Licenciatura em Artes visuais Percurso 3
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Arte e Cultura Visual

Autor

Dr. Raimundo Martins Professor Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), é Pós-Doutor em Arte e Cognição pela Universidade de Londres (Inglaterra) e em Arte e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona (Espanha). É Doutor em Educação/Artes pela Southern Illinois University (EUA) e Mestre em Artes pela Andrews University, Michigan (EUA). É pesquisador do Laboratório Imagem e Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) da Universidade Federal de Santa Maria e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (GPCVE) da Universidade Federal de Goiás. Membro do Conselho Editorial de várias revistas no Brasil e no Exterior, é Editor da Coleção Desenredos – Núcleo Editorial da FAV/UFG. Tem artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior e coordena (c/Irene Tourinho) a Coleção Cultura Visual e Educação, publicada pela Editora da UFSM, cujos títulos já lançados são: Processos & Práticas de Pesquisa em Cultura Visual & Educação(2013); Culturas das Imagens: desafios para a arte e para a educação (2012); Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos (2011); Cultura Visual e Infância – quando as imagens invadem a escola... (2010); Educação da Cultura Visual: narrativas de ensino e pesquisa (2009). É membro da International Society for Education Through Art (INSEA) e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). No semestre letivo 2013/2014, foi professor visitante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona.

Saiba mais

Apresentação

É comum dizer ou ouvir dizer que a experiência de aprender é prazerosa e gratificante. Embora comum, essa ideia parece discutível e contraditória. Posso lembrar-me de situações em que aprendi com satisfação, alegria e prazer. Mas também posso recordar de outras situações em que aprender foi difícil e, mais do que isso, acompanhado por apreensões, preocupações e algum tipo de sofrimento. Essas experiências, comuns à maioria daqueles que estudam, revelam a importância que as sociedades do mundo ocidental conferem ao estudar e ao aprender, seja em contextos/instituições formais, não formais ou informais.

No itinerário desta disciplina, conceitos de arte, imagem e cultura serão discutidos focando a centralidade das visualidades para a produção de significados, mas, sobretudo, o modo como elas podem produzir diferentes concepções de arte e cultura visual. Práticas culturais do olhar serão examinadas, ressaltando como elas constroem socialmente a experiência visual e influenciam o nosso modo de ver, gerando implicações ideológicas, culturais e políticas para o ensino de arte. Ao planejar esta disciplina – textos, imagens e atividades – tenho a expectativa de que sua experiência ao cursá-la seja prazerosa e, principalmente, significativa na sua formação educacional.

Unidade 1: Visão, visual e visualidade

O significado da palavra “visual” parece simples e evidente e, por essa razão, muitas vezes, não nos preocupamos com esse significado que, para muitos, não merece maiores comentários ou considerações. De maneira geral, o termo visual inclui os sistemas de comunicação visual, os ambientes visuais que nos circundam, a produção, a circulação e o consumo de imagens e produtos visuais. No entanto, vale ressaltar que esse conceito além de estabelecer questões complexas, gera outro termo relacionado ao visual como, por exemplo, “visualidade”.

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Quando falamos em visão, estamos nos referindo à fisiologia dos olhos e à psicologia da percepção. O olho é um aparato biológico, ou seja, um orgão que nos permite detectar a luz e transformar a percepção da luz em impulsos elétricos. O princípio que assegura esse processo e esse conhecimento está baseado em dois momentos: o primeiro, físico, ao detectarmos a luz; e o segundo, eletroquímico/cerebral, quando a percepção da luz é transformada em impulsos elétricos. Graças a esse processo, somos capazes de produzir imagens mentais. Quando falamos de imagem mental, estamos nos referindo às imagens que têm origem na mente, ou seja, as imagens que a mente produz. Ao imaginarmos um avião, um peixe, uma pessoa, uma ideia ou qualquer outro objeto, estamos produzindo imagens mentais. Essas imagens podem ter cor, movimento e som porque a mente opera através de imagens.

Para refletir

Observe na figura 1, a estrutura física do olho e, em seguida, assista ao vídeo “Visão – Janelas para o Mundo”. Você terá a oportunidade de fazer uma viagem exploratória pelos delicados tecidos que compõem os olhos, de compreender como a luz penetra no seu corpo e, através de impulsos elétricos, leva cores e formas até o seu cérebro transformando-os em imagens.

Figura 1: Estrutura física do olho

A maneira como as imagens são captadas por nossos olhos afetam ou refletem aspectos do nosso entorno, da sociedade e do modo como vivemos. A percepção de qualquer imagem é afetada pelo que sabemos, pensamos e, especialmente, pelas nossas convicções e crenças. Por essa razão, podemos dizer que as imagens incorporam uma forma de ver, e, consequentemente, o modo como vemos interfere na nossa maneira de interpretar. Isso nos ajuda a compreender que hoje a realidade da imagem é definida pelas práticas culturais numa sociedade em que a tecnologia e os recursos visuais têm sido potencializados pelo volume crescente de imagens que invadem o cotidiano “influenciando comportamentos, induzindo preferências e simulando desejos e expectativas” (VALENÇA; PEREIRA; MARTINS, 2008, p. 245). Com muita propriedade, Berger (1999) coloca em perspectiva essa relação entre ‘visão’ e ‘visual’ como espaço de trânsito construído através de práticas culturais onde fluem imagens e ideias:

Ver precede as palavras. A criança olha e reconhece, antes mesmo de poder falar. Mas existe ainda outro sentido no qual ver precede as palavras: o ato de ver que estabelece nosso lugar no mundo circundante. Explicamos esse mundo com as palavras, mas as palavras nunca poderão desfazer o fato de estarmos por ele circundados. A relação entre o que vemos e o que sabemos nunca fica [de fato] estabelecida. (p. 7)

A relação entre o que vemos e o que sabemos é potencializada e ganha contornos específicos quando consideramos o volume e a intensidade das imagens que inundam as várias dimensões da vida humana, influenciando comportamentos, sugerindo preferências, simulando e até mesmo incutindo desejos e expectativas. Assim, faz-se necessário incluir a materialidade das representações visuais no horizonte das nossas preocupações para entender e tratar as imagens como objetos, artefatos que participam e influenciam as relações sociais. Como explica Mitchell (2003, p. 29), “a visão e todas as formas visuais constituem a expressão de relações de poder, nas quais o espectador domina o objeto visual, enquanto as imagens e seus produtores exercem poder sobre os observadores.”

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Vemos através de enquadramentos, referências e filtros produzidos pela cultura e pela nossa trajetória e história pessoal. Por essa razão, a cultura visual pode ser definida como um modo de ver, perceber, pensar e dar sentido ao mundo. Deve ser compreendida como uma abordagem que inclui todos os artefatos visuais, formas e modos de pensar que configuram nossa percepção da vida cotidiana.

A arte é um campo de conhecimento que fornece repertório e técnicas para o estudo da cultura visual, contribuindo de maneira significativa para a compreensão da história e da cultura dos artefatos/objetos visuais. Como abordagem de estudo e pesquisa, a cultura visual trata os processos do ‘ver’ como práticas sociais que acontecem em contextos particulares/específicos alicerçados em experiências vividas que se situam histórica e culturalmente.

O foco desse campo de estudo inclui a produção, circulação e consumo de imagens e de artefatos artísticos e, principalmente, a interação entre observador/indivíduo e observado, objeto/artefato. Assim, ao estudo de manifestações “imagéticas” da cultura se acrescenta, também, a necessidade de compreender os mecanismos de produção de sentido socialmente construídos e, portanto, mutáveis, dependendo do contexto, das práticas comunitárias ou societais e da época em que foram vividas. Esses mecanismos têm um caráter dialógico, relacional e, consequentemente, não são pré-formados ou imanentes aos objetos/artefatos visuais. Colocando de outra maneira, as imagens não trazem, não têm um significado próprio a ser desvelado ou decodificado. O sentido/significado da imagem emerge na relação indivíduo ou, dizendo melhor, na interação imagem/objeto–espectador. Assim, quando falamos de visualidade, referimo-nos a um processo de sedução, rejeição e cooptação que se desenvolve a partir da interação do indivíduo com imagens ou objetos/artefatos artísticos.

Esse processo tem sua origem na experiência visual. Podemos caracterizar a experiência visual como uma espécie de cosmos imagético que nos envolve ao mesmo tempo em que nos assedia, sugerindo e até mesmo gerando links com nossos repertórios individuais. Esses repertórios individuais incluem imagens de infância, de família, de amores, conflitos, acasos, azares e dissabores. Enfim, são imagens associadas a situações marcantes que, por razões diversas, preservamos para nos proteger das emoções que elas acionam ou, ainda, que guardamos com afeto – e nos reservamos o direito de reviver as emoções que elas desencadeiam apenas em épocas ou momentos especiais. (MARTINS, 2009, p. 34)

Por isso, podemos dizer que a experiência visual e seus repertórios são uma espécie de ponte que possibilita trânsitos e acessos entre conhecimentos objetivo e subjetivo. Esses repertórios, configurados por referências culturais influenciam e, de certa forma, orientam nossas práticas de ver.

Não é mais possível negar e muito menos ignorar o fato de que hoje as imagens são trabalhadas como eixo convergente de narrativas “espetacularizadas” e “ressignificadas” que concentram conflitos ou crises políticos e morais, questões econômicas e sociais, dilemas éticos e práticas de pesquisa que acabam por fazer das narrativas imagéticas um importante recurso para pensar, refletir e educar.

Vale a pena lembrar que conflitos e crises são parceiros históricos, sempre presentes na trajetória dos seres humanos. Podemos falar de crise psicológica, crise existencial, crise de identidade, de conhecimento, de moralidade, de poder, de confiança... Crise política, financeira, econômica e assim por diante. O conhecimento humano se constrói a partir de múltiplas narrativas que muitas vezes, evoluem de crises individuais ou coletivas, de diferentes tipos e duração que impedem, impulsionam ou desencadeiam acontecimentos que viram história, que geram revolta ou convulsão.

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Nesse cenário de crise, estamos vivendo uma territorialização do campo visual, que se revela de modo sutil, alterando e até mesmo interferindo nas nossas concepções de tempo, espaço e lugar. Arte e imagem são foco dessa territorialização do campo visual, em que se inscrevem narrativas, trajetórias e histórias que nos desafiam e nos instigam, confrontando-nos com interesses educacionais, políticos, afetivos e econômicos que demarcam nossas diferenças sociais e culturais. Podemos dizer que há uma mudança de visão, mas a necessidade e a velocidade de consumir dos indivíduos parece permanecer porque existem produtos, artefatos e imagens para todos os bolsos. Como diz Bauman (2010, p. 34), “a cultura também se transforma num armazém de produtos destinados ao consumo...”. Isso nos leva à constatação de que essa territorialização do campo visual tem diferentes implicações para diferentes indivíduos, explicitando e definindo não apenas o modo como vemos, mas, também, e principalmente, como e o que somos capazes de ver.

A territorialização do campo visual nos leva a uma outra crise conhecida como a “crise da representação”, que pode ser sintetizada através de algumas perguntas: Como descrever e representar experiências de outras pessoas, comunidades, e outras culturas? Como interpretar essa nova territorialização do campo visual, que se manifesta de maneira sutil, interferindo nas concepções de espaço, tempo e lugar? Ou, ainda, como educar indivíduos para essa territorialização do campo visual, que cria modos de ver insidiosos e produz novas formas de sociabilidade que repercutem de modo surpreendente sobre a subjetividade dos indivíduos?

Na pós-modernidade, o consumo de objetos, jogos e artefatos é representado ou associado a imagens e, consequentemente, a pulsão para consumir não está apenas vinculada ao produto em si, mas, à sua representação estética, destacando sua dimensão expressiva. Pode-se dizer que esses artefatos não valem pelo preço, mas pelo que representam emocionalmente. Assim, nossas experiências e escolhas falam do mundo em que vivemos mesmo em sociedades/comunidades mais pobres e em condições econômicas precárias.

Por essa razão, campanhas institucionais/publicitárias têm como foco a imagem de artefatos/produtos a serem consumidos porque marcas, logos e grifes funcionam como atalhos mentais que nos persuadem a escolher aquelas que, por alguma razão, transmitem confiabilidade e credibilidade. Isso depende da classe social, e essas escolhas estão ligadas à informação e recursos, mas operam através da idealização e da expectativa dos indivíduos que querem se ver refletidos nos objetos/produtos/imagens de sua preferência.

Assim, o papel que imagens e objetos de arte tem na vida cultural e, especialmente, deveria ter nas instituições educacionais, é articular, colocar em cena e fazer circular a diversidade de sentidos, significados e valores que essas imagens e objetos geram.

Chamo atenção para o fato de que pessoas de uma mesma comunidade ou grupo social podem conviver no mesmo território visual, com os mesmos objetos e imagens; mas, apesar de conviver com imagens, objetos e visualidades que lhe são comuns, cada pessoa as experimenta e interpreta de maneira diferente, contribuindo para ampliar não apenas o acervo de interpretações e de sentidos da territorialidade visual, mas, principalmente, seus espaços de diversidade.

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De maneira simples, Freedman (2006) descreve com clareza o momento/contexto em que estamos vivendo ao explicar que,

As relações discursivas têm cada vez mais se tornado visuais e os símbolos visuais, com freqüência, são utilizados como uma forma de discurso. (...) O discurso da crítica cultural tem sido especialmente influente através do uso de formas visuais. (...) Estas relações discursivas podem parecer escondidas, ou apenas insinuadas, devido à distante interação entre criadores e espectadores... As pessoas respondem de maneiras diversas aos transmissores de imagens como livros, filmes, televisão, as artes, a web, e este tipo de interação implica grandes públicos e [nem sempre] exige uma resposta reflexiva. (p. 28-29).

A variedade de maneiras para transmitir imagens através de livros, revistas, filmes, televisão, celulares, outdoors, orkut, facebook, objetos de arte e web de que dispomos na contemporaneidade configura o que denominamos ‘cultura visual’, ou seja, uma “diversidade de práticas e interpretações críticas em torno das relações entre as posições subjetivas e as práticas culturais e sociais do olhar”. Colocando de outra maneira, podemos dizer que a cultura visual é um “movimento cultural que orienta a reflexão e as práticas relacionadas a maneiras de ver e de visualizar as representações culturais e, em particular, (...) as maneiras subjetivas e intersubjetivas de ver o mundo e a si mesmo” (HERNÁNDEZ, 2007, p. 22).

Desse modo, a cultura visual valoriza a experiência visual dos indivíduos e seus repertórios, incluindo “as representações e as imagens [que] fluem pela vida diária, valorizando formas culturais como o cinema e a televisão, criando uma espécie de névoa que encobre as regiões de fronteira entre as imagens de arte e de não-arte” (BECKER, 2009, p. 26). Nesse processo de compreensão que se desenvolve a partir de objetos, artefatos e imagens, as visualidades ganham sentido como representações que transitam e emergem de repertórios visuais criando associações, acionando referências e evocando contextos. Assim, podemos dizer que as representações visuais são moldadas por práticas subjetivas e culturais que as transformam em visualidades.

Hoje, podemos dizer que a realidade é inseparável das imagens e da ficção porque vivemos em um mundo interpretado, um mundo que muda e se transforma, exigindo a realização de constantes e múltiplas re-descrições e interpretações. Essa nova configuração ideológica, conceitual, política e imagética do passado e do presente coincide com uma renovação temática e epistemológica que a cultura visual se propõe a realizar na atualidade. São transformações produzidas de maneira crescente, iniciativas que incorporam deslocamentos de noções rígidas sobre espaço, local e temporalidades para modos flexíveis de estudar e analisar arte e imagem. Esses modos contemplam múltiplas maneiras de ver e novas abordagens de perceber e interpretar. Esses novos modos de ver buscam dar sentido ao fragmento, ao emergente, ao mutável, ajudando-nos a compreender o mundo em que vivemos e suas relações com visualidade e poder.

Glossário

Espetacularizada: transformada de acontecimento comum para exibição espetacular.
Ressignificada: atribuída de um novo significado.
Narrativa: sucessão de acontecimentos narrados por um ponto de vista subjetivo.
Pós-modernidade: momento contemporâneo marcado pelo fim da crença nas grandes narrativas, por descontinuidades conceituais e multiplicidade de verdades.
Territorialidade: princípio que rege as disposições relativas ao território de um cidadão ou comunidade
Discurso: enunciado, fala ou raciocínio.
Interpretar: dar sentido.

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Unidade 2: Sobre a emergência da cultura visual

O sistema moderno das belas artes se estabeleceu na primeira metade do século XIX quando o termo “arte” passou a designar um espaço amplo e autônomo que incluía obras e interpretações, valores e instituições. Nesse novo espaço de autonomia, as obras de arte passaram a ser interpretadas com uma clara ênfase no conceito de “forma”, implantado num vazio cultural, e, além disso, seus enunciados fundamentados na subordinação ao objeto arte (TRAFÍ, 2003). O processo de aproximar o público desse novo conceito de autonomia, que incluía um comportamento silencioso, de contemplação e reverência à obra de arte, exigiu tempo, paciência e esforço. De modo gradual, essa atitude contribuiu para instituir e institucionalizar esse status ao mesmo tempo em que as teorias formalistas ganharam força entre o “discurso do artista como fonte original da produção de significado e a obra como seu receptáculo”. (TRAFÍ, 2003, p. 267)

A arte ganhou críticos literários, críticos de arte e estetas. A separação entre arte e artesanato passou a ser usada com interesses específicos, como por exemplo, a apropriação das manifestações artísticas de outras culturas.

A arte passou a ser tratada como uma essência metafísica sendo reconhecida pelos seus méritos técnicos e, especialmente, pelo seu status filosófico. Desse modo, obras de arte passaram a ser

Reverencialmente admiradas de um modo estético, por si mesmo, em um estado mental e de comportamento firmemente inculcado no público de concerto e nos visitantes de museus. A zona sombria da elevação da arte no século XIX foi o subseqüente retrocesso dos ofícios e das artes populares, a redução de muitos artesãos a meros operários industriais e a crescente separação entre os públicos das belas artes e das artes populares. No final do século XIX, a grande divisão do século XVIII havia se convertido num abismo. (SHINER, 2004, p. 308)

Por aproximadamente cento e cinquenta anos, a divisão entre arte e artesanato se manteve, mas as tentativas de eliminar essa separação e reaproximar arte e vida, ou seja, arte e cotidiano ganharam força e intensidade. Os dadaístas (1916) realizaram várias afrontas ao sistema das belas artes, de modo irônico e sarcástico, buscando, publicamente, uma maneira de enfraquecer não apenas o sistema, mas, principalmente, suas instituições. Os construtivistas russos fizeram campanhas e denúncias muito fortes e as mantiveram através do seu próprio esforço, trabalhando para as indústrias e para o Estado.

Assim, a primeira metade do século XX pode ser caracterizada como um período em que esforços foram intensificados no sentido de reconciliar arte e vida. Podemos destacar alguns exemplos, como a Oficina de Investigação Surrealista, que funcionou em Paris, durante os anos 1920. Na oficina, os participantes assistiam e discutiam filmes que abordavam temas referentes ao realismo social, novelas e pinturas que foram marcantes nos anos 1930 e os happenings, que, além de chamar atenção, agitaram a cena cultural e artística da Nova York nos anos 1950. Dando continuidade a essas formas de enfrentamento e deslocamentos, durante os anos 1960 o movimento Fluxus ganhou proeminência (SHINER, 2004; KAPROW, 1993). No Brasil, Hélio Oiticica criou o grupo neoconcreto, juntamente com os artistas Amílcar de Castro, Lygia Clark e Franz Weissmann. Posteriormente, na década de 60, Oiticica criou os Parangolés, um tipo de capa de algodão também considerado como bandeiras ou estandartes, uma espécie de escultura móvel que ele próprio chamava de “antiarte por excelência”.

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Os anos 1960 passaram a ser referências temporal, histórica, porque foram marcados por uma fermentação e ebulição de ideias decisivas para as mudanças e transformações que ocorreram na segunda metade do século. A década de 1960 foi marcada por uma diversidade de movimentos que, de várias maneiras, abriram caminho para a cena contemporânea: arte pop, arte conceitual, performance, instalações, arte ambiental etc. Durante essa década, intensificou-se abertamente a resistência às polaridades do sistema das belas artes numa tentativa de manter e aprofundar as relações arte, vida, cotidiano. Artistas pop, como Andy Warhol, continuaram fazendo paródias sobre a “sacrossanta aura do artista e da obra de arte e os artistas conceituais frequentemente produziam peças que, dificilmente, podiam ser consideras obras” (SHINER, 2004, p. 397).

Estamos vivendo um momento caracterizado por miscigenações culturais e estéticas que, além de criar deslocamento de fronteiras culturais, subvertem hierarquias estéticas e misturam estilos, oferecendo oportunidade para experimentações sincréticas que abrem espaço para transmutação de signos que se re-semantizam adquirindo novos significados ao serem usados em outros contextos.

Essas miscigenações refletem mudanças que afetaram as práticas artísticas nas últimas décadas, dentre elas, o profundo questionamento do estatuto ontológico da arte. Ideias como “autonomia”, “originalidade” e “autenticidade”, conceitos que distinguiam a obra de arte, gradativamente distanciaram arte e fazer artístico dos processos e práticas do cotidiano. A ideia de autonomia, isto é, de uma ‘arte autêntica’ (ADORNO, 1970), contribuiu para acelerar esse distanciamento do mundo material, gerando, também, um isolamento dos sentidos e fazeres do cotidiano. Esse isolamento teve como principal implicação uma esterilização do potencial da arte como crítica social (SHUSTERMAN, 1998).

A distinção entre história da arte e história do design, institucionalizada nos departamentos universitários dos países anglo-saxões, encontra-se na gênese desses processos de miscigenação cultural e de experimentações estéticas. A forma como a história da arte moderna tratou a questão do design contribuiu sobremaneira para essa distinção que ainda hoje alimenta o etos das instituições universitárias, de associações profissionais e de pesquisadores.

A partir das últimas décadas do século XIX, o termo “arte” ganhou sentido ideológico vinculado a uma produção material individualizada, superior, que pretendia transcender a experiência comum ao mesmo tempo em que o design passou a ser caracterizado como atividade funcional com o objetivo de atender e criar necessidades cotidianas da sociedade. Na virada do século XIX para o século XX novas condições e circunstâncias socioeconômicas intensificaram a cisão arte/design estabelecendo de forma bastante evidente esta distinção.

De maneira sutil e até mesmo implícita, essa diferenciação se mantém na forma de uma disputa silenciosa, como parte de um jogo estratégico que, com freqüência, vem à tona em conversas sobre pesquisa, em reuniões de departamento, mas, principalmente, em discussões sobre currículo. Embora de forma velada, ainda convivemos com a ideia kantiana que distingue “belas artes”, ou “fine arts”, e artesanato, distinção que se estabeleceu nas instituições do sistema moderno das belas artes e que ainda se mantém através de uma dualidade igualmente excludente, “arte erudita” e “arte popular”.

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Essas mudanças que aconteceram na segunda metade do século XX e, consequentemente, as rupturas geradas pela diversidade de movimentos artísticos, por diferentes razões e circunstâncias, parecem não ter sido suficientes para deslocar o etos das belas artes que ainda está presente na filosofia e práticas educacionais de escolas, institutos e departamentos de arte em instituições universitárias do nosso País. Mas, aos poucos, talvez como resultado das pressões do mercado de trabalho, de motivações geradas por questões econômicas ou, ainda, pela veemência da crítica social, essas instituições começam a sinalizar, mesmo que de maneira tímida, algumas mudanças. Essas mudanças ganham força a partir de exigências sociais que instam as instituições a esboçarem algum tipo de reação a novas abordagens, a campos de investigação e saberes emergentes ainda não regulados pelo ofício profissional ou pelo “método” e, portanto, ainda não institucionalizados. Nessa arena de ideias, onde podemos acompanhar debates, publicações, eventos científicos e propostas curriculares, pode-se observar que o conflito mais recente e ainda em curso tem sido motivado pela entrada em cena da cultura visual.

Para experimentar

Selecione e organize três imagens de cada movimento, proposta, artista ou grupo citado no texto (por exemplo: dadaísmo, arte pop, Hélio Oiticica, parangolés, happenings, Fluxus, performance e assim por diante...) e faça o seu banco de imagens da disciplina para ser utilizado no decorrer das atividades. Não se esqueça de colocar as referências (titulo, autor, fonte, data, etc.) das imagens selecionadas.

Glossário

Teorias formalistas: teorias que abandonam a ideia de que o que define um objeto artístico não está no objeto, mas no sujeito que o aprecia.
Realismo social: estilo artístico muito comum na União Soviética, entre 1930 e 1960, diretamente relacionado ao comunismo ortodoxo.
Andy Warhol: artista gráfico e publicitário, Warhol ressignifica a pop art com a reprodução mecânica e seriada de imagens cotidianas.
Ontológico: metafísico, essencial.
Belas artes: artes ditas superiores.
Artesanato: produto do trabalho manual do artesão.
Etos: conjunto de características distintivas de um grupo, normalmente diz respeito a atitudes, hábitos e crenças.

2.1 Cultura visual: A entrada em cena

Como campo transdisciplinar, a cultura visual se caracteriza como espaço conceitual de convergência que congrega discussões sobre diversos aspectos da visualidade, buscando fomentar e responder questões que se entrecruzam a partir de campos de estudo, como a história da arte, a estética, a teoria fílmica, os estudos culturais, a literatura e a antropologia (GUASCH, 2003). No entanto, a perspectiva transdisciplinar, apesar das inconstâncias temporais e da diversidade de abordagens, não traduz as possibilidades de entrecruzamentos disciplinares que configuram a cultura visual. Ao estudar o caráter instável e cambiante das imagens e dos objetos artísticos, analisando-os como artefatos sociais, a cultura visual desafia não apenas os limites, mas as práticas instituídas do sistema das belas artes.

De acordo com Mitchell (2002), o que está em jogo é a “idéia da visão como uma prática social, como algo construído socialmente ou localizado culturalmente, ao mesmo tempo em que libera as práticas do ver de todo ato mimético, as eleva graças à interpretação” (Apud GUASCH, 2003, p. 11). Martins (2009), em sintonia com as ideias de Mitchell, explica que do ponto de vista educacional, a “dimensão visual vai além de um repertório de eventos ou objetos visíveis porque pressupõe uma compreensão dos seus processos, o modo como operam, suas implicações e, principalmente, seus contextos”. (p. 35)

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Desse modo, podemos dizer que a experiência visual se caracteriza como um processo gradual e dinâmico, em constante transformação e, portanto, mais demorado e, também, mais abrangente do que a instantaneidade que é atribuída à experiência de ‘ver’.

Essa ênfase na visualidade, envolvendo questões de contexto, como o conceito de apropriação e o postulado da autonomia e des-construção, incrementou os debates sobre a crise da representação e o discurso da diferença/exclusão, temas que tiveram influência decisiva no sentido de colocar sob suspeita valores associados à modernidade. Nas discussões sobre essas novas relações entre o sujeito que olha, isto é, o espectador/intérprete e o objeto do seu olhar, Mitchell (1994) propõe uma teoria da visualidade que aborda a percepção na sua dimensão cultural, proposta que ficou conhecida como a “virada pictórica”.

Ela é o reconhecimento de que o ato do espectador/intérprete (olhar, gaze, relance, práticas de observação, vigilância e prazer visual) pode ser um problema tão profundo quanto as várias formas de leitura (decifração, decodificação, interpretação, etc.) e que a experiência visual ou “alfabetização visual” [visual literacy] pode não ser totalmente explicável através do modelo da textualidade (p. 16).

A partir desses focos e direcionamentos, a cultura visual aborda e discute a imagem a partir de outra perspectiva, considerando-a não apenas em termos do seu valor estético, mas, também, buscando compreender o papel social da imagem e dos artefatos artísticos na vida da cultura.

Glossário

Apropriação: tomar para si a fim de atribuir novo significado.
Des-construção: transgressão de um sentido construído.

Unidade 3: A construção social das práticas do ver

Objetos artísticos, assim como as imagens, são elaborações que resultam de práticas, instâncias e manifestações individuais e/ou coletivas que têm como foco agenciamentos políticos e culturais. Essas manifestações revelam aspectos das experiências de intercâmbio e conflito dos indivíduos como interpretes do mundo, aspirando e construindo perspectivas dialógicas, partilhando e compartilhando objetos artísticos, imagens e visualidades como práticas sociais e culturais que se integram a diferentes redes de relações e significados em que cada indivíduo se insere e de que participa a seu modo. Existir é, antes de tudo, fazer-se presente e ser reconhecido em espaços públicos e simbólicos que têm como pressuposto uma interação entre autor/artista, produção/objeto artístico e público/audiência. Com base nesse argumento, podemos afirmar que todo conhecimento humano é, de algum modo ou, em alguma medida, um tipo de interpretação.

O conceito de interpretação dialógica institui e ambienta o princípio de heterogeneidade, núcleo central das reflexões pós-estruturalistas. Essas reflexões, que entrelaçam práticas de inclusão e exclusão, envolvem o conceito de autor ou autoria, as teorias sobre o sujeito e as diversas identidades que nos interpelam desde as imagens e artefatos artísticos. Tais reflexões têm gerado deslocamentos conceituais, perceptivos e temporais que nos ajudam a compreender que a vida e, em específico, o nosso cotidiano, é construído por fragmentos de ideias, práticas e ações vividos através de momentos que se espalham e se organizam no tempo e no espaço, sobre os quais refletimos e que compreendemos como partes, unidades e descontinuidades.

Esses deslocamentos criam uma condição dinâmica que se revela como resistência e/ou predisposição, criando instabilidades e inconstâncias que se oferecem como alternativa para não nos acomodarmos a convicções/posições teóricas rígidas, inflexíveis. Tal dinâmica deixa evidente a necessidade de fronteiras fluidas, com interstícios e espaços de trânsito que possibilitem e integrem fluxos de ideias, imagens e artefatos artísticos do presente e do passado.

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Glossário

Agenciar (agenciamento): colocar nas pautas de discussão
Dialógico: baseado no diálogo.
Pós-estruturalista: teoria que considera a realidade uma construção social e subjetiva.

3.1 Arte, imagem e temporalidade

Artefatos artísticos, assim como as imagens, estão marcados por temporalidades múltiplas que inscrevem sentidos e significados em fluxos que se diferenciam por “tempo de produção” e “tempo de recepção”. As temporalidades múltiplas favorecem ou facilitam contaminações teóricas, conceituais, perceptivas e práticas que acontecem entre diferentes sistemas e períodos. As contaminações geram diálogos com a diversidade através de apropriações, interferências, marginalizações e até mesmo silêncios, produzindo novos objetos e imagens que podem influenciar imaginários sociais e subjetividades individuais.

O tempo de produção caracteriza, sintetiza, condensa temporalidades que se sobrepõem. A primeira, a temporalidade individual, subjetiva, está circunscrita ao tempo/momento/processo de autoria do artefato ou imagem; a segunda, a temporalidade contextual, é situada e reconhecida num tempo social, cultural e histórico. Ambas estão sujeitas a mudanças.

Vamos utilizar uma imagem de arte para explicar e detalhar as duas temporalidades. A imagem abaixo (Figura 2) foi originalmente intitulada A família de Filipe IV, mas, posteriormente, tornou-se conhecida como As meninas, termo utilizado para as damas de honra da princesa Margarida (Figura 3), que está no centro da primeira imagem. A pintura reproduz uma cena cotidiana, comum, nas cortes do século XVII.

Figura 2: Velázquez. As meninas,1599-1660, 310x276 cm
Figura 3: Velázquez. Detalhe de As meninas: A Infanta Margarida, 1599-1660

Acima, de pé no ateliê, Velázquez está possivelmente pintando os reis Filipe IV e Mariana, quando é surpreendido com a entrada da infanta Margarida e suas damas. No lado direito, a anã Maribárbola e o anão Pertusato parecem querer brincar com o cachorro de estimação. Anão e animal de estimação eram presenças típicas nas cortes do século XVII e tinham como função, divertir e/ou brincar com a infanta. Um pouco atrás, ainda do lado direito, vemos a senhora responsável pelas damas de honra e um senhor, provavelmente o guarda-damas. O rei e a rainha têm suas imagens projetadas num espelho ao fundo do ateliê. Numa porta aberta, ao fundo do ateliê e ao lado do espelho, vemos outro senhor, provavelmente o abre-portas, que anuncia a chegada dos reis.

Nessa breve descrição da obra, temos uma síntese da temporalidade contextual, ou seja, um registro de vestimentas, práticas, hábitos e costumes da época, nesse caso, o cotidiano da corte espanhola. Simultaneamente, a pintura condensa uma temporalidade individual, ou seja, o pintor Velázquez. O artista está no auge da carreira. Vindo de Sevilha, tinha realizado o sonho que representava uma conquista pessoal, artística e social: conhecer os grandes pintores que trabalhavam em Madri e ser nomeado “pintor da corte”. A pintura de Velázquez é uma síntese de temporalidades cujo acesso só é possível pela mediação de relatos, observações, cartas, documentos, comentários e, principalmente, imagens.

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Em contraposição à temporalidade individual/subjetiva (Velázquez) e à temporalidade contextual (cotidiano na corte espanhola), temos um deslocamento que nos leva ao tempo de recepção, que nos ajuda a identificar e reconhecer múltiplas relações entre imagem, objeto de arte e interpretação. Essa temporalidade nos ajuda a entender as interpretações como articulações de sentido e valor situadas num momento histórico, ou seja, na contemporaneidade.

Na Figura 4, temos um exemplo claro desse deslocamento que intensifica as características do tempo de recepção. No museu do Prado, em Madri, três séculos e meio depois, visitantes observam a obra de Velásquez. É flagrante o contraste entre as vestimentas, práticas e costumes da corte com o modo informal como os visitantes estão vestidos: bermuda, jeans, camisetas, bolsas a tiracolo, provavelmente calçando sandálias, em atitude que revela interesse, mas, porém, é casual, muito distante das etiquetas e exigências da corte.

Figura 4: visita ao Museu do Prado

Na figura 5, temos outro exemplo do tempo de recepção. Uma reprodução da obra de Velásquez, de aproximadamente 35 cm, presa numa parede por uma fita adesiva. A imagem descuidada e até mesmo desbotada está fixada no canto de uma parede do ateliê de Dali, hoje “Museu Casa Dali”. A reprodução, de má qualidade, revela a admiração de Dali por Velázquez, apesar da ideia de descaso que possa sugerir em função do lugar e da maneira como está fixada. Estamos falando de outro tempo de recepção, de um tempo de irreverência, ousadia e ironia que caracteriza a personalidade egocêntrica de Dali. A ironia e recepção de Dali são sintomas desse outro tempo marcado por diferentes concepções de arte, de imagem e de mundo.

Figura 5: Imagem do autor

A liberdade de Dali para dialogar com a imagem e interpretar o trabalho de Velásquez a partir de seu tempo de recepção parece não ter limite. Na Figura 6, através de uma imagem em holograma, Dali leva a infanta Margarida para conhecer seus amigos de juventude no bar que costumava frequentar em Figueres, Espanha, cidade onde nasceu e viveu até os dezoito anos. Aturdida e totalmente deslocada, a infanta observa a situação em que Dali está bebendo, fumando e jogando com os amigos. Desse modo, Dali traslada a infanta de um cotidiano formal, requintado e sofisticado da corte espanhola do século XVI, para a cena de um bar na segunda década do século XX. O cenário é simples, comum e mundano, contextualizando costumes, práticas e preferências do jovem Dali. Apesar do contraste gritante e do ‘aparente’ desrespeito à obra, Dali contribuiu sobremaneira para divulgar e até mesmo popularizar a pintura de Velásquez através da sua interpretação peculiar. Vale salientar que a referida imagem, exposta no Teatro-Museu Dali, em Figueres, província de Girona, Espanha, está entre as mais visitadas.

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Figura 6: Infanta Margarida – Holograma de Salvador Dali. Imagem do autor

São muitos os exemplos de interpretação da pintura de Velásquez feitos por outros artistas e designers a partir do seu tempo de recepção, ou seja, o modo como integraram a imagem a situações contemporâneas, locais, estilizando-a, culturalizando-a, popularizando-a ou até mesmo transformando-a em objeto de decoração.

Na figura 7, temos a oportunidade de ver o modo como Picasso personalizou a pintura ao seu tempo de recepção, à sua visão de mundo e de arte, apropriando-se da ideia, do tema e da imagem para estilizá-la ou cubicá-la a seu modo.

Na figura 8-a, temos duas interpretações da imagem da infanta Margarida, uma feita por Picasso e a outra por Manolo Valdez, escultor/artista espanhol. Na primeira, à esquerda, a infanta está ambientada às formas geométricas do cubismo. As diferentes partes do seu corpo são apresentadas predominantemente por linhas retas e num mesmo plano, em sintonia com o cubismo sintético que, apesar da fragmentação, mantém a imagem da infanta reconhecível.

A figura 8-b, reproduz o contorno do corpo da infanta através de uma forma tridimensional, em madeira, em pequena escala, acionando a memória visual e criando links com o repertório visual de diferentes indivíduos e gerações em distintos países.

A partir dessa interpretação da infanta e, principalmente, de instalações em tamanho real que Manolo Valdez realizou em Viena, Áustria, San Sebastian, na Espanha e nos jardins de Versailles, em Paris (Figura 9), o artista espanhol aceitou o convite de Christian Dior para criar a coleção de perfumes “Las Meninas” (Figura 10).

Figura 7: Picasso. As meninas, 1957.
Figura 8-a: Picasso. A infanta Margarida, 1957.
Figura 8-b: Mano Valdés. A Infanta Margarida, 1998.
Figura 9: Manolo Valdez. Las meninas. Instalação, 2005.
Figura 10: Las Meninas/Christian Dior Manolo Valdez – Coleção de perfumes
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A partir dessa interpretação da infanta e, principalmente, de instalações em tamanho real que Manolo Valdez realizou em Viena, Áustria, San Sebastian, na Espanha e nos jardins de Versailles, em Paris (Figura 9), o artista espanhol aceitou o convite de Christian Dior para criar a coleção de perfumes “Las Meninas” (Figura 10).

A infanta circulou pelas praias de San Sebastian, pelos espaços públicos de Viena e pelos jardins de Versailles, repetindo o roteiro de visitas a cidades e países feito por muitos turistas. Em nenhuma das cidades a infanta se apresentou em museus, ironia de um tempo de recepção que estamos vivendo no qual “esteticamente tudo é permitido, tudo é possível e tudo está revestido de certa provocação às regras que pré-estabeleciam o que é e o que não é arte” (ARROYAVE, 2005, p. 47). É, também, um exemplo que põe em evidência miscigenações culturais e estéticas da pós-modernidade, destacando o modo como manifestações de origens e significados distantes podem ser enfocados em diversos suportes, em complexas narrativas visuais de colagem ou bricolagem. Além disso, esses exemplos põem em perspectiva a importância de conhecer e respeitar essa imensa diversidade de imagens, experiências e repertórios visuais que podem ser combinados, explorados e sobrepostos.

Dos espaços públicos, a imagem ícone da infanta e de uma corte migrou para vitrines sofisticadas das lojas Dior em Paris, Nova York, Londres, Tóquio e outras metrópoles, cumprindo um roteiro comercial ao qual poucos indivíduos têm acesso. As vitrines, onde os perfumes estiveram e possivelmente ainda estão expostos, devem rivalizar com a suntuosidade dos bailes, salões e aposentos que a infanta frequentou como filha e, posteriormente, como rainha da corte da Áustria.

Gradativamente, sua imagem passou por miscigenações imagéticas e sincretismos culturais. Popularizou-se a ponto de frequentar as vitrines de lojas de departamento – El Corte Inglês, FNAC e outras – como objeto de decoração para ornamentar as casas de famílias tradicionais, ilustradas. (Figuras 11 e 12).

Figura 11: El Corte Inglês. Imagem do autor
Figura 11: El Corte Inglês. Imagem do autor

Como reprodução, mesmo que longínqua, parcial e fragmentada, de uma obra de arte, o agora objeto não ostenta mais a “aura” de “autenticidade” que lhe foi conferida no seu ‘tempo de produção’, ou seja, quando foi criada por Velásquez. Como consequência das transformações tecnológicas e das novas técnicas de reprodução (impressa, eletrônica, digital, virtual etc.) essas características ou qualidades, gradativamente sofrem um desgaste estético/visual ao mesmo tempo em que se tornam acessíveis. Ao perder a “aura”, o glamour artístico que projeta um bem cultural como obra-prima de uma época, estilo ou autor, a obra/imagem/artefato ou objeto deixa de ser privilégio de uns poucos e fica ao alcance do grande público, concretizando o que Walter Benjamin (1980) considerava a principal consequência das transformações tecnológicas: promover a democratização no campo das artes.

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Explicando de outra maneira, podemos dizer que essas miscigenações culturais e estéticas, além de criar deslocamento de fronteiras conceituais, perceptivas e teóricas, subvertem hierarquias e misturam estilos, oferecendo oportunidade para experimentações sincréticas. Essas experimentações abrem espaço para a transmutação de signos que se re-semantizam, adquirindo novos significados ao serem usados em outros contextos e tempos de recepção. Essas miscigenações e deslocamentos refletem as mudanças que afetaram as práticas artísticas nas últimas décadas.

Conclusão

Nessa condição dinâmica, em que se revelam atitudes de resistência e/ou predisposição, está o espaço de atuação professor/aluno, como copartícipes nesse processo de interpretação dialógica em que podem afirmar seu caráter social e, sobretudo, seu sentido ético e profissional. Assim, um artefato artístico, um objeto ou uma imagem, podem ser transformados em uma nova visão de mundo cujo reconhecimento depende da possibilidade de exposição, de circulação, de experiências de visualização, mas, principalmente, dos horizontes contextual e ideológico que as informam. Podem, inclusive, frequentar eventos acadêmicos onde, em princípio, essas questões são debatidas e discutidas, mas, em geral, com impacto reduzido sobre as práticas institucionais. (Figura 13)

Figura 11: El Corte Inglês. Imagem do autor

A erosão dos métodos e modelos clássicos de “leitura” da imagem, além de criar condições para uma nova configuração teórica da cena visual contemporânea, colocou sob suspeitas a autoridade de etnógrafos, historiadores, educadores e pesquisadores que estudam e trabalham com imagem. Nesse sentido e em decorrência dessa nova configuração teórica da cena visual contemporânea, podemos dizer que,

Educar para a cultura visual não implica na formulação de regras para o olhar e nem tão pouco em generalizar modos de ver e interpretar, até mesmo porque interpretação e compreensão de imagens são processos que refletem repertórios de vida e subjetividades. Assim, é fato que nossos modos de ver e interpretar imagens se fundamentam em sistemas pré-estabelecidos que não só tendem a influenciar o olhar como a incitar comportamentos e atitudes. Resquícios de uma cultura moderna ainda prevalecem em abordagens imagéticas pretensamente objetivas, formais e que ainda aspiram universalizar significados. (VALENÇA, PEREIRA e MARTINS, 2008, p. 245)

Assim, a cultura visual desestabiliza, desloca, amplia as fronteiras do sistema das belas artes e, em decorrência, gera tensões, inquietações e divergências que perturbam visões curriculares, criando novas demandas acadêmicas e institucionais. Ao pesquisar e estudar as temporalidades múltiplas das imagens e dos objetos artísticos, analisando-os como artefatos sociais, a cultura visual busca ajudar os indivíduos, mas, especialmente, os alunos, a construírem um olhar crítico em relação à vitalidade e ao poder das imagens, colocando em perspectiva a necessidade de uma “compreensão ampla dos regimes escópicos históricos e contemporâneos para que possam ser protagonistas (...) do seu próprio momento cultural” (POLLOCK, 2004, p. 95). A construção desse olhar crítico, acompanhada de um sentido de responsabilidade, pode funcionar como antídoto à crescente manipulação e inesgotável diversidade de imagens que nos interpela, assedia e sitia no cotidiano.

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