Licenciatura em Artes visuais Percurso 2
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Pedagogias de Fronteira

Autoras

Drª Alice Fátima Martins Cursou Licenciatura em Educação Artística, habilitação em Artes Visuais, pela Universidade de Brasília (conclusão: 1983). Foi professora de Artes na Educação Básica, com experiências diversas, dentre as quais, com Educação Indígena (FUNAI), e na rede pública de ensino do Distrito Federal. Mestre em Educação, área de Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico, pela Universidade de Brasília (conclusão: 1997). Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (conclusão: 2004). A tese foi publicada pela Editora da UnB, em 2013, com o título Saudades do Futuro: a ficção científica no cinema e o imaginário social sobre o devir. Pós-Doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (2010), com o projeto de pesquisa Catadores de Sucata da Indústria Cultural. O resultado da pesquisa foi publicado, em 2013: Catadores de Sucata da Indústria Cultural, pela FUNAPE/Editora da UFG. Pós-doutorado pela Universidade de Aveiro, com o projeto de pesquisa O cinema de Maria (2017). É professora na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Atua no curso de Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, do qual foi coordenadora em dois períodos: 2005 a 2008, 2012 a 2014. Foi editora da Revista Visualidades (UFG) entre julho/2014 e dezembro/2016. Membro das seguintes entidades de pesquisa: Associação Nacional de Pesquisa em Artes Plásticas (ANPAP), Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE), Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Associação de Investigadores da Imagem em Movimento (AIM), Red de Estudios Visuales Latinoamericanos (ReVLaT), AO NORTE Associação de Produção e Animação Audiovisual. Tem experiência em: a) Artes Visuais, com recorte em arte contemporânea e estética relacional; b) Sociologia, com ênfase em Sociologia da Cultura e da Arte; c) Educação, com ênfase na formação de professores em Artes Visuais, e nas relações entre visualidades contemporâneas, cinema e educação. Atua nos campos em que se entrecruzam arte contemporânea, ensino de artes visuais, estética relacional, cinema, fotografia, relações entre cinema e educação, cultura visual, e estudos culturais.

Drª Carla de Abreu Carla de Abreu é doutora em "Artes Visuales y Educación" (2014), pela Universidad de Barcelona (UB), Espanha, e ?Arte e Cultura Visual? (2014), pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Brasil. Mestre em ?Educación y Artes Visuales: un enfoque construccionista? (2010, Universidad de Barcelona, Espanha). Licenciada em Artes Visuais (2007, Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Brasil). Graduada em Ciências Econômicas (1995, pela Universidade Católica de Goiás - PUC). Atualmente é professora na Faculdade de Artes Visuais (UFG) e do programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV-UFG). Participa dos Grupos de Pesquisa: Cultura Visual e Educação (UFG/CNPq); Ser-tão - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade (UFG/CNPq); e, do Grupo Transviações - Educação e Visualidade (UnB/CNPq). Investiga principalmente os seguintes temas: educação da cultura visual, gêneros e visualidades, culturas digitais e pedagogias de resistência.

Saiba mais

Saudações, estimadas e estimados estudantes!!

Caro(a) aluno(a),

É um prazer estar com vocês!

Nesta disciplina iremos refletir sobre algumas abordagens nos processos de ensinar e aprender a partir de zonas fronteiriças, contemplando epistemologias que facilitam a problematização das relações de poder e as normatividades instituídas nos processos educativos a partir de uma abordagem transdisciplinar, para examinar os sistemas de pensamento estabelecidos.

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Os processos de aprendizagem adquirem novos sentidos quando realizados de forma prazerosa, e assim, preparamos cuidadosamente uma viagem com distintas paisagens. A intenção é contribuir para a compreensão dos acontecimentos e práticas que estabelecem as fronteiras sociais, bem como valorizar as experiências que estão à margem das configurações totalizantes. Esperamos que o passeio seja agradável e desejamos a todas e todos um excelente semestre de estudos! Mãos à obra!

Abraços!

Alice e Carla

Para início de conversa...

Para início de conversa, pedimos a vocês que escolham um filme dentre os títulos sugeridos abaixo para ser visto ao longo dos nossos trabalhos. Sugerimos que a escolha tenha como base o estranhamento. Ou seja: escolham o filme que provoca mais estranhamento ao invés daquele que chama a atenção pela afinidade. Esse será um exercício de encontro com o outro.

Com base no filme escolhido e nas discussões feitas ao longo da disciplina, cada um produzirá um texto, no qual desenvolverá os temas que se seguem:

  1. Por que você escolheu esse filme?
  2. Que fronteiras estão representadas no filme?
  3. Como a figura do outro comparece nessa narrativa?
  4. Como você se vê no filme? Como você se situa em relação às fronteiras e ao outro nele representados?

Sugerimos que você não demore para escolher e assistir ao filme, assim não terá dificuldades para produzir o texto e entregá-lo dentro do prazo.

Filmes
Título País e Ano Direção Link de acesso
1 Que horas ela volta? Brasil, 2015. Anna Muylaert https://www.youtube.com/watch?v=WBl5dqeohTk
2 A maçã Irã, 1998. Samira Makhmalbaf https://www.youtube.com/watch?v=buhLlfTVPwI
3 11 de setembro Reino Unido, França, Egito, Japão, México, EUA, Irã. 2002. Curta-metragem dirigido por Samira Makhmalbaf (1/11) https://www.youtube.com/watch?v=l0JlXNI0ZSM
4 7 cajas Paraguai, 2012. Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori. https://www.youtube.com/watch?v=hPWSN7YKStM&pbjreload=10
5 Gosto de cereja Irã, 1997 Abbas Kiarostami https://www.youtube.com/watch?v=8-eaqnlRl08
6 Poesia sin fin Chile, França, 2016. Alejandro Jodorowsky https://www.youtube.com/watch?v=xa4CfouD9VA
7 Human (Versão estendida, Vl 1) França, 2015. Yann Arthus-Bertrand https://www.youtube.com/watch?v=TnGEclg2hjg

Unidade 1: Identidades, fronteiras e relações de poder

Acesse o link e veja esta casa que ficou no meio de uma rodovia em construção em Nanning, região autônoma de Guangxi Zhuang, no sul da China.

Foto tomada em abril de 2015.

Fonte: https://www.theatlantic.com/photo/2015/04/and-then-there-was-one/390501/#img01

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Para adentrarmos algumas questões sobre fronteira, vamos buscar a imagem proposta pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos em suas considerações sobre o pensamento científico, em processo de transição desde uma configuração moderna e em direção ao que ele, bem como alguns outros pensadores, denomina pós-modernidade:

Vivemos num tempo atônito que ao debruçar-se sobre si próprio descobre que os seus pés são um cruzamento de sombras, sombras que vêm do passado que ora pensamos já não sermos, ora pensamos não termos ainda deixado de ser, sombras que vêm do futuro que ora pensamos já sermos, ora pensamos nunca virmos a ser. (SANTOS, 1988, p. 46).

Esse cruzamento constitui um território de fronteira, nos quais cumprimos nossos percursos, e com desafios com os quais nos deparamos no dia a dia. Ainda sobre essas questões, num texto mais recente, Santos lembra de todas as promessas que a modernidade não cumpriu, o que provocou profundo desencanto como marca na transição entre os séculos XX e XXI. O autor ressalta que, sobretudo em relação à desilusão com a globalização, há “um desassossego no ar” (2002, p. 41), uma inquietação que marca os tempos de transição paradigmática, “tempo de passagem”, quando rompem-se certezas e reforçam-se as indeterminações. Ele explica:

O desassossego resulta de uma experiência paradoxal: a vivência simultânea de excessos de determinismo e de excessos de indeterminismo. Os primeiros residem na aceleração da rotina. As continuidades acumulam-se, a repetição acelera-se. A vivência da vertigem coexiste com a de bloqueamento. A vertigem da aceleração é também uma estagnação vertiginosa. Os excessos de indeterminismo residem da desestabilização das expectativas. A eventualidade de catástrofes pessoais e coletivas parece cada vez mais provável. [...] A coexistência destes excessos confere ao nosso tempo um perfil especial, o tempo caótico onde ordem e desordem se misturam em combinações turbulentas. Os dois excessos suscitam polarizações extremas que, paradoxalmente, se tocam. As rupturas e as descontinuidades, de tão frequentes, tornam-se rotina e a rotina, por sua vez, torna-se catastrófica. (2002, p. 41)

A modernidade, forjada no pensamento de matriz europeia, fez promessas de bem-estar, de conquistas sociais, num futuro que não se cumpriu. Ao contrário, o que se testemunhou foi o aprofundamento das guerras, da fome, o agravamento das diferenças sociais, a consolidação de governos totalitaristas que já existiam, além do surgimento de novos. Mais que isso, nem o conhecimento científico, tampouco todo o desenvolvimento tecnológico conseguiu evitar as catástrofes naturais ou o desequilíbrio dos ecossistemas, abalados pela crescente atividade humana na geografia planetária. Ou seja, constatou-se, afinal, a incapacidade dos seres humanos para planejar e realizar um futuro mais harmônico, justo e solidário.

Muitos estudos indicam haver uma “crise” que pôs em xeque as certezas sobre as quais foram sustentados os pilares dos ideários da modernidade, e cujas estratégias foram úteis para proteger e manter as estruturas do capitalismo e as relações de poder que deles derivam. Por outra via, vários grupos sociais foram empurrados às margens de suas dinâmicas, por não se ajustarem às “regras do jogo”. Empiricamente, esses segmentos parecem ter menor importância nos jogos das políticas públicas, assim como nos projetos da lógica do mercado regido pelo capital.

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O cenário apontado por Santos (2002) para descrever este tempo atônito, um período de passagem e de desassossego, dialoga com o conceito de entre-lugar, proposto por Homi Bhabha (1998). Esse seria um espaço híbrido, contaminado pelas relações que estabelecemos com os signos culturais, do passado e do presente, com os quais entramos em contato por meio de nossas experiências e intercâmbios sociais. Segundo a metáfora criada por Bhabha, uma das características do entre-lugar é sua alusão a um espaço de certa forma incômodo, ruidoso, onde se cruzam sotaques e ideais diversos e onde as noções das diferenças culturais são sentidas e significadas. Também é o lugar onde surgem as possibilidades de resistência aos discursos globalizantes.

Bhabha define os entre-lugares como espaços de trânsito, territórios expandidos que “fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (1998, p. 20). O autor propõe uma forma epistemológica ativa de pensar a identidade, onde as interpretações sobre nossas construções, práticas e modos de vida são, igualmente, negociadas e transitórias, dependentes dos contextos sociais e dos lugares desde onde nos posicionamos no mundo.

Bhabha propõe pensar aqueles momentos ou processos onde as diferenças culturais são demarcadas e inscritas nos contextos sociais. Obviamente, espaços formados por tantas mesclas culturais só podem ser caracterizados pela instabilidade e mobilidade de suas fronteiras. Justamente por isso, exigem outros posicionamentos das identidades que ali habitam. Nesses espaços, segundo Bhabha, se faz necessário produzir novos processos de subjetivação que dão origem às identidades com configurações mais abertas, que necessitam articular suas diferenças para poder conviver nos grupos sociais.

Nos desvãos, nas frestas de sentidos geradas por essas diferenças, criam-se possibilidades de superar os binarismos do pensamento ocidental de matriz europeia (branco/negro, hetero/homossexual, cisgêneros/transgênero, bom/mau, gordo/magro, bonito/feio, alta cultura/baixa cultura, popular/erudito, etc.). Mas, é importante ressaltar, esses processos não se dão de forma tranquila, muito menos fluida. Os entre-lugares, como explica Bhabha, são territórios interstícios, conflitivos, disjuntivos. Ali, continuamente, são negociadas e reconfiguradas as diferenças culturais, sobretudo as que expõem as demarcações das características pelas quais identificamos o “outro” em nossas vidas:

O que está em questão é a natureza performativa das identidades diferenciais: a regulação e negociação daqueles espaços que estão continuamente, contingencialmente, se abrindo, retraçando as fronteiras, expondo os limites de qualquer alegação de um signo singular ou autônomo de diferença - seja de classe, gênero ou raça. (BHABHA, 1998, p. 301)

Essa noção de entre-lugar, por um lado, proporciona a oportunidade de refletir sobre os saberes, teorias, costumes e valores globais presentes nas sociedades. Por outro lado, também abre portas para desorganizar e problematizar as relações de poder difundidas nos sistemas de produção e circulação de conhecimentos e, dessa forma, desvelar o caráter conflitivo entre esses conhecimentos totalizantes e os sistemas, práticas e culturas locais. A proposta do entre-lugar, portanto, mais do que uma simples metáfora, é uma forma de entender como pode ser fértil o reconhecimento de outras texturas culturais, formas de conhecimento não canônicas que podem transformar a maneira de perceber o mundo. Em outras palavras, nos entre-lugares, os discursos culturais entram em crise e oferecem a oportunidade de questionar a conformidade acrítica com as normas ou valores tradicionalmente difundidos e impostos nas sociedades ocidentais.

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Nesses espaços conflitivos e de desassossego, a própria noção de identidade também é questionada. Isso nos leva à constatação de que não existem identidades “verdadeiras”, únicas e muito menos cada pessoa pode ser reconhecida por apenas uma identidade. Somos seres complexos, fragmentados e dotados de múltiplas facetas biológicas, sociais, culturais, muitas delas conflitantes entre si. Nos entre-lugares aprendemos a reconhecer que estamos fatidicamente vinculados a sistemas culturais específicos, locais, e dos quais fazemos parte. Nesse contexto, as identidades são o resultado do conjunto de significados compartilhados nos grupos sociais, que “adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas” (WOODWARD, 2012, p. 8).

A estudiosa Kathryn Woodward (2012) sugere que as representações sociais conformam identidades com características tanto individuais quanto coletivas e propõe pensar na ideia da identidade relacional. Segundo a autora, para entender como a identidade é construída, é necessário examinar os sistemas classificatórios dos modos de organização e divisão das relações sociais, para examinar a maneira pela qual as identidades e as diferenças se integram à estrutura cultural e como são forjadas a partir de representações simbólico-discursivas. Para Woodward, portanto, a identidade é, ao mesmo tempo, simbólica e social.

O âmbito social se refere às práticas e relações sociais; enquanto que o termo simbólico faz menção aos recursos usados para dar sentido a essas práticas e relações sociais. A construção das identidades desde essa perspectiva é um desafio constante de "chegar a ser" e as possibilidades de deslocamentos encontram-se demarcadas pelos contextos históricos e culturais onde se encontram os sujeitos e onde se desenvolvem formas particulares de “ser e estar”. Os sistemas culturais classificatórios aos quais se refere Woodward (2012) formam-se por meio das diferenças entre as categorias sociais, fundamentalmente baseadas nas oposições binárias como elementos determinantes na construção dos significados: “Um sistema classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos: nós/eles (...); eu/outro” (2012, p. 40).

No contexto de pensar as fronteiras, as disputas nas negociações dos significados culturais acabam por enfatizar a existência de desigualdades e, também, as singularidades dos contextos locais, que muitas vezes rompem com as representações hegemônicas e reconfiguram os limites difusos entre centro e periferia, original e cópia, autoria e processos coletivos de formação identitária. Esses processos dão origem a uma multiplicidade de vertentes culturais que circulam e deslocam constantemente as margens das fronteiras, fazendo do mundo uma formação de múltiplos entre-lugares. Assim, o sentido de fronteira que estamos tratando se refere aos posicionamentos que questionam o modus operandi das sociedades e representam espaços privilegiados para o exercício das diferenças e da proliferação das identidades dissonantes das representações sociais tradicionais.

As marcas das diferenças ─ como aquilo que separa uma identidade da outra e pela qual as pessoas são classificadas e posicionadas socialmente ─ é um tema central na discussão para pensarmos as fronteiras (visíveis e invisíveis) que regem o mundo. Estar em zonas fronteiriças significa questionar as práticas que foram entendidas como fixas e imutáveis e pensar nas classificações que usamos para enquadrar os sujeitos em “gavetas identitárias”, deixando visíveis (e vulneráveis) as pessoas que não se encaixam nas classificações consideradas “apropriadas” dentro dos limites epistemológicos das estruturas sociais.

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1.1 Reconhecimento e valorização das identidades subalternas

Se as fronteiras são lugares onde se evidenciam as vozes dos sujeitos dissidentes e dos grupos sociais que não têm as mesmas oportunidades e privilégios sociais, concretamente, quem são os “outros” nas relações de poder? Quem pode falar pelo subalterno e por que suas vozes são tão pouco escutadas? Essas perguntas foram discutidas pela filósofa e feminista indiana Gayatri Chakravorty Spivak no clássico ensaio “Pode o subalterno falar?”, lançado em 1988. Nele, a filósofa discute os fatores históricos e ideológicos que criam os obstáculos para que as vozes dos sujeitos que habitam as periferias das fronteiras não sejam ouvidas.

Spivak descreve os sujeitos subalternos como sendo as pessoas que compõem "as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante" (2010, p. 12). A intenção de Spivak foi a de buscar o ponto de vista dos sujeitos silenciados pela historiografia hegemônica. O subalterno, segundo a autora, é o sujeito constituído pelo colonialismo, mas também é um sujeito com potencialidades de mudanças e insurgências. Neste ensaio, Spivak afirma que o sujeito subalterno não pode falar porque não tem um lugar de enunciação que o permita falar. A autora também pensa o sujeito “mulher” e aponta que nas fronteiras das margens periféricas, a identidade feminina possui uma dupla condição de subalternidade: ser mulher e ser fruto do sistema patriarcal de produção, onde a figura da mulher é diminuída:

No contexto do itinerário obliterado do sujeito subalterno, o caminho da diferença sexual é duplamente obliterado. A questão não é a da participação feminina na insurgência ou das regras básicas da divisão sexual do trabalho, pois, em ambos os casos há "evidência". É mais uma questão de que, apesar de ambos serem objetos da historiografia colonialista e sujeitos da insurgência, a construção ideológica de gênero mantém a dominação masculina. Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade. (2010, pp. 66-67)
Sugestão pra ver

//Hiato, de Vladimir Seixas, 2007

Sinopses: Em agosto de 2000 um grupo de manifestantes organizou uma ocupação em um shopping da zona sul carioca. O documentário recuperou imagens de arquivo desse episódio e entrevistas com algumas pessoas que participaram da ocupação, sete anos após a manifestação.

Link: https://youtu.be/UHJmUPeDYdg

Desde sua publicação, o ensaio “Pode o subalterno falar?” foi muitíssimas vezes evocado, citado e criticado. As principais referências fazem menção aos questionamentos de Spivak à Deleuze e Foucault sobre a noção de agência dos sujeitos subalternos situados em realidades periféricas no contexto global. Segundo a autora, a problemática do agenciamento é algo que está intimamente articulado com a consciência dos sujeitos e sua capacidade de formar alianças políticas. Segundo Spivak, os renomados filósofos desconsideraram que a autonomia para os sujeitos subalternos está delimitada pelos próprios discursos que os posicionam e os desnivelam nas estruturas sociais. Spivak considera que os filósofos foram indiferentes e ignoraram as peculiaridades dos sistemas econômicos dos países considerados periféricos. Para ela, Foucault e Deleuze sendo homens, europeus e brancos ocuparam uma posição privilegiada de fala e, erroneamente, trataram de forma equivocada o sentido de representação social, assumindo o posicionamento de “falar por”, sem a capacidade de reconhecer as particularidades dos sujeitos representados e as reais possibilidades de formarem alianças políticas.

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Já as críticas ao ensaio de Spivak se referem à forma, considerada confusa, como a autora tratou o conceito de agência. As críticas indicam a existência de um “outro” radical que não seria acessível, uma espécie de página não decifrável, que não poderia ser incluída nos discursos. Nesse sentido, a ideia de subalterno de Spivak seria mais uma categoria conceitual do que uma constituição subjetiva e, desta forma, o subalterno estaria irremediavelmente condenado ao silêncio e em sua própria condição de possibilidades de ser ouvido. Outras críticas se referem à afirmação de que todas as mulheres nas sociedades coloniais estiveram radicalmente à margem dos discursos hegemônicos, esvaziando a complexidade da constituição da mulher colonizada e os muitos contextos sociais onde emergem os discursos.

De qualquer forma, Spivak pôs em evidência a necessidade de se estar atento para não silenciar o subalterno, não falar pelo “outro”. Spivak propõe que os intelectuais sirvam de ponte para que as pessoas que estão nas zonas fronteiriças das relações de poder possam falar e, principalmente, serem ouvidas. O esforço de Spivack, portanto, está em identificar as formas pelas quais o subalterno é silenciado e quais são as condições que favorecem novos posicionamentos de enunciação, onde sua voz seja escutada e seus saberes considerados.

O tema “lugar de fala” acendeu discussões acaloradas nos últimos tempos. As questões conflitivas giram em torno da compreensão sobre quem pode ou não falar sobre temas considerados polêmicos – por exemplo, se as pessoas brancas podem falar sobre o racismo, se homens podem falar sobre como sentem as mulheres, ou se heterossexuais podem falar sobre discriminação homofóbica – em outras palavras, quem pode falar pelo sujeito que está em uma escala inferior nas relações de poder?

Nessa arena de opiniões existem dois polos antagônicos: de um lado estão as pessoas que defendem a ideia de que apenas aquelas pertencentes aos grupos afetados pelos discursos de poder possuem as vivências e as experiências necessárias para falarem por si mesmas, justamente porque vivenciam essas situações na pele. De outro lado estão as pessoas que se sentem capazes de entender e sentir empatia pelas causas que lhes tocam subjetivamente. Nessas duas fronteiras, as discussões sobre o “local de fala” são vistas ora como tentativas de ameaças contra a liberdade de expressão, ora como tentativas de silenciamento, em que o “falar pelo outro” institui e limita as possibilidades do sujeito falar por si (e de si) nos debates sobre os sistemas de opressão.

Uma contribuição importante nessa discussão é o da filósofa brasileira e militante do feminismo interseccional Djamila Ribeiro (2017) que inspirada no ensaio de Spivak (2010) lançou o livro “O que é Lugar de Fala?”. Pesquisadora na área de Filosofia Política, em entrevista à revista Caros Amigos de dezembro de 2016 (edição 236), afirmou que "o discurso de racismo deveria ser discutido a partir da negritude e da branquitude, porque se tem um grupo que é discriminado e oprimido, tem um grupo sendo beneficiado, e esse grupo precisa discutir o que significa ser beneficiado”.

Para Ribeiro (2017), a sociedade brasileira é fortemente marcada pela herança do longo período da escravatura, cujo sistema impôs lugares distintos na pirâmide social, algo que se perpetua inclusive nos dias atuais. Segundo a pesquisadora, a população negra vivencia e experimenta o racismo do lugar de quem é objeto dessa opressão, ao passo que as pessoas brancas vivenciam as experiências do lugar de quem se beneficia dessa mesma opressão. Logo, tanto os sujeitos negros como brancos podem e devem discutir essas questões, mas conforme Ribeiro (2017), falarão de lugares diferentes.

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As discussões sobre “lugar de fala” (e lugar de escuta) e os processos de silenciamento dos sujeitos subalternos apresentam-se como ferramentas potentes na elaboração de estratégias pedagógicas que buscam produzir conhecimento sobre as fronteiras que demarcam as posições dos sujeitos nos grupos sociais.

Sugestão pra ver

// Participação de Djamila Ribeiro no programa “Saia Justa”.

Disponível em: https://youtu.be/AINEmjM4Ki4

Unidade 2: Sobre ensinar e aprender a partir das fronteiras

É preocupação de muitos docentes a articulação de suas metodologias de ensino e de pesquisa buscando introduzir nos currículos conteúdos, temáticas e questionamentos que dialoguem com as questões e emergências do mundo contemporâneo. A expectativa desses e dessas docentes é que essas ações reverberem na formação dos sujeitos e produzam transformações reais nos contextos e práticas educacionais. Os conceitos de entre-lugares, identidades e fronteiras são fundamentais para pensar essas articulações e em estratégias pedagógicas que apostam nas diferenças e reconhecem a necessidade de buscar aproximações mais efetivas com as expectativas e desejos dos e das estudantes.

Entre as muitas abordagens possíveis, o pensamento de fronteira elaborado por Walter Mignolo (2003) é uma proposta promissora para a educação porque ajuda a pensar na dinâmica de interesses e conflitos entre os movimentos globais e locais. Essa perspectiva busca minimizar os efeitos do eurocentrismo nas políticas do conhecimento e favorecer o surgimento de novos lugares de enunciação que desorganizem os processos de naturalização da cultura de matriz europeia como único conhecimento válido – em termos políticos, econômicos, científicos e artísticos. O pensamento de fronteira propõe uma nova base para que possam ressurgir narrativas diferentes dos metarrelatos, as quais aprendemos a identificar como as únicas histórias reais e possíveis de serem contadas. Portanto, trata-se de valorizar a diversidade de identidades, conhecimentos e práticas cotidianas nos sistemas educacionais, em contraposição aos ditames do conhecimento hegemônico.

A epistemologia de fronteira ou epistemologia do entre-lugar proporciona a possibilidade de rearticular a forma como o conhecimento é construído nos processos de ensino e aprendizagem, abrindo portas para novas problemáticas que estão inseridas nos contextos educacionais, mas são invisibilizadas por não fazerem parte do “currículo oficial”. Essa forma de pensar as práticas pedagógicas se revela útil especialmente para inserir nas discussões a realidade social e cultural dos alunos e alunas. Trata-se, assim, de pensar a prática docente a partir de posições que negam o absolutismo ou a globalidade dos conhecimentos e enfrentar o terreno instável da polissemia de ideias e temáticas que surgem nos contextos educacionais.

Atuar a partir do pensamento de fronteira ou dos entre-lugares significa revisar a própria postura docente e refletir até que ponto se está preparado para romper com os sistemas de normatização, desigualdade e discriminação e, também, desconstruir as representações políticas, sociais e do conhecimento hegemônico. A proposta é sair das ideologias universais e fazer conexões com as múltiplas ideologias que formam parte do mundo, sobretudo, as do “resto” do mundo não europeu. Em outras palavras, pensar os processos epistemológicos como caminhos alternativos à diversidade e à pluralização dos conteúdos curriculares.

A epistemologia de fronteira aponta para um tipo diferente de poder, múltiplo, em grande parte transdisciplinar e significativamente "aberto", uma vez que o objetivo é o de manufaturar novas formas de análise, não só contribuir para sistemas de pensamento estabelecidos. (DIAS, 2009, p. 3180)
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As instituições de ensino sempre foram espaços onde habitam uma série de demandas sociopolíticas que mudam de acordo com os impactos das políticas públicas, cujas diretrizes impactam diretamente nos sistemas educacionais de maneiras diferentes. O atual debate sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um desses debates que suscitam discussões acaloradas, bem como as reações à chamada “Escola sem Partido”. Essa última, em especial, pretende inibir ou limitar o que pode ou não ser dito em sala de aula; isto é, restringir as liberdades individuais e impor uma homogeneização completamente irreal com os contextos educacionais (e com a própria vida dos sujeitos). Por outro lado, essa guinada rumo a um caminho neoconservador e autoritário, nesse momento histórico particular de incertezas, oferece ao corpo docente a oportunidade de revisar aquilo que se entende sobre a relação entre educação e sociedade, consequentemente, o tipo de sujeitos que queremos formar e o que entendemos por justiça social. São questões simples, mas refletem diretamente nas formas como conceituamos e administramos nossas práticas pedagógicas.

Atuar desde posicionamentos mais críticos significa reconhecer a materialidade dos discursos hegemônicos e como afetam as identidades dos e das estudantes. As instituições de ensino são territórios altamente regulados, onde mecanismos (de certa forma invisíveis) guiam a produção de conhecimento e a seleção de temáticas que podem ser abordadas em sala de aula. Muitos professores e professoras são coniventes com esses mecanismos, preferem não se opor aos discursos institucionais e exercer o poder da inércia diante dos conflitos que surgem em seus locais de trabalho. Outras tantos, preferem não permanecer cegos e surdos diante dos conflitos e buscam exercitar o “local de escuta” para propor novas estratégias, outros objetos de análise, novos temas de interesses comuns e novas epistemologias com potencial de desestabilizar a normatividade e os tradicionalismos nos conteúdos pedagógicos. Desde essa posição, é fundamental entender que todas as pessoas têm direito às mesmas oportunidades de realizações acadêmicas, independente da origem social, da orientação sexual, da raça, idade, aparência, capacidades, crenças religiosas, entre outros marcadores de diferenças.

Também significa reconhecer que apesar de não podermos prever quais metodologias são mais apropriadas para os vários contextos educacionais, as estratégias que destacam os ruídos e os conflitos que partem das próprias relações de poder dentro das instituições podem ser um bom ponto de partida.

O educador estadunidense Henry Giroux, um dos fundadores da pedagogia crítica e declarado admirador das ideias de Paulo Freire, vem afirmando em seus estudos que as escolas deveriam se preocupar menos com as regras e práticas regulatórias e passar a pensar esses espaços como territórios culturais onde uma variedade de interesses e culturas convivem em uma constante negociação pelos significados do mundo. Assim, é um erro considerar as instituições de ensino como territórios neutros ou transparentes, livres de ambiguidades e contradições. Giroux entende a prática educativa como uma forma de produção cultural e política que deve trazer possibilidades de respostas às demandas e inquietações contemporâneas implicadas na educação. Sobre atuar desde posições fronteiriças, Giroux diz:

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Primeiro, a categoria de fronteira assinala um reconhecimento daquelas margens epistemológicas, políticas, culturais e sociais que estruturam a linguagem da história, do poder e da diferença. A categoria de fronteira também prefigura a crítica cultural e os processos pedagógicos como uma forma de transpor fronteiras. Ou seja, ela assinala formas de transgressão em que as fronteiras existentes forjadas na dominação podem ser desafiadas e redefinidas. Segundo, também se refere à necessidade de criar condições pedagógicas em que os alunos passem a transpor fronteiras para compreender o Outro em seus próprios termos, e de criar outras regiões fronteiriças em que os diversos recursos culturais permitam a composição de novas identidades dentro das configurações de poder existentes. Terceiro, a pedagogia de fronteira torna visíveis as limitações e os pontos fortes histórica e socialmente construídos daqueles locais e fronteiras que herdamos e que estruturam nossos discursos e nossas relações sociais. (1999, p. 41).

Atuar desde as pedagogias de fronteira significa, portanto, reconhecer as limitações e os jogos de poder que envolvem os ambientes formais de educação, mas também atentar às oportunidades que desafiam esses limites e resistir às práticas de domínio intelectual no momento de desenvolver estratégias que possam transgredir e redefinir os limites da educação, criando condições para que docentes e discentes possam produzir novas formas de conhecimento e subjetividades abertas à diversidade cultural e à alteridade diante de questões humanas.

Adicionando mais camadas de inquietações e preocupações que precisam ser consideradas para atuar desde as pedagogias de fronteira, está o amplo processo de globalização da indústria cultural, dominado por poucas corporações transcontinentais que aumentaram os abismos entre os discursos de poder e as possibilidades de diversidade das representações visuais. O desenvolvimento da internet, em especial, contribuiu para formar um mundo que está simultaneamente “conectado” e extremamente fragmentado em termos de relações interpessoais, onde parece ser crescente a dificuldade de muitas pessoas em se relacionar com as experiências de outros sujeitos e aprender com elas.

Nesse sentido e especialmente no ensino de artes visuais, lidar com os efeitos das tecnologias de comunicação e informação parece vital para transitar pelos entre-lugares que comumente aparecem no contexto das salas de aula e dizem respeito à diversidade de signos culturais que os próprios estudantes trazem e introduzem nas discussões. Essas materialidades e inquietações contaminam as fronteiras demarcadas dos conteúdos curriculares e os professores e as professoras podem seguir dois caminhos: ignorar as questões transversais que surgem ou problematizá-las, com a intenção de abrir portas para a construção de novas subjetividades ou reinterpretações sobre o que está sendo discutido. Em outra via, a indústria cultural e de entretenimento seleciona e direciona certos tipos de representações visuais que conformam as noções de identidade, de grupo e nas formas de ser e se posicionar no mundo.

As pedagogias de fronteira dentro do ensino de artes visuais, especialmente a partir da perspectiva da cultura visual, utilizam esses dispositivos para introduzir questões teórico-práticas que incentivam o exame crítico dos produtos culturais e a reflexão sobre o papel social e político dos estudantes como consumidores e produtores de visualidades e conhecimentos. Desde o viés transdisciplinar, é possível elaborar atividades que dialogam com as inquietações emergentes do cotidiano e que podem, esperançosamente, criar possibilidades de transformar as formas de ver e de se posicionar no mundo. Em outras palavras, transformar as fronteiras das salas de aula em terrenos férteis para o hibridismo, o diálogo e a resistência.

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As práticas desde as pedagogias de fronteira possuem em comum a crença de que o ensino é um ato político e que os conhecimentos que delas derivam nunca são isentos de valores subjetivos e, muitas vezes, podem estar em desacordo com as experiências vivenciadas ou desejadas por parte dos e das professoras. Nesse sentido, é importante lembrar que nas zonas fronteiriças não existem portos seguros e os conhecimentos totalizantes são questionados por meio de contra-narrativas que problematizam os conteúdos e os significados culturais. Essas negociações têm o potencial de ensinar docentes e discentes novas formas de “aprender a ver” e, também, novas lentes para olhar o outro, o mundo e nós mesmos em relação a ele. Isso significa aprender a criar significados desde o dissenso e dos conflitos gerados por nossas construções sociais sobre as diferenças que legitimam, marginalizam ou excluem as identidades que não atendem aos discursos de poder.

Não há receitas prontas nas pedagogias de fronteiras, mas há vários exemplos na educação de projetos, articulações e práticas que nos informam a existência de múltiplos enfoques de resistência e reconhecimento de outras alteridades. Desenvolver estratégias pedagógicas desde as pedagogias de fronteira pode não ser uma tarefa fácil, mas também pode ser uma experiência gratificante para todos os atores envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. No entanto, é importante ressaltar que trabalhar a partir dessa perspectiva não significa apenas incorporar algumas discussões transversais nos conteúdos curriculares. Significa expandir as relações com os alunos e alunas, revisar os próprios preconceitos internalizados e atribuir novos sentidos à presença das diferenças nas vivências pedagógicas.

Unidade 3: Empatia, para aprender a pensar o “outro”

Quem sou eu? Quem é o outro? As respostas possíveis para essas duas perguntas, aparentemente simples, mostram desafios extras para sua abordagem. É possível pensar que, nos referenciais de mundo, existem o eu e tudo o mais, que é o não-eu, ou seja, o outro. Este, o outro, está fora do eu, tem autonomia em relação a ele.

Parece mesmo que definir o outro é quase mais fácil do que definir quem seja o eu. Ocorre que a constituição do eu se dá no confronto com o outro, e não de outra maneira. Ou seja, só quando a pessoa se depara com o não-eu, o outro, a sua diferença, é que ela se reconhece como tal.

O outro provoca impressões, afetos, reações no eu, a partir das diferenças que se estabelecem entre ambos: raiva, saudade, afeição, tristeza, dor, alegria, encantamento, motivação...

Então, o eu e o outro formam um par indissociável: quer dizer, não é possível separá-los, ou compreendê-los de modo isolado. Norbert Elias escreveu em 1939 um ensaio intitulado “Sociedade dos indivíduos” (ELIAS, 1994). Ali ele pensa, de modo extremamente interessante, como se dão essas relações entre a pessoa, em sua singularidade, e as demais pessoas, estabelecendo-se os vínculos sociais que dão coesão a uma comunidade. Coesão que sempre comparece entrecortada por tensões.

O autor pensa essas relações com base em algumas referências do pensamento social, mas também trazendo elementos da psicanálise. Da leitura desse texto, talvez seja possível levantar alguns pontos que nos ajudem a pensar as questões relativas à empatia e ao binômio eu-outro. Como primeiro ponto, as comunidades são formadas por indivíduos, e estes não existem fora das relações entre si, ou seja, das relações eu-outro. Então há uma dimensão relativa às singularidades, subjetividades, às características de cada um, e outra que se refere aos coletivos, em diferentes graus de complexidade, e suas dinâmicas, formas de organização, conjuntos normativos, etc.

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Outro ponto importante reportado por Elias (1994) está no fato de que o eu se organiza desde uma pessoa, passando pelas comunidades de pertencimento, em diferentes graus de extensão e complexidade. Por exemplo: dentro de uma família, há pessoas singulares que estabelecem relações entre si. Mas, em algumas circunstâncias, a família pode constituir um “eu” em relação a outras famílias e outras comunidades. Do mesmo modo, a comunidade de uma igreja, uma turma de escola, um time, por exemplo, podem tomar o lugar do eu, diferenciado em relação a outras comunidades.

O que há entre eu e o outro?

As relações entre os indivíduos, entre suas singularidades, no contexto das comunidades, são quase sempre pautadas por tensões, que advêm das diferenças entre o eu e o outro. Mas notem que essa diferença é constituidora de ambos. Portanto, a diferença é uma condição necessária, indispensável. No entanto, quase sempre, uma pessoa afirma o que ela acredita ser por meio da negação do outro, ou do que ela supõe que o outro seja. Em outras palavras, o eu tende a se reconhecer e se fortalecer a partir da negação do outro. Residem aí as bases de toda forma de preconceito e discriminação. Quanto mais profundas sejam as diferenças entre o eu e o outro, mais fortemente se atribuem, ao outro, categorias de negação: o outro é ignorante, incapaz de aprender, o outro tem menor valor, do outro não se espera nada que interesse, o outro não é merecedor de reconhecimento, o outro está sempre sob suspeita... o outro não merece viver...

Diante disso, fazemos as seguintes perguntas: É mesmo necessário negar o outro para o eu se reconhecer e confirmar quem é? Em lugar disso, é possível o eu buscar compreender o lugar do outro?

Em vez de negar o outro para afirmar a identidade, o eu pode, em primeiro lugar, lembrar que também é outro, em relação aos demais. O que resulta disso? A constatação de que o seu ponto de vista não é único, nem o melhor. Ninguém é detentor de nenhuma verdade. As referências constituidoras da identidade estão em perspectiva com todas as outras referências constituidoras das identidades dos demais.

E o que fazer para interromper a tendência de afirmar ou fortalecer o eu negando o outro? O princípio da empatia oferece um caminho diverso, por meio do qual é possível ampliar as reflexões sobre si mesmo no exercício de se colocar no lugar do outro, de compreender o ponto de vista do outro. Ninguém precisa se perder de suas próprias referências para fazer isso. Indo ao encontro do outro, em sua diferença, compreende o outro, e a si também.

Ou seja, a empatia não supõe o apagamento do eu. Nem obriga o eu a concordar com o outro. Ao contrário, a empatia pode ser entendida como “uma forma de se ampliar o universo pessoal” de modo que o eu possa “completar sua vida incorporando experiências” do outro (BROLEZZI, 2014). Sendo um movimento de saída de si mesmo em direção ao outro, propicia um aprofundamento sobre o si, o eu, em relação ao não-eu, o outro.

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Brolezzi (2014) relata que o conceito de empatia é relativamente recente, tendo sido utilizado pela primeira vez pelo filósofo alemão Robert Vischer no século XIX, descrevendo a experiência estética e, nela, a capacidade de sentir com. No início do século XX, Vygotsky observou com atenção a ligação entre a empatia e a experiência estética, tendo em vista a potência da arte para estimular as pessoas a saírem de si mesmas em direção ao social, ao coletivo, a pontos de vista fora de si mesmas. Em síntese, a empatia se daria ampliando os horizontes do mundo pessoal, individual, e a arte contribuiria com essa expansão propiciando a incorporação de experiências alheias (nas artes visuais, no teatro, na literatura, no cinema, etc.).

Quanto mais empáticas, as pessoas mostram-se mais hábeis para lidar com as frustrações, para se relacionar com a diversidade, e para ampliar seu autoconhecimento. A isso, dá-se o nome de resiliência. Do mesmo modo, as aprendizagens construídas dessa forma mostram-se mais complexas e capazes de compreender múltiplos pontos de vista.

Poética da Alteridade – Amarelo

O Amarelo, curioso e vibrante, queria aprender como era o Azul. Moveu-se na escala cromática. Experimentou outros pigmentos que refletiam diferentes comprimentos de onda de luz. Deixou-se impregnar de não-amarelos.

Quando quis retornar à condição original, já não conseguiu se purificar dos muitos fragmentos incorporados no caminho. Tornara-se um intenso tom de Amarelo-Limão.

Por vezes sentia saudades do Azul, e retomava a posição do outro. Na volta, a cada vez, era um pouco menos Amarelo.

Um dia, percebeu que já não pertencia à categoria dos amarelos. Tampouco dos azuis.

Tornara-se Verde. Ainda aberto a transformações.

(Alice Fátima Martins)

De que modo todas essas questões dialogam com os processos de ensinar e aprender?

Toda experiência que resulta em aprendizagem supõe encontro com o desconhecido. Ou seja: aquilo que pensamos já saber é defrontado com o que não sabemos, o que desconhecemos. Desse encontro, todos saímos transformados.

Esse espaço entre o que já sabemos e o que não sabemos é uma região de fronteira, por onde transitamos enquanto aprendemos. Nela, nos desequilibramos. Nela, precisamos rever nossas estruturas afetivas, cognitivas, nossas explicações sobre o mundo.

Nessa região de fronteira, quando nos deparamos com o desconhecido, descobrimos que também há muito em nós por ser conhecido. E nos modificamos em cada encontro.

Para aprender, para ensinar, é necessário estarmos abertos a esses encontros. Mas também é necessário estarmos atentos. Doses de empatia, de ética e estética são indispensáveis em territórios fronteiriços.

Costa e Diez (2012) enfatizam que o princípio da alteridade, da empatia pode contribuir para repensar um projeto educativo fundado nas próprias relações humanas, tendo em vista que a constituição da subjetividade está no encontro com o outro, na abertura de si para a diferença de si. Essa abertura ao outro, sem a negação ou a discriminação, tem como coordenadas mútuas o respeito e a ética.

Como tais questões integram as visualidades nos ambientes de educação formal e não-formal?

As visualidades com que nos deparamos quotidianamente, em nossos ambientes domésticos, de trabalho, nas escolas, em centros de cultura, portam informações, articulam discursos, provocam interações, podem ser apropriadas de diferentes modos. Elas estabelecem sobretudo modos de mediação entre o eu e o outro.

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Nessa medida, elas tanto podem contribuir para nos aproximar das outras pessoas, como também podem estabelecer barreiras, conceitos pré-estabelecidos que dificultam essa aproximação. Daí a importância de discutirmos, conversarmos sobre as visualidades com que trabalhamos tanto nos espaços de educação formal quanto de educação não-formal.

Para ajudar a pensar sobre todas essas questões

https://www.youtube.com/watch?v=DkFJE8ZdeG8

Calle 13 – Latinoamérica

Diretores Jorge Carmona y Milovan Radovic

Productor Alejandro Noriega

Que imagens estão presentes nesses espaços? O que elas nos dizem? O que nós dizemos sobre elas? Quem as produziu? Em que contextos? Por quais vias elas chegaram até nós?

Que imagens nós temos produzido? Com quais finalidades? Que ideias pretendemos comunicar por meio delas? Para quem?

O que essas imagens falam sobre mim, para os outros? O que elas falam dos outros, para mim?

Em que medida elas contribuem para que eu estabeleça uma relação de empatia com o outro?

Para fechar esta unidade, sugerimos que vocês produzam, individualmente, uma imagem, ou um conjunto de imagens, buscando abordar alguma questão sobre as relações com o outro. Não se esqueçam que ética e estética não se separam na empatia. Bom trabalho!

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. [Trad. Mvriam Avila, Euana L. de L. Reis, Glaucia R. Gonçalves]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BROLEZZI, Antonio Carlos. Empatia em Vygotsky. Dialogia, São Paulo, n. 20, p. 153-166, jul./dez. 2014.

COSTA, Wanderleia Dalla; DIEZ, Carmen Lucia Fornari. A relação eu-outro na educação: abertura à alteridade. IX ANPEd Sul/Anais. Caxias: ANPEdSUL, 2012. Disponível em Acesso em 23 jan. 2018.

DIAS, Belidson. Uma epistemologia de fronteiras: minha tese de doutorado como um projeto A/R/TOGRÁFICO. Salvador, Bahia: Anais ANPAP - 18º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas. 2009. Disponível em: http://www.anpap.org.br/anais/2009/pdf/ceav/belidson_dias_bezerra_junior.pdf Acesso em 23 jan. 2018.

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