Licenciatura em Artes visuais Percurso 2
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Conversando Sobre Estudos Críticos e Educação

Autor

Dr.Raimundo Martins Professor Titular da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), é Pós-Doutor em Arte e Cognição pela Universidade de Londres (Inglaterra) e em Arte e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona (Espanha). É Doutor em Educação/Artes pela Southern Illinois University (EUA) e Mestre em Artes pela Andrews University, Michigan (EUA). É pesquisador do Laboratório Imagem e Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC) da Universidade Federal de Santa Maria e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (GPCVE) da Universidade Federal de Goiás. Membro do Conselho Editorial de várias revistas no Brasil e no Exterior, é Editor da Coleção Desenredos – Núcleo Editorial da FAV/UFG. Tem artigos e capítulos de livro publicados no Brasil e no exterior e coordena (c/Irene Tourinho) a Coleção Cultura Visual e Educação, publicada pela Editora da UFSM, cujos títulos já lançados são: Processos & Práticas de Pesquisa em Cultura Visual & Educação(2013); Culturas das Imagens: desafios para a arte e para a educação (2012); Educação da Cultura Visual: conceitos e contextos (2011); Cultura Visual e Infância – quando as imagens invadem a escola... (2010); Educação da Cultura Visual: narrativas de ensino e pesquisa (2009). É membro da International Society for Education Through Art (INSEA) e da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). No semestre letivo 2013/2014, foi professor visitante na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Barcelona.

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Alguns antecedentes históricos

Nas últimas décadas, visões contemporâneas da pedagogia crítica ganharam força e proeminência ao serem revistas e reconfiguradas na forma da “nova sociologia” (YOUNG, 1989; FORQUIN, 1993; BERNSTEIN, 1996) e da “teoria crítica” da educação (MCLAREN, 1992, 2000; FREIRE, 1996; GIROUX, 2000). A ênfase que caracterizou e, de certo modo, disseminou os princípios da pedagogia crítica tem como base conceitual o estudo das escolas em seus contextos históricos, analisando-as como parte da estrutura social, política e cultural que define e ampara os seguimentos dominantes da sociedade.

A matriz dessas ideias tem suas raízes plantadas em terras europeias, mais especificamente em Frankfurt, na Alemanha. Ainda hoje, muitos teóricos críticos continuam bebendo no manancial da conhecida Escola de Frankfurt que teve sua origem antes da Segunda Guerra Mundial no Instituto para Pesquisas Sociais. O instituto reunia filósofos e cientistas sociais surpreendidos e atemorizados ao assistirem as perturbações políticas e econômicas – deflagração da Revolução Russa (1917), surgimento de regimes fascistas - que desaguaram em convulsões sociais e abalaram a Europa durante a Primeira Guerra Mundial.

Fortemente influenciados pela junção entre o materialismo marxista e a psicanálise criada por Freud, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, principais expoentes da Escola de Frankfurt, desenvolveram uma estrutura conceitual que tinha como foco a ruptura com a “teoria tradicional”, ou seja, a rejeição da visão positivista e cientificista que se fundamentava nos princípios da “razão instrumental”.

A racionalidade instrumental baseia-se na noção de utilidade e tem como característica a relação entre meios e fins, visando critérios de eficiência na escolha de meios para atingir os fins desejados, não importando quais sejam os fins. Essa racionalidade tem objetivos implícitos suscetíveis à manipulação de interesses. Quando a valorização dos meios se justapõe aos fins, nos distanciamos dos princípios da emancipação social e tornamos vulnerável a autonomia do sujeito. Ficamos expostos a práticas e padrões de uniformização, em geral, direcionados pelas mídias e pelo mercado de consumo, em decorrência da ausência de uma visão crítica da informação e do conhecimento.

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As técnicas de dominação, quase sempre implícitas, porém atraentes, sedutoras e manipuladas pela “Indústria Cultural”, termo cunhado por Theodor Adorno, ganharam espaço através de diferentes modalidades de massificação da informação, do conhecimento, da cultura e da arte. Desse modo, e de maneira gradativa, acontece o apagamento, a alienação do sujeito transformando-o em mero objeto utilizado para impulsionar constantemente diferentes formas de produção.

Esse conceito de “racionalidade” ou de “razão”, pulsou no âmago da sociedade industrial ao mesmo tempo em que escondia no seu bojo a necessidade dos seres humanos de dominar a natureza. Dominar a natureza pressupõe compreender suas leis, seu funcionamento, utilizando-os na forma de estruturas e organizações burocráticas e impessoais que reduzem o ser humano a mero instrumento de produção. Dessa maneira, a ideia de humanidade, a noção de autonomia e emancipação do sujeito pouco a pouco vão sendo diluídas e, com elas, a possibilidade de construção de uma visão crítica.

Os conceitos e argumentos que dão lastro para os antecedentes históricos dos estudos críticos na educação deixam evidente a importância da cultura e sua relação intrínseca com o conceito de poder, mas, especialmente, o modo como tal relação foi concebida e desenvolvida pelos teóricos do Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt. De acordo com Giroux (1986), tal relação

[...] representa um importante aspecto a ser considerado quando nos movemos em direção a uma teoria crítica da educação, pois é através dela que podemos entrever uma variedade de conceitos imprescindíveis para a compreensão de como a subjetividade pode ser moldada, tanto dentro quanto fora do espaço escolar (GIROUX, 1986, p.58).

Utilizando os conceitos da teoria crítica para fundamentar uma compreensão da relação entre cultura e poder, é possível construir uma perspectiva teórica que nos auxilie a analisar a natureza da dominação e suas possibilidades de resistência. Complementando as ideias de Giroux, Baroni e Santa (2015), explicam que inserir a escola nos processos políticos significa

também tratar o aluno como ser crítico, capaz de problematizar o conhecimento a ponto de torná-lo emancipatório, o que implica dar voz ativa aos estudantes, problematizando a prática pedagógica a partir das suas vivências concretas, suas características culturais, de classe, raciais e de sexo, em conjunto com as particularidades de seus diversos problemas, perspectivas e esperanças (BARONI; SANTA, 2015, p. 154)

No mundo contemporâneo, as escolas são instituições imprescindíveis em sociedades cada vez mais complexas onde se intensificam conflitos e contradições que marcam simbolicamente esses espaços sociais. As escolas sempre devem ser estudadas e analisadas num contexto educativo mais amplo, colocando em perspectiva circunstâncias históricas, sociais, culturais e econômicas específicas e que, por serem dinâmicas estão em constante mudança.

Princípios e fundamentos dos estudos críticos

A principal premissa que fundamenta a pedagogia crítica é uma oposição veemente à visão positivista do conhecimento, instituída a partir de compreensões e abordagens educacionais não históricas e despolitizadas. O discurso educacional positivista deixa evidente a preocupação com o “domínio das técnicas pedagógicas e a transmissão de conhecimento instrumental para a sociedade existente. Na visão do mundo tradicional, as escolas são simplesmente locais de instrução” (GIROUX, 1997, p. 148). Pesquisadores, teóricos e críticos desse discurso positivista e, consequentemente, dessa visão tradicional de educação, acrescentam que ela oculta, elimina discussões importantes sobre as relações entre conhecimento, dominação e poder. A ausência desses elementos torna a escola potencialmente em um lugar de sujeição e subalternidade onde são escassos os espaços para o fortalecimento dos indivíduos, ou seja, para a construção da subjetividade dos alunos.

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A pedagogia crítica se ancora na convicção de que conhecimento e poder sempre devem estar abertos e suscetíveis à discussão e ao debate. Intrínseco à concepção de pedagogia crítica está o desejo de desenvolver, de criar práticas pedagógicas “em que professores e alunos se tornem agentes críticos que questionem activamente e negociem a relação entre teoria e prática, entre análise crítica e o senso comum e entre a aprendizagem e a transformação social” (GUILHERME, 2007, p. 134).

Vale ressaltar que o conceito de ‘dominação’ é algo que vai além da ideia de imposição ou de uma forma de poder arbitrário que um grupo possa exercer sobre outro. De maneira sub-reptícia e perspicaz, por trás dessas relações está a “lógica da dominação [que] representa uma combinação das práticas materiais e ideológicas, históricas e contemporâneas que nunca tem sucesso total, [mas] sempre incorporam contradições, e estão sempre sendo disputadas dentro das relações assimétricas de poder” (GIROUX, 1997, p. 146).

Durante muito tempo esta abordagem foi utilizada e endossada por educadores liberais e conservadores. Preocupados com questões referentes à concentração e monopólio da política e do poder em relação ao modo como funcionam as escolas, teóricos críticos passaram a produzir estudos e abordagens de ensino que estimulam os alunos a inquirir, a desafiar as crenças e preceitos que lhes são ensinados. Ou seja, essas abordagens se estruturam a partir de teorias e práticas que tem por objetivo desenvolver uma ‘consciência crítica’ com os alunos.

A construção de uma consciência crítica pressupõe que os alunos tenham na escola um ambiente propício à busca de conhecimentos sobre eles mesmos e sobre o mundo, conhecimentos que instiguem, desafiem e contribuam para a sua formação como sujeitos, motivando-os a tomar consciência e buscar compreender a diversidade de aspectos da realidade que os cerca. Nesse sentido, a escola deve discutir as diferenças sociais existentes visando um compromisso com princípios e valores de justiça e equidade social, condição básica para que alunos e professores possam participar ativamente na transformação da sociedade.

Tourinho e Martins (2011) comentam como a atitude crítica pode ser útil para alunos, professores e comunidade escolar, chamando a atenção para o fato de que:

Nas artes, a crítica tem por objetivo orientar o espectador ou, até mesmo, ajudá-lo a decidir sobre a conveniência de ver um filme, ler um livro, assistir uma peça de teatro ou a um concerto, ir a uma exposição, um espetáculo ou show, e assim por diante. Num sentido mais amplo, a crítica pode ser utilizada como espaço de reflexão sobre temas diversos, com o objetivo de desenvolver mecanismos que fomentem a discussão, exercício e intercâmbio de ideias num espaço de livre trânsito e acesso (TOURINHO; MARTINS, 2011, p. 59)

O exercício e intercâmbio de ideias aos quais os autores se referem são recursos imprescindíveis no processo educativo. Estas práticas podem aprofundar e complementar a experiência cultural, alargando-a. Isso significa que ver um filme, ler um livro ou qualquer outro contato com as artes pode e deve ser motivo para reflexão e, sobretudo, para “exercício e intercâmbio de ideias”.

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Para Paulo Freire (2011; 2013), a educação e, de maneira mais específica, a aprendizagem, deve ser tratada como instrumento para mudar o mundo. Ainda de acordo com o autor, uma educação crítica deve ter como meta a construção de vínculos entre ações e práticas educativas e culturais, fomentando e até mesmo acirrando a luta por justiça econômica e social.

Giroux (2005), ao detalhar as ideias de Freire, argumenta que não se deve separar a prática docente do contexto econômico, político e cultural no qual os professores estão profissionalmente inseridos. Além disso, os professores devem ter espaço e autonomia para propor, alterar e adequar os currículos às condições, necessidades e demandas da comunidade escolar. Devem, ainda, empreender e partilhar pesquisas com outros professores e com grupos externos a escola assumindo as rédeas do seu trabalho pedagógico e, consequentemente, participando ativamente na gestão escolar. Vale destacar que a autonomia pedagógica dos professores não pode estar apartada das questões de poder e da gestão escolar.

Ao explicitar de maneira contundente esses princípios pedagógicos, Giroux, em entrevista a Guilherme (2005), explica que os

educadores devem ser considerados como intelectuais públicos que estabelecem a ligação entre as ideias críticas, as tradições, as disciplinas e os valores da esfera pública no seu dia-a-dia. Mas, ao mesmo tempo, os educadores devem assumir a responsabilidade de ligar o seu trabalho às questões sociais mais amplas, interrogando-se sobre o que significa capacitar os seus alunos para escrever textos políticos, para ser perseverantes perante a derrota, para analisar os problemas sociais e para aprender a utilizar os instrumentos da democracia e a marcar a diferença como agentes sociais (GUILHERME, 2005, p. 136).

A narrativa escolar está historicamente marcada por avanços e recuos, conflitos e negociação, deixando claro que ‘diálogo’ e ‘interpretação’ são linhas de força que devem estar intrinsecamente ligadas à prática pedagógica. Essas linhas de força nos ajudam a compreender que as diferenças culturais devem ser vistas como um recurso pedagógico e não como uma ameaça à escola.

O diálogo é elemento essencial na pedagogia crítica (FREIRE, 1987). Segundo Freire, “o diálogo é parte da história da consciência humana sendo ele o momento em que os seres humanos se encontram para refletir sobre a realidade” (p. 45). Tem um caráter profundamente social e, portanto, demanda um pensamento crítico. Continuando com Freire, (Ibid.), aprendemos que o

diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987).

Dialogar pressupõe um ato de interação baseado na troca de ideias e, na prática dialógica, não cabe despejar nossas ideias em outras pessoas, sejam elas familiares, amigos, colegas de trabalho ou alunos. Sem diálogo tratamos os indivíduos como se fossem objetos, ou seja, pessoas passíveis de serem manipuladas. Aprofundando o conceito de Freire, Au (2011, p. 252), afirma que aprender por meio do diálogo “significa nomear o mundo juntamente com os outros, em um ato social, processo que, por sua vez, ajuda a entende-lo [o mundo] por conta própria”. A concepção de diálogo de Paulo Freire tem como foco a relação entre alunos e professores, colocando em perspectiva uma prática dialógica na qual ambos aprendem com o fluxo de informação e conhecimento que ocorre nas duas direções.

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Estudos críticos e artes visuais

A partir da última década do século passado se intensificou de maneira significativa o interesse pelos métodos visuais ou, sendo mais específico, pela pesquisa com imagens. Encontramos cada vez mais abordagens que configuram uma diversidade crescente de procedimentos metodológicos, princípios conceituais e epistemológicos. Pesquisadores dos mais diversos campos de estudo trabalham com imagens e metodologias visuais que incluem uma gama considerável de disciplinas, contextos e focos. Esses recursos metodológicos compreendem um vasto e complexo aparato imagético envolvendo diferentes tipos de registro, produção de dados, experiências, formas de análise e interpretação.

Hoje, os dados visuais podem ter como suporte fotografias, pinturas, filmes, vídeos, publicidade, desenhos, grafites, tirinhas, diagramas, infográficos e imagens da internet que exploram a condição contemporânea da onipresença das imagens na sociedade. Fica evidente que as representações visuais são utilizadas nas/para/com pesquisas em qualquer área de conhecimento.

A relação dos seres humanos com as imagens tem uma trajetória marcada por problemas, conflitos e conturbações que oscilam entre períodos de uma iconoclastia exacerbada e momentos de tolerância ou até mesmo de convivência pacífica que resultaram em criativa produção imagética. No entanto, não podemos ignorar que na combustão desses conflitos nutridos por contradições, temores, ameaças e interdições, o elemento/ingrediente principal é a força e a potência das imagens e, em consequência, sua fragilidade e oscilações históricas. Campos (2013) sintetiza com propriedade aspectos dessa trajetória e momentos de oscilação ao explicar que

A imagem foi, não raras vezes, banida da nossa convivência e, ainda hoje, é alvo fácil de discursos que invocam o seu poder perturbador. A imagem é, por isso, fonte de receios, e são inúmeras as tentativas de domesticação que pretendem sinalizar balizas socialmente admissíveis para a sua atuação. A imagem dócil sempre foi ambição de regimes e de discursos hegemônicos (CAMPOS, 2013, p. 23.).

Fugazes e voláteis, reféns da sua própria fragilidade e, por isso mesmo, vinculadas ao domínio do efêmero e do acidental, as imagens representam apenas um instante, um momento que transborda ou escoa num fluxo temporal que nada mais é que uma noção de tempo intrínseco a sua natureza. Fixas ou em movimento, elas não podem prescindir do tempo, embora pelo seu poder de ideação enunciem uma vida própria que se manifesta ao suscitar imaginação, pensamentos, ficção, memórias, reflexões etc. Além disso, no mundo atual, as imagens são artefatos estratégicos na trama do capitalismo eletrônico e, especialmente, na proliferação da cultura “geek”. Discussões a respeito destes tópicos trariam uma expansão nas possibilidades de pensar e projetar exemplos sobre como estimular posturas críticas no processo de formação. Autores como Brea (2007), Kellner (2011), Prada (2012) e Gilsdorf (2015) apresentam contribuições importantes tanto sobre as questões de capitalismo eletrônico como sobre a caracterização e inserção da cultura “geek” no mundo atual.

As implicações e o alcance decorrentes das inesperadas transformações culturais que estamos experienciando nos confrontam, de maneira sem precedentes, com uma infinitude de materiais que passam a ser utilizados na criação artística. Também estamos vivenciando processos de criação que nos parecem estranhos ou bastante incomuns, assim como formas de representação e mediação inusitadas, “conectando e miscigenando culturas, pessoas, práticas de pesquisa e ensino, além de alterar/apagar fronteiras entre áreas de conhecimento anteriormente bem definidas” (TOURINHO E MARTINS, 2011, p. 54).

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Ao mesmo tempo em que observamos esses deslocamentos, oscilações, tentativas de domesticação das imagens e, consequentemente, uma surpreendente diversidade de mudanças nas maneiras de interação, percebemos que as formas tradicionais de poder que um dia tiveram suas representações claramente localizadas em instituições e em indivíduos migraram, também, para espaços pouco visíveis e/ou acessíveis. Hoje, de maneira silenciosa e sutil, o poder encontra-se alojado, discretamente escondido em esferas da infraestrutura de onde pode, muitas vezes, ressoar, reverberar. Está nos softwares, nas fibras óticas, nas centrais de dados, nos provedores corporativos, ou seja, se materializa por meio de arranjos espaciais que passamos a conhecer como ‘sistemas’ ou, ainda, como nuvens.

Alguns autores (DEAN, 2009; BROWN, 2015) qualificam como pós-ideológicas ou pós-representativas essas formas de poder que expressam a nova modalidade de organização e configuração do mundo em que estamos vivendo. Nelas, o poder está imiscuído nas estruturas arquitetônicas dos sistemas que, além de ocultá-las e/ou neutralizá-las, as torna impessoais. É uma modalidade de organização que confunde e desnorteia a visão crítica, os gestos simbólicos e as posturas políticas transformando o cotidiano das pessoas em algo desconexo.

Essas desconexões podem nos empurrar para deslizes e contradições que tentamos justificar como resíduos ou pegadas da esquizofrenia pós-moderna (JAMESON, 1985; DELEUZE e GUATARI, 1996). Alguns exemplos dessas contradições e desconexões podem ser observados na política de empresas que fazem publicidade contra a violência ao mesmo tempo que exploram os próprios trabalhadores; indivíduos que publicamente se opõem ao trabalho escravo ao mesmo tempo que compram roupas confeccionadas por imigrantes que as produzem em condições precaríssimas, sub-humanas; pesquisadores e acadêmicos que solicitam financiamento governamental ou corporativo para realizar projetos críticos a estas modalidades de poder. Claramente, estamos vivendo e experimentando discrepâncias entre poder, postura, ação política e nossos gestos simbólicos.

Talvez a mais importante consequência da globalização no contexto das artes visuais tenha sido a crise das narrativas históricas centradas no Ocidente. Práticas recorrentes como a visão linear de fatos e acontecimentos históricos e, ainda, argumentos construídos a partir de relações teleológicas, tem contribuído para desconstruir a noção de ‘superioridade’ ajudando-nos a reconhecer e valorizar outros cenários, narrativas, tradições e modelos de experiência artística.

Estamos convivendo com uma crise que resulta de um modelo de conhecimento construído a partir de uma concepção de mundo baseada na proeminência do Ocidente e suas narrativas sobre o resto do mundo. Essa situação paradoxal desestabiliza, gera insegurança, porém, funciona como alerta para o fato de que compreender a “contemporaneidade” pressupõe o reconhecimento da diversidade que inclui outros modos de pensar e refletir, outras modernidades, outras narrativas, outros conceitos e categorias que põem em perspectiva múltiplos discursos históricos com suas ferramentas conceituais e abordagens analíticas.

A experiência com artefatos visuais na contemporaneidade é caracterizada pela intensificação da ambiguidade que a envolve. Como espectadores, podemos visualizar imagens, objetos e coisas ao mesmo tempo em que nos sentimos espreitados por expectadores desconhecidos, ocultos. Os milhões de sujeitos que navegam e transitam pela Internet e pelas redes sociais, são exemplos e síntese da incorporação daquilo que denominamos ‘subjetividade contemporânea’, uma espécie de presença digital que, mesmo com imagens, se dilui nesse fluxo e passa a ser reconhecida somente quando, e se, rastreada.

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Sabemos que a mediação tecnológica exacerba a potência do visual e das visualidades, mas também sabemos que essa mediação é irreversível e nos faz reconhecer que há algo nas imagens, nas obras artísticas e nos objetos, algo que não temos como transpor para os textos, ou seja, algo que não se deixa submeter a eles. Diante de imagens/artefatos visuais, não cabe a redução a nenhum tipo de racionalização pois diferentes formas de interação colocam em jogo e inventam diversos significados.

Essa ambiguidade envolvendo a presença das imagens e dos artefatos visuais na nossa vida cotidiana continua nos desafiando como se fora um enigma, uma vez que ela está potencialmente ‘imbricada’ como uma espécie de ‘materialidade abstrata’ da arte/imagem, que se movimenta em contextos de interação. Além de exigir intensa reflexão, esse enigma parece nos convidar para um retorno à experiência e à revalorização do encontro e do afeto na constituição de subjetividades.

Encerrando a conversa e abrindo vazios...

O século XX deixou heranças teóricas, conceituais e metodológicas marcadas por individualidades, pessoas cuja contribuição teve impacto e repercussão nos modos de pensar, ensinar, pesquisar e produzir conhecimento. Neste breve texto, pontuamos contribuições de Giroux, Freire, Jameson, Deleuze e Guatari e outros. Durante algum tempo esses indivíduos foram vistos como exemplo, como símbolos de postura política, ética, estética, cultural e ideológica.

À medida que adentramos o século XXI, individualidades-modelos que outrora influenciaram nossas formas de pensar, pesquisar e ensinar estão gradativamente perdendo espaço. Outros estão sendo transformados em marcas, grifes e logos do mundo global e midiático no qual vivemos. O avanço tecnológico está promovendo uma revolução nas formas de mediação social e cultural, acelerando e subvertendo modos de agir, criar e inventar, fazendo-nos sentir reféns, nômades em busca de algum tipo de sintonia com as modalidades e protocolos de comunicação contemporâneos.

Ao mesmo tempo em que nos defrontamos com a aceleração dos tempos e das formas de socialização, nos vemos sitiados por maneiras de aprender e ensinar antiquadas, definidas por um cotidiano de conflitos políticos, econômicos, culturais e ideológicos que plasmam diariamente a realidade geopolítica contemporânea. O mundo midiático digital está produzindo uma ‘despersonalização’ das formas de ação social e de interação dos processos educativos. Personalizações baseadas em crenças religiosas, em nacionalismos, convicções políticas radicais, preconceitos de gênero, status profissional e social, são formas primitivas de controle econômico, moral, social e cultural, cujo objetivo é moldar e manipular as ações coletivas visando o benefício de poucos em detrimento dos interesses, desejos e expectativas da maioria dos indivíduos.

A simbiose digital entre imagem e discurso, desenha e cria cenários virtuais onde os artefatos visuais tomam o lugar e, por vezes, formatam a experiência, transformando aprendizagem e pensamento em dispositivos e ações pedagógicas despidos de criticidade. Ao estimular o desejo de ver, saber e sentir, de registrar e arquivar imagens de informação, de ficção, de arte, filme e entretenimento, os estudos críticos podem funcionar como antídoto à crescente e, certamente, irreversível persuasão do capitalismo eletrônico de que tudo que é ou pode fazer-se/tornar-se visível é passível de coexistir com a crescente automatização da cognição, condição para a valorização e acumulação de signos e artefatos visuais como atributos econômicos. Nesse sentido, nos cabe sempre perguntar como os estudos críticos podem nos desafiar a repensar o mundo em que vivemos, a formação que recebemos e que oferecemos. Perguntar, ainda, como os estudos críticos podem nos ajudar a pensar sobre as produções culturais e imagéticas que compartilhamos visando reconstruir as relações que estabelecemos com nós próprios e com nossos pares.

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Sobre o autor

Raimundo Martins é doutor em Educação/Artes pela Southern Illinois University, pós-doutor pela Universidade de Londres (Inglaterra) e pela Universidade de Barcelona (Espanha) onde também foi professor visitante. Professor titular e docente do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV) da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás. É pesquisador do Laboratório Educação e Imagem (PROPED/UERJ), do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura (GEPAEC/UFSM) e do Grupo de Pesquisa Cultura Visual e Educação (PPGACV/UFG).