as Perspectivas Especializadas são conhecidas como Paradigmas Interacionistas. Paradigmas são modelos, matrizes que representam uma maneira de construir explicações teóricas para os fenômenos do mundo em que vivemos e que nos rodeia. Eles funcionam como base e referência para o desenvolvimento de estudos e pesquisas.

O paradigma determinista se apóia no princípio de que os acontecimentos, vontades e escolhas humanas têm sua origem em vivências anteriores, ou seja, o ser humano é fruto direto do meio, do ambiente em que vive e, por consequencia, não tem liberdade para decidir ou influenciar os fenômenos dos quais é parte. Por sua vez, o paradigma interacionista tem como fundamento a interação indivíduo-cultura, ou seja, a necessidade de o indivíduo se inserir em um ambiente cultural para que ocorram mudanças no seu desenvolvimento. Colocando de outra maneira, podemos dizer que os indivíduos agem em relação a fenômenos, manifestações e objetos, baseando-se no significado que tais elementos têm para eles. Assim, os significados resultam da interação social e podem ser modificados a partir da interpretação dos indivíduos.

Os dois paradigmas — Determinista e Interacionista — têm como foco e referência o indivíduo, o ser humano. O que os diferencia é o propósito e o modo como são aplicados. Os paradigmas deterministas trabalham com o método nomotético e os interacionistas com o método ideográfico.

Essas duas palavras são pouco conhecidas e podem gerar estranheza, mas não são complexas ou difíceis como podem parecer. O método nomotético se refere e é utilizado pelas ciências que tratam de leis e generalizações da natureza, enquanto o método ideográfico é utilizado pelas ciências que discutem e lidam com fatos e acontecimentos humanos singulares, como a história, a arte e a filosofia. Os dois métodos fazem uso de imagens para representar as suas explicações teóricas sobre o mundo. As imagens são, talvez, o principal elemento que os define, diferencia e caracteriza.

2.2. A Abordagem Nomotética

A abordagem nomotética usa representações gráficas retilíneas ou com curvas, através das quais se pode obter as soluções de uma equação determinada pelo simples traçado de uma reta. Um exemplo concreto desse tipo de representação é o [V] ábaco. As representações do método nomotético são conhecidas como gráficos que, além de linhas ou curvas, também podem utilizar números, letras ou ambos. Veja o exemplo de um nomograma que utiliza apenas linhas retas (Figura 1).

A seguir, observe o exemplo de um nomograma com linhas retilíneas, números, letras e cores (Figura 2).

Figura 1. nomograma retilíneo
Figura 2. variações nomograma retilíneo com número
Figura 3. Nomograma de Astrand Ryhming para avaliação física

Observe no exemplo seguinte (Figura 3), um nomograma com linhas, números, letras, setas e texto, utilizado para definir frequência cardíaca em avaliações físicas para ambos os sexos. O exemplo seguinte é um gráfico estatístico. A estatística é uma parte da matemática que pesquisa a coleta, organização e análise de dados sobre uma população de quaisquer seres, possibilitando que sejam feitas conclusões e/ou previsões a partir desses dados (Figura 4).

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Figura 4.

Os nomogramas também servem para representar através de linhas, planos, cores e textos a criação de estruturas, dispositivos e processos de engenharia (muros de contenção, colunas de deslocamentos e nível do solo) para converter recursos naturais em formas de atender necessidades humanas (Figura 5).

Figura 5.

2.3. A Abordagem Ideográfica

A abordagem ideográfica veicula a representação de ideias por meio de sinais que reproduzem objetos concretos. É um modo de representar ideias, sentimentos, conceitos e imaginação por meio da escrita e de imagens. As práticas de pesquisa ideográficas têm sua ênfase na qualidade dos objetos, das relações, valores e afetos representando os fenômenos e o mundo dos símbolos e dos significados. O Código de Hamurabi (Figura 6) é um dos registros ideográficos mais antigos já encontrados e um dos exemplos melhor preservados desse tipo de documento que se encontra atualmente no Museu do Louvre. É um monumento monolítico, talhado numa pedra e em escrita cuneiforme. Calcula-se que tenha sido elaborado por Hamurabi, rei da Babilônia, aproximadamente por volta do ano 1700 a.C. É importante ressaltar que, como registro ideográfico, o Código de Hamurabi tem imagem e texto.

Figura 6. Código de Hamurabi

Durante muitos séculos, o método e as práticas ideográficas foram preservados por [V] escribas e artistas que se dedicavam à cópia e redação de livros que eram escritos à mão e ilustrados com [V] iluminuras, ou seja, pinturas. Os copistas copiavam os livros à mão e a perfeição com que executavam o trabalho fazia com que demorassem anos para concluir um livro. Os livros eram raros e caros e, por esta razão, ficavam muitas vezes presos a uma corrente por uma questão de segurança. Praticamente, só os copistas sabiam ler e eram considerados cultos (Figuras 7, 8).

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Figura 7. escriba no espaço de trabalho (detalhe)
Figura 8. Instrumentos de um copista. Tinteiro, penas, compassos, tesouras... (Representação feita sobre um frontispício que ornamenta um tratado de caligrafía composto em 1524 pelo italiano Giovanni Andrea Tagliente).

Apesar das dificuldades, percalços e censuras religiosas, econômicas e políticas, práticas de pesquisa ideográficas como a escrita foram preservadas e chegaram até os nossos dias. Hoje, elas são consideradas comuns e até mesmo triviais porque um grande contingente de pessoas tem acesso à educação e à escrita (Figura 9).

Figura 9. Aluno copiando o texto de um livro. Foto: Eduardo Ávila

Todavia, cumpre salientar que práticas ideográficas como a pintura — conhecida pelos copistas medievais como iluminuras — a gravura e a escultura perderam status e reconhecimento social. Em decorrência, em muitos países, essas práticas de ensino têm pouco espaço no sistema escolar ou são tratadas como mero adereço, algo secundário ou até mesmo dispensável na formação educacional, cultural e humanista dos cidadãos (Figura 10).

Figura 10. Pintor trabalhando no ateliê (fotomotagem.) Foto: Eduardo Ávila

Agora que estamos familiarizados com as duas perspectivas de mundo — Generalista e Especializada ou quantitativa e qualitativa — que dominam as práticas de pesquisa e, também, que você tem alguma noção das implicações metodológicas dessas práticas (abordagem nomotética e abordagem ideográfica), podemos afirmar que a pesquisa qualitativa exige diligência audaciosa, cuidado ativo, cumplicidade e empatia com o objeto/tema de investigação. Essa especificidade caracteriza a pesquisa em ciências humanas, mas, especialmente, o pensamento e a investigação em arte e educação.

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Dica de filme

Assista ao filme A Tribo dos Krippendorf (1998), Direção de Todd Holland.

Problematizando

Após assistir ao filme A Tribo dos Krippendorf identifique e descreva três práticas de pesquisa ideográfica apresentadas ou discutidas no filme.

Unidade 3: Elementos e práticas da pesquisa em ensino de arte

Como pesquisadores, somos parte do fenômeno social que investigamos e participamos desse processo permeados por valores, ideias, crenças e subjetividades que nos identificam e configuram como pessoas. Ao mesmo tempo, temos que manter em perspectiva o fato de que a realidade educativa/artística tem um caráter qualitativo tecido por situações complexas envolvendo [V] atores com diferentes crenças e valores e, ainda, dificuldades de interpretar essas.

Assim, a pesquisa qualitativa pode ser caracterizada como um conjunto de atividades interpretativas que não descrimina e nem privilegia uma prática metodológica específica. Não se pode dizer que a pesquisa qualitativa está vinculada a uma área ou disciplina, pelo contrário, ela deve ser vista como um processo interativo influenciado pela “história pessoal, pela biografia, pelo gênero, pela classe social, pela raça e pela etnicidade daquelas pessoas que fazem parte do cenário” da investigação (DENZIN e LINCOLN, 2006, p. 20-21).

No caso da pesquisa em ensino de arte, seus praticantes coletam materiais empíricos que tenham relação com fenômenos, manifestações e práticas artísticas para analisá-los, compreendê-los e escrever a respeito deles. Para encontrar significado em uma ação ou para que se entenda o que uma ação pode significar, é necessário interpretar de alguma maneira o que os atores estão fazendo e os sentidos que atribuem às suas práticas e saberes. A melhor maneira de observar ações, manifestações, relações e valores é ir a campo para observar e interagir in loco com esses atores, ou seja, no contexto em que tais fenômenos acontecem.

3.1. A Entrada em campo

Observar os fenômenos no contexto em que acontecem pressupõe ir a campo para que o pesquisador/a possa ter um contato direto com a situação a ser pesquisada/observada. No caso da nossa disciplina, ir a campo quer dizer observar e reconstruir processos e relações que caracterizam as construções cotidianas de saberes e fazeres. As técnicas de observação, também conhecidas como técnicas etnográficas — [V]observação participante, [V] entrevistas etc. — podem revelar reações, contradições, acordos e desacordos que permeiam o dia-a-dia das práticas educativas. Por meio dessas técnicas de observação, é possível descrever ações e, principalmente, representações dos atores sociais na escola — o modo como se comunicam, os sentidos que atribuem a ações, os significados que são criados e reproduzidos no cotidiano do fazer pedagógico e da prática escolar.

Por todas as razões mencionadas acima, a entrada em campo deve ser negociada e, consequentemente, demanda tempo e sensibilidade por parte do pesquisador/a. É necessário criar uma relação de respeito, empatia e confiança para que a instituição, no caso a escola, e os sujeitos com quem a pesquisa será realizada (diretor, supervisor, alunos, professores, funcionários, membros da comunidade, etc) possam sentir-se abertos para falar de dúvidas, experiências, expectativas e decepções, mas, principalmente, para fazer observações e comentários que expressem discordâncias ou críticas em relação aos discursos daqueles que são responsáveis pelas práticas e rotinas institucionais e pedagógicas. Nesse sentido, a atuação do pesquisador/a depende, em grande parte, de aspectos e atitudes éticas em torno dos quais giram questões de relação de poder.

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Ir a campo é visitar, se aproximar e tentar conhecer a escola de perto, observando, descrevendo e, posteriormente, interpretando as relações e interações que configuram o seu cotidiano. É perceber e apreender as

forças que a impulsionam ou que a retêm, identificando as estruturas de poder e os modos de organização do trabalho escolar e compreendendo o papel e a atuação de cada sujeito nesse complexo interacional onde ações, relações, conteúdos são construídos, negados, reconstruídos ou modificados (ANDRÉ, 1995, p. 41).

No contexto das artes visuais, se aproximar e tentar conhecer a escola de perto “... significa considerar que as representações visuais [imagens de arte, ficção, informação] são portadoras e mediadoras de posições discursivas que contribuem a pensar o mundo...”, que nos ajudam a “pensarmos como sujeitos...” e a compreender que essas representações/imagens “fixam a realidade de como olhar e ser olhado” (HERNÁNDEZ, 2005, p. 38). Essas representações são importantes porque trazem implicações conceituais e metodológicas, colocando pesquisador/a e espaço escolar em relação, permitindo-nos “pensar e explorar a relação entre as representações visuais e a construção de posições subjetivas” (ibid.).

Sob esta perspectiva, o espaço escolar deve ser tratado como produto de um tempo social e histórico. Deve ser observado, descrito e analisado como uma construção cultural que expresse e reflita discursos pessoais e sociais atravessados por ideias, crenças e valores.

A formação do pesquisador/a se dá através da prática investigativa, da imersão no campo específico que se quer observar e no desenvolvimento de processos interativos com os sujeitos que o pesquisador/a define como colaboradores. Assim, minha proposta é que vocês experimentem o trabalho de pesquisa construindo um projeto que envolva a escolha de um foco de estudo e contexto a ser pesquisado, a ida a campo, a observação e o registro desse processo. Chamo atenção para o fato de que essa experiência deve ser vista e vivida como um exercício inicial. Nesse sentido, a proposta não é desenvolver uma pesquisa e, sim, experimentar responsabilidades e funções que podem formar um olhar investigativo, inaugurando condições, mesmo que preliminares, de colocar em prática, conhecer e avaliar a experiência de pesquisar.

Para refletir

Vocês se lembram da investigação proposta na disciplina Ateliê de Linguagem Tridimensional para que vocês fizessem um mapeamento dos produtores de imagens presentes em seu contexto cultural? Que tal retomar estas informações? Será que seu olhar ainda é o mesmo para estas descobertas?

3.2. Projeto - Etapa 1

Escolha uma escola pública, de preferência, para realização do projeto. Antes de fazer contato com a direção da escola para solicitar autorização para fazer a observação, faça um mapeamento do local: seu entorno, características da vizinhança e do setor/bairro/região (tipos de comércio, residências, igrejas, praças, sinalização, publicidade, etc.). No mapeamento, devem constar os seguintes itens:

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Nesse mapeamento, você pode incluir fotos da escola e dos arredores, além de depoimentos de pessoas que residem na região ou têm filhos frequentando a instituição. Essas informações contribuirão para que você possa se situar em relação ao ambiente e particularidades do contexto da escola.

Feito o mapeamento, marque com antecedência uma visita à escola para conversar com o/a diretor/a ou o/a responsável administrativo. O objetivo dessa primeira visita é, inicialmente, se apresentar, falar sobre o projeto que está sendo proposto como exigência da disciplina e explicar que tal projeto é uma parte importante da sua formação como professor/a pesquisador/a. Explique, também, porque escolheu a escola e solicite autorização para realizar o projeto. Em seguida, inicie uma conversa com o responsável, levantando algumas questões para complementar seu mapeamento. Sugestão de questões:

Antes de encerrar a visita, lembre-se de deixar agendado o retorno à escola para as duas sessões de observação. Explicite seu foco e procure saber como deve ser seu trânsito e atuação no interior da instituição. Peça autorização para fazer registros fotográficos. Caso não seja permitido, fique atento ao o fato de que você dependerá apenas das suas anotações e da memória para fazer os relatórios de observação.

Atividade

Faça um relatório de cinco páginas digitadas descrevendo, caracterizando e detalhando o mapeamento da escola conforme os itens acima. Inclua, também, ideias e informações fornecidas pelo/a diretor/a ou responsável a partir da conversa realizada na primeira visita.

3.3. Projeto - Etapa 2

A proposta é que você concentre sua observação em dois períodos de recreio, em duas ocasiões diferentes. Quero ressaltar que, em outro momento, nas futuras disciplinas de estágio, você terá a oportunidade e outras orientações para fazer observação em sala de aula.

Para realizar essas duas observações dos períodos de recreio, sugiro os seguintes focos a partir dos quais você deverá escolher apenas um:

Prepare-se para a visita de observação separando seu material de registro (prancheta, lápis, papel, máquina fotográfica, etc.). Reflita sobre que aspectos relacionados a esses focos que você pode observar.

3.4. Projeto - Etapa 3

A terceira e última etapa do projeto é a elaboração do relatório final. Esse relatório tem um caráter cumulativo, ou seja, inclui os registros e relatos elaborados nas etapas anteriores. Assim, na elaboração do relatório final, você deve incluir as informações e imagens sobre o mapeamento da escola (relatório da Etapa 1) e os relatórios parciais das duas sessões de observação (relatórios das duas sessões de observação da Etapa 2). Na conclusão do relatório final, você deve refletir sobre a experiência de ir a campo para fazer esse exercício de pesquisa e os significados que as observações podem ter proporcionado através da interação e aproximação com os colaboradores.

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Problematizando

Ao final de cada sessão de observação faça um relatório parcial de três páginas digitadas descrevendo detalhes da sua observação tais como primeiras impressões, aspectos do ambiente, questões/ações que se sobressaem e, ainda, gestos, comentários, impactos e surpresas.

Considerações finais

O contato com o cotidiano escolar pode ir além do real — das condições que o caracterizam — para buscar o imaginário e nos fazer experimentar outras lógicas nos percursos educativos. Conhecer o acervo de possibilidades que as escolas oferecem é um caminho para nos aproximarmos das referências que orientam e subsidiam as escolhas e as práticas dos professores.

Conviver com situações do cotidiano escolar nos ajuda não apenas a perceber discussões e contradições pedagógicas, mas, também, debates e práticas contemporâneos que, de alguma maneira, interferem ou desafiam a nossa formação e posicionamento docente. A escola é um espaço em que alunos e professores devem aprender, experimentar e vivenciar o mundo de maneira que possam interferir e construir o mesmo. Somente através de uma reflexão conjunta sobre as situações observadas e vividas no ambiente da escola, ambos — professores e alunos — podem compreender e construir suas maneiras de compartilhar e interferir no mundo.

Problematizando

Para encerramento do projeto elabore o relatório final.

Referências Bibliográficas

ANDRÉ, Marli Eliza D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995.

DENZING, Norman. & LINCOLN, Yvonna. (Eds.) The landscape of qualitative research – theories and issues. London: Sage, 2003.

ESTEBAN, Maria T. Dilemas para uma pesquisadora com o cotidiano. In Regina Leite Garcia (Org.), Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 199–212.

FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004.

HERNÁNDEZ, Fernando. A construção da subjetividade docente como base para uma proposta de formação inicial de professores de Artes Visuais. In OLIVEIRA, Marilda e HERNÁNDEZ, Fernando (Orgs.), A formação do professor e o ensino de Artes Visuais. Santa Maria (RS): Editora da UFSM, 2005, p. 23–42.

MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. Entre contingências e experiências vividas... Propostas para pensar um ensino crítico de artes visuais. Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual, Dossiê Ensino de Arte. Vol. 3, n. 1, Jan-Jun/2005, p. 87–110.

Bibliografia complementar

ARAÚJO, Mairce da S. Cenas do cotidiano de uma escola pública: olhando a escola pelo avesso. In Regina Garcia Leite (org.), Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, p. 213–224.

MATTOS, Carmen L. G., CASTRO, Paula A. Análises etnográficas das imagens sobre a realidade do aluno no enfrentamento das dificuldades e desigualdades na sala de aula. In Inês B. de Oliveira, Nilda Alves, Raquel G. Barreto (Orgs.) Pesquisa em Educação – métodos, temas e linguagens. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003, p. 103–116.

TAVARES, Maria Tereza G. Uma escola: texto e contexto. In Regina Leite Garcia (Org.), Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 43–62.